Os procedimentos eclesiásticos são normativos e autoritativos na medida em que estejam de acordo com a Palavra de Deus nas Escrituras

A Igreja Adventista do Sétimo Dia tem a Escritura Sagrada em grande estima. É a Palavra de Deus escrita e constitui seu único credo. É a revelação infalível da vontade divina; é norma do caráter, critério para avaliar a experiência; é a revelação autorizada de suas doutrinas.

Os adventistas aceitam as Escrituras como “autorizada e infalível revelação” da vontade de Deus.1 Consideram-na autoridade suprema. A “regra infalível pela qual todas as opiniões, doutrinas e teorias devem ser provadas.”2 É a Palavra do Deus infinito, o fim de toda controvérsia e o fundamento de toda fé.

Assim, a idéia de que a Escritura está dotada de autoridade absoluta, é revelação infalível da vontade de Deus pela qual devem ser provadas as opiniões, doutrinas e teorias, suscita entre os adventistas a complexa questão da autoridade das Escrituras versus a autoridade da Igreja organizada. É a autoridade da Escritura de natureza absoluta e a autoridade da Igreja essencialmente relativa? Como se relaciona a autoridade da Escritura com a autoridade da igreja e vice-versa? Para que o princípio de sola Scriptura seja válido, deve a autoridade da Igreja organizada sujeitar-se à autoridade da Escritura? É a autoridade da Igreja superior, inferior ou equivalente à autoridade da Escritura? Em questão de autoridade, o que vem primeiro: a Igreja ou a Escritura?

Obviamente, é impossível desenvolver respostas a todas essas perguntas neste artigo, cujo propósito é definir a natureza da autoridade da Escritura e a natureza da autoridade da Igreja, e apontar a relação mútua entre ambas.

Definição de termos

Ainda que o vocábulo autoridade tenha um significado muito amplo, no contexto deste estudo refere-se ao poder ou à faculdade que uma pessoa, um organismo ou instituição exerce sobre outra no âmbito de convicções ou conduta. Não alude, implica ou significa o sistema de governo eclesiástico. A expressão Escritura faz referência à Palavra de Deus escrita, o Antigo e o Novo Testamento. O termo igreja designa a comunidade messiânica convocada por Deus em Cristo Jesus, através do Espírito Santo, por meio da proclamação de Sua Palavra.3

A frase Igreja organizada denomina a comunidade convocada por Deus e que se congrega sobre a base de um sistema estruturado de administração, go-verno e disciplina. Por autoridade absoluta entende-se que a autoridade da Escritura não se condiciona, limita ou depende de certos fatos ou circunstâncias. Sua autoridade é inquestionável. Por autoridade essencialmente relativa queremos significar que a autoridade da Igreja se condiciona, limita ou depende de certos fatos ou circunstâncias. Sua autoridade pode ser questionável.

Autoridade da Escritura

Quando a Igreja Adventista do Sétimo Dia confessa que a Escritura é a Palavra de Deus escrita e constitui seu único credo; a regra infalível pela qual devem ser provadas toda opinião, doutrina e teoria; o fim de toda controvérsia e o fundamento de toda fé, implica que a Escritura tem autoridade normativa e suprema entre os adventistas. Para estes, a Escritura é a única fonte de toda doutrina (fé) e prática (moral). Crêem e aceitam que a autoridade da Escritura é inquestionável. Sua autoridade é final.

Os adventistas constroem sua convicção sobre a base do que a própria Escritura revela e ensina acerca de Deus, o Criador, Originador, Sustentador, Redentor, único Deus transcendente e pessoal. Sendo o soberano da criação, não apenas revelou nas Escrituras o relato autêntico de Sua atividade criadora, mas também “o profundo e o escondido”, os “mistérios” (Dan. 2:22 e 47).

Revelação que é possível através da Palavra de Jeová (I Sam. 3:21) aos profetas e apóstolos, que a comunicaram a Seu povo com autoridade que não lhes era própria, mas derivada do Espírito Santo de Deus.

Quando os “homens santos falaram da parte de Deus, movidos pelo Espírito Santo” (II Ped. 1:21) e registraram por escrito o conteúdo recebido, deu-se origem a um depósito, alguma coisa concreta, que no Novo Testamento se interpreta como conhecimento (II Cor. 4:6); ensino (Heb. 2:42); instrução (Rom. 15:4); Palavra de Deus (João 17:4); palavra da verdade (Efés. 1:13),a palavra histórica, normativa, final e inquestionável de Deus. Assim “o texto in toto é o resultado da revelação divina na história, revelação que foi historicamente recebida, entendida e composta pelos profetas e apóstolos”.5

A Palavra de Deus escrita revela todo o necessário para a fé e a prática no processo da salvação. Isso sugere que a Escritura encerra um significado definido, prático e objetivo que é igual a todos os crentes. Os adventistas entendem e aceitam a expressão tradicional protestante sola Scriptura como significando que unicamente a Escritura, nada mais que a Escritura, é autoridade final para fé e prática.

