Nove fundamentos para uma hermenêutica adventista

Uma das questões mais complexas que os eruditos adventistas enfrentam é chegar a um consenso sobre os princípios de interpretação das Escrituras. A Bíblia sempre foi a fonte e a norma para nossas crenças. Devido à sua particular compreensão da Palavra de Deus, nossos pioneiros deixaram suas igrejas de origem, e nós mantemos até hoje uma identidade distinta e um senso peculiar de missão.

Contudo, às vezes, observa-se que alguns estudiosos têm se posicionado de modo diferente em relação à hermenêutica bíblica. Como chegamos a esse ponto em nossa história é algo interessante, mas essa não é nossa preocupação neste artigo. O importante é que encontremos uma forma de chegar a um consenso. Os nove pontos que proponho a seguir para uma hermenêutica adventista são o resultado de convicções que criaram raízes em mim ao longo de várias décadas como pastor adventista, duas delas dedicadas ao ensino das Escrituras.

1. Uma hermenêutica adventista precisa ser única para toda a igreja, tanto para leigos quanto para eruditosComo alguém que teve a oportunidade de estudar em níveis mais avançados, espero que, como povo, vejamos nossos eruditos como um trunfo, não uma ameaça; como servos da igreja, em vez de funcionários duvidosos. Por outro lado, almejo que nossos eruditos não vejam seu aprendizado como um fim em si mesmo, mas como um privilégio para compartilhar as riquezas das Escrituras com os membros da igreja. Acima de tudo, espero que não caiam na tentação de se sentirem especialistas.

Como cristãos protestantes, os adventistas não têm “especialistas” nas Escrituras. Todos podemos abrir a Bíblia e aprender com o maior Especialista: o Espírito Santo. Os estudiosos e eruditos podem nos ajudar a obter maior compreensão da Palavra de Deus, mas jamais poderão substituir a experiência individual de cada crente com o Deus das Escrituras.

Não deve haver nenhum elitismo na Igreja Adventista. Nenhuma hermenêutica que exija um doutorado para ser aceita. Nada que obrigue a saber grego, hebraico ou aramaico. A hermenêutica adventista deve ser para toda a igreja.

2. O fator divino nas Escrituras. Ellen G. White, uma das vozes mais influentes do adventismo, escreveu: “Os Dez Mandamentos foram pronunciados pelo próprio Deus, e por Sua própria mão foram escritos. São de redação divina e não humana. Entretanto, a Escritura Sagrada, com suas divinas verdades, expressas em linguagem de homens, apresenta uma união do divino com o humano. União semelhante existiu na natureza de Cristo, que era o Filho de Deus e Filho do homem. Assim, é verdade com relação à Escritura, como o foi em relação a Cristo, que ‘o Verbo Se fez carne e habitou entre nós’ (Jo 1:14).”1

Devemos primeiramente referir-nos à Bíblia como sendo a Palavra de Deus, da mesma forma que dizemos a respeito de Jesus que Ele é o Filho de Deus. No entanto, quando entramos em contato com a Bíblia, nós a temos primeiramente como composição humana, assim como o povo nos dias de Jesus viu pela primeira vez Sua humanidade. Em ambos os casos, a fé deve nos conduzir à divindade além da humanidade. Com essa pressuposição, nossa perspectiva subjacente muda.

Por essa razão, estabelece-se uma disputa com as diversas alternativas de se estudar a Bíblia, como alguém estudaria outro livro qualquer, antigo ou contemporâneo. Os pesquisadores concordam que, em qualquer disciplina, o método empregado deve ser condizente com o conteúdo. Estranhamente, porém, grande parte da crítica erudita moderna tenta estudar as Escrituras por si mesma, enquanto apenas estende a “possibilidade” para um elemento divino – o que, de fato, é seu fator constitutivo. Como uma criança do Iluminismo, tentando libertar seu estudo das conclusões dogmáticas exigidas pelos líderes eclesiásticos, a crítica tem, no entanto, colocado de lado o que é o cerne de sua matéria. Se queremos interpretar corretamente a Bíblia, precisamos nos aproximar dela com atitude humilde e reverente.

3. A humanidade das Escrituras. Em relação à Bíblia, afirmamos: Ela é a Palavra de Deus e é palavra humana. Há um mistério divino aqui. Novamente, é semelhante à união da divindade e da humanidade na pessoa de nosso Salvador. Podemos lutar para entender o enigma, porém, em última instância, devemos aceitar o mistério. Insistir na clareza lógica resultará na ênfase imprópria de um elemento ou de outro.

Devemos reconhecer francamente a humanidade das Escrituras, com imperfeições de linguagem, erros de cópia e tradução, aparente falta de ordem e unidade. De fato, “não são as palavras da Bíblia que são inspiradas, mas os homens é que o foram”;2 assim, rompemos com uma postura fundamentalista.

Essas palavras são assustadoras! Seria mais simples ter uma Bíblia em que cada palavra tivesse sido ditada por Deus, assim como seria mais fácil compreender o mistério da pessoa de Jesus se Sua humanidade fosse apenas um invólucro ou uma forma. Assim como alguns estudiosos nunca aceitaram a real humanidade de Cristo, também há aqueles que têm a tendência de pensar que a inspiração das Escrituras ficaria ameaçada se levássemos a sério sua humanidade.

Vemos aqui um exemplo do que ocorre em minha área de estudo e especialização, o Novo Testamento. Há um grupo significativo de eruditos críticos que dissecam os Evangelhos, lançando dúvidas sobre a própria pessoa de nosso Senhor, até que alguém seja deixado no ar imaginando o que Jesus realmente disse, o que foi colocado em Sua boca pela igreja que O sucedeu, e até que Seu nascimento miraculoso, Seus milagres e Sua ressurreição sejam relegados à categoria de mito. Esses críticos, no entanto, concordam em um ponto: que Cristo morreu em uma cruz.

Observe como cada um dos evangelistas registrou as palavras que Pilatos mandou colocar sobre a cabeça de Jesus. À primeira vista, o fato que surpreende é que cada evangelista fez um relato diferente dessas palavras. Como poderia ser isso? O que Pilatos realmente mandou escrever? Em Mateus está escrito “Este é Jesus, o rei dos judeus” (Mt 27:37); em Marcos, “O rei dos judeus” (Mc 15:26); em Lucas, “Este é o rei dos judeus” (Lc 23:38) e; em João, “Jesus Nazareno, o rei dos judeus” (Jo 19:19). Todos eles ressaltaram o mesmo ponto: Cristo era o rei dos judeus. A memória é complicada e seletiva, mas a ideia-chave, a informação que Deus quer que tenhamos, está muito clara.

4. A Bíblia deve ser seu próprio intérprete. Uma vez que a Bíblia é a Palavra de Deus, ela tem apenas um Autor, porém, muitos escritores. Isso faz das Escrituras uma unidade sólida, espiritual, que se revela ao estudante sincero e diligente. Muitas vezes essa unidade é obscurecida pela humanidade da Bíblia – as fragilidades dos seus escritores, o tempo e o lugar da revelação divina. Apesar disso, devemos sempre procurar entender o quadro geral. Precisamos ler e estudar toda a Bíblia, sem negligenciar nenhum capítulo ou livro porque nos parece menos atraente.

Permitir que a Bíblia se interprete significa não impôr conclusões pré-estabelecidas sobre o texto. Precisamos ouvir as Escrituras. Não afirmamos, por exemplo, que porque a inspiração significa tal ou tal coisa ou nossa teologia exige isso ou aquilo, que o texto não pode significar o que parece dizer.

A hermenêutica adventista deve ser moldada pelo estudo integral da Palavra. Podemos nos beneficiar do que outros escreveram sobre a Bíblia, mas nossa abordagem deve emergir do minucioso estudo da própria Bíblia.

5. A interpretação é mais uma arte do que uma ciência. Deus Se revela na Bíblia, ela é Sua Palavra, e Ele não ocultou a mensagem que desejava transmitir. Por meio do estudo cuidadoso da revelação, os pesquisadores sinceros da verdade conhecerão como Deus é e como eles podem manter um relacionamento salvífico com Ele.

Entretanto, o estudo da Bíblia é mais uma arte do que uma ciência. Ao estudá-la, trazemos nossa personalidade e individualidade, e filtramos a Bíblia através de nossas experiências de vida. As Escrituras têm uma forma particular de falar a cada um de nós. Portanto, ninguém pode reivindicar ter a única e definitiva interpretação da Palavra de Deus. Nunca fiquei tão impressionado com uma de suas mensagens como quando ouvi um pregador afro-americano expor a riqueza e a profundidade dos textos que falam da libertação de Israel da escravidão egípcia. Isso nos leva ao próximo fundamento.