Diz Ellen White: “Em Sua Palavra, Deus conferiu aos homens o conhecimento necessário à salvação. As Santas Escrituras devem ser aceitas como autoridade e infalível revelação de Sua vontade. Elas são a norma do caráter, o revelador das doutrinas, a pedra de toque da experiência religiosa…. Explicitamente declara ser ela mesma a norma pela qual todo ensino e experiência de-vem ser aferidos.”6

Em síntese, é a autoridade da Escritura de natureza absoluta para os adventistas? Certamente sim. A Escritura é histórica, normativamente autoritativa e inquestionável por ser a revelação e, sobretudo, a Palavra de Deus. O Deus que Se revela através da Escritura, Senhor e soberano da criação e da História, tem direito a exercer Sua autoridade suprema e soberana sobre a humanidade e a Igreja.7 Porém, que dizer da autoridade da Igreja organizada?

Autoridade da Igreja organizada

Da evidência neotestamentária destacam-se vários fatos que importam à definição da autoridade da Igreja. Primeiro, como Criador, Originador, Sustentador, Revelador, Redentor, Senhor todo-poderoso e Rei, em Sua expressão trinitária, Deus é a fonte e o fundamento da autoridade da Igreja, porque Ele é quem a chama à existência.

Em I Tess. 1:1, Paulo define a reunião ou assembléia de cristãos não somente por uma referência geográfica, mas também teológica, ao conectar o substantivo eklésia à frase preposicional “em Deus Pai”, considerada “uma expressão não usual nos escritos paulinos”.8 Presumivelmente, para os habitantes de Tessalônica, o vocábulo eklésia pode ter tido os significados e conotações habituais dos círculos gregos, “mais uma assembléia dos tessalonicenses”.

Aparentemente Paulo quer enfatizar a seus leitores em Tessalônica que esta assembléia é diferente. Ele parece ver a igreja em Tessalônica surgindo no contexto da história salvífica graças à iniciativa particular e ação de Deus. De acordo com I Tessalonicenses, Paulo infere que os crentes tessalônicos foram trazidos à existência por Deus (estão em “Deus Pai”) porque Ele os amou (I Tess. 1:4), os escolheu (I Tess. 1:4), os estabeleceu (I Tess. 5:9) e os chamou (I Tess. 2:12; 4:7; 5:23 e 24) à santificação.

A expressão “a palavra”, em I Tess. 1:6, introduz um conceito essencial que é determinante na declaração de Paulo concernente a seus ensinamentos sobre a Igreja cristã. Com essa expressão, Paulo define o termo cristão “evangelho” de I Tess. 1:5. Da mesma forma, com a declaração “Palavra de Deus”, em I Tess. 2:13, o apóstolo especifica e explica a frase “o evangelho de Deus”, de I Tess. 2:2, 8 e 9.

Paulo baseia seu conceito da escolha e o chamado dos tessalonicenses no fato de que o evangelho, a Palavra de Deus, chegou aos de Tessalônica não somente “em palavra, mas, sobretudo, em poder, no Espírito Santo” (I Tess. 1:5). Nas palavras de Frame, “a prova da escolha é a presença do Espírito não só no pregador, mas também nos ouvintes que receberam a palavra com gozo em meio a grande perseguição”.Depois de haverem “recebido a palavra… em meio de muita tribulação, com alegria do Espírito Santo”, os ouvintes tessalonicenses chegaram a ser “imitadores” de Paulo, Silas, Timóteo “e do Senhor” (I Tess. 1:6). Receberam a palavra e a acolheram “não como palavra de homens, e, sim como, em verdade é, a Palavra de Deus, a qual, com efeito” opera em todos os crentes (I Tess. 2:13).

É realmente significativa a ordem dos eventos no processo da constituição da eklésia dos tessalonicenses em Deus Pai. A expressão “tendo recebido”, em I Tess. 1:6, indica um tempo anterior ao tempo do verbo principal da frase, “vos tomastes”. Portanto, ninguém de Tessalônica chegou a ser imitador de Paulo, Silas, Timóteo e do Senhor até que primeiramente tivesse a oportunidade de ouvir, receber e aceitar a Palavra de Deus. Quando os tessalonicenses começaram a escutar Paulo, Silas e Timóteo, não eram ainda a eklésia dos tessalonicenses em Deus Pai. Eram somente eklésia no sentido grego secular; mais uma eklésia em Tessalônica. Mas quando, pelo poder e evidência do Espírito Santo, essa eklésia secular recebeu a Palavra de Deus, então chegou a ser imitadora de outros cristãos, foi constituída em Deus Pai e veio à existência.