6. Precisamos uns dos outros. A Bíblia é o livro da igreja, não simplesmente do mundo acadêmico. Precisamos ouvir uns aos outros, aprender uns com os outros. O membro leigo necessita do conhecimento do erudito, e o erudito precisa das ideias que o fiel membro leigo, nutrido por anos de reflexão pessoal e aplicação da Palavra, imprime ao texto. Os eruditos bíblicos precisam escutar uns aos outros, construir pontes de comunicação e diálogo.

Essa dimensão corporativa de interpretação é o complemento do aspecto individual, e serve não só para enriquecer, mas para proteger. Na multidão de conselheiros encontramos sabedoria, e todo crente é um mestre na família da igreja.

7. Abandonar a terminologia conflitante. Após todos esses anos analisando o assunto, penso que a melhor decisão que nossos eruditos e teólogos poderiam tomar seria apagar o termo “método crítico-
histórico” do seu vocabulário. Sou avesso a cunhar outro termo para nossa abordagem bíblica, e pergunto: será que realmente precisamos de um novo termo? Não tenho dúvida de que o “método crítico-histórico” se tornou um terror entre nós, uma expressão que aumenta as dificuldades e gera tensão em vez de luz. Somente permaneceremos unidos se abandonarmos essa abordagem.

Estou convencido de que os pressupostos desse método: a racionalização do sobrenatural, a sequência linear da história e a postura meramente “objetiva”, não podem fazer parte de uma hermenêutica adventista. Essa abordagem eviscera o texto e rouba sua alma.

No entanto, também estou convencido de que a Bíblia é uma produção humana, e pode ser estudada como tal. Fiz meu doutorado na Universidade Vanderbilt e, como outros estudantes adventistas, cursei a disciplina obrigatória de Método de Interpretação Bíblica, do grande professor J. Philip Hyatt. A primeira área que estudamos sob o método crítico-histórico foi a crítica textual. Atualmente, não conheço nenhum teólogo ou erudito adventista que não reconheça o valor da crítica textual para a interpretação do texto bíblico. Contudo, acho que é um debate sem fim argumentar que, por causa do uso da crítica textual, os estudiosos adventistas se envolveram com o método crítico-histórico.

8. Concentrar nos ensinamentos simples das Escrituras, e não nas “nozes duras”. Não digo que devamos negligenciar as “nozes duras”. Elas podem conter uma castanha ou amêndoa usada pelo Senhor para impactar nossa mente e nosso viver. Mas não devemos nos concentrar tanto nas passagens difíceis da Bíblia e ficar tão obcecados com os textos problemáticos a ponto de perder nossa perspectiva subjacente.

A pessoa para quem a Bíblia já não apresenta mais dificuldades é alguém que parou de pensar. Entretanto, a pessoa que permanece continuamente sobre as “nozes duras” se tornará desequilibrada em hermenêutica e, talvez, até mesmo na fé.

9. Estudar, aplicar e praticar. A hermenêutica adventista não deve se contentar apenas com a interpretação e compreensão do texto sagrado. O apóstolo João resume o propósito das Escrituras: “Estes, porém, foram registrados para que creiais que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo, tenhais vida em Seu nome” (Jo 20:31).

O versículo pode ser entendido como “chegar a crer em Jesus como o Cristo” ou “continuar a crer em Jesus como o Cristo” (os manuscritos antigos variam no tempo do verbo). Em ambos os casos, o ponto é específico: o objetivo da Bíblia é nos conduzir à fé.

Assim, se somos teólogos, eruditos, pastores ou membros leigos, nosso estudo das Escrituras não será um fim em si mesmo. Seu exame envolve atividade intelectual, mas não é meramente uma busca intelectual. O Senhor deseja que nossos esforços para interpretar Sua Palavra envolvam todo o nosso ser e resultem em mudanças cruciais em nossa vida. Ao nos alimentarmos de Sua Palavra e interagirmos com Seu Espírito, cresceremos na fé. Além disso, estaremos mais bem equipados para transmitir a mensagem a outros.

O erro das “erudições bíblicas modernas” é sua postura intencional de desapego à fé e ao compromisso que a Palavra requer. Todos estamos sujeitos a cair em armadilha semelhante quando nos limitamos somente a discutir o significado do texto bíblico ou debater como interpretar as Escrituras em vez de colocar em prática o que elas nos dizem, interagindo assim com o próprio Senhor por meio delas.

Que o Senhor nos faça homens e mulheres que realmente preguem a Palavra da verdade, e que vivam de toda palavra que procede da boca de Deus! 

Referências

  • 1 Ellen G. White, O Grande Conflito, <egwwritings.org>,p. 7.
  • 2 ________________ , Mensagens Escolhidas, v. 1, <egwwritings.org>, p. 21.