Assim, o ponto principal é que os crentes receberam a Palavra de Deus, que chamou e reuniu a eklésia dos tessalonicenses através da proclamação de Sua palavra tal como aconteceu em Jerusalém (Atos 2:40-42; 6:7). A primeira carta aos tessalonicenses contém um elemento adicional e muito mais significativo quanto ao modo como Deus tornou realidade a conformação eclesiástica dos cristãos em Tessalônica: foi em virtude da proclamação da Palavra de Deus que a eklésia dos tessalonicenses foi constituída por Deus Pai que a tomou Sua em Jesus Cristo (I Tess. 1:1).

Embora a expressão logos (palavra) aparentemente possua antecendentes veterotestamentários em seu emprego para referir-se ao poder de Deus, evangelho é uma expressão originada e preferida por Paulo. Esse vocábulo abarca um conceito específico, o fato de Jesus como o Senhor e Messias, o Cristo.10 Na teologia paulina, o “evangelho de Cristo” (I Tess. 3:2) é o evangelho de Deus, “prometido por intermédio dos Seus profetas nas Sagradas Escrituras, com respeito a Seu Filho, o qual,… veio da descendência de Davi” (Rom. 1:2 e 3).

Do relato de Lucas, em Atos 17:1-10, sabe-se que Paulo argumentou em Tessalônica desde as Escrituras, explicando e expondo dois pontos essenciais. Primeiro, apresentou à sua audiência as incríveis realidades relativas ao Messias prometido. Foi “necessário que o Cristo padecesse e ressurgisse dentre os mortos” (Atos 17:3). Segundo, reconhecendo os sinais e características especiais do Messias bíblico, Paulo o associou a Jesus. Para o apóstolo, Jesus “é o Cristo”. O significado da mensagem é clara e precisa: Jesus é o Messias que padeceu e ressurgiu dos mortos.

Segundo Lucas, então, o conteúdo da mensagem de Paulo em Tessalônica pode ter sido a paixão, morte e ressurreição de Jesus, tema típico da pregação primitiva. A essência dessa proclamação foi extraída das Escrituras, ou seja, de passagens bíblicas selecionadas com as quais Paulo demonstrou que “os fatos históricos cumpridos no ministério, morte e exaltação de Jesus” foram um claro cumprimento das profecias.11 Ainda que tais profecias não sejam mencionadas neste resumo do evangelismo de Paulo, a história completa de Jesus foi apresentada à luz das profecias messiânicas.12

A ênfase de Paulo em seu processo evangelizador pode ter sido muito estranho a seus ouvintes judeus, já que envolvia considerável tensão entre Jesus Cristo e a figura messiânica tradicional sustentada pela exegese judaica. Para um auditório hebreu, a confissão “o Messias morreu por nós” deve ter sido uma “novidade sem precedentes”, “um escândalo que contradizia a prevalecente expectação messiânica popular”.13 No entanto, Paulo se submetia à Palavra de Deus na Escritura. Tal palavra lhe era revelação normativa e autoritativa em sua missão evangelizadora.

Como resultado dessa apresentação, a mensagem do evangelho teve grande impacto sobre os ouvintes judeus e gentios. Alguns deles creram e se juntaram a Paulo e Silas, e grande número de gregos piedosos (Atos 17:4). Os que foram persuadidos a crer pela evidência bíblica apresentada por Paulo e receberam a Palavra constituíram-se o núcleo original da igreja dos tessalonicenses, não só em Deus Pai, mas também no Senhor Jesus Cristo, o Messias.

Do que foi dito até aqui, Paulo aparentemente via a igreja cristã em Tessalônica como sendo originada e constituída por Deus através da proclamação de Sua Palavra normativa e congregada em Cristo, o Messias revelado na Palavra de Deus.

O segundo fato da evidência neotestamentária que importa à definição da autoridade da Igreja é que esta possui e exerce autoridade em virtude de ser o corpo de Cristo, da qual Ele é a “cabeça” (Efé. 1:22; 4:15 e 16; 5:23; Col. 1:18; 2:19). Tal autoridade eclesiástica é derivada do poder de nosso Senhor Jesus Cristo (I Cor. 5:4) que está presente onde os crentes estão congregados em Seu nome. Cristo como cabeça e Senhor da Igreja ocupa nela o lugar de preeminência (Col. 1:28). Como base ou fonte de direção e inteligência, dirige-a em todos os seus planos e atividades, coordenando todas as suas partes e provendo sabedoria e vitalidade a cada membro do corpo, a fim de que todos trabalhem juntos de maneira efetiva (Efés. 4:15 e 16; Col. 2:19).

Autoridade derivada

Em suma, a Igreja recebe sua autoridade da Escritura que é a palavra escrita e proclamada que lhe dá origem. Sua autoridade também vem de Cris-to, que é a Palavra encarnada, Cabeça, que a dirige e governa. Mas o que aconteceria com a autoridade da Igreja se ela não se colocasse sob a autoridade da Palavra de Deus na Escritura, ou se não se submetesse à autoridade de Cristo? Sem palavra constituinte e sem cabeça governante, a autoridade da Igreja não seria normativa e seria questionada.

Podemos sugerir que a autoridade da Igreja depende da sua fidelidade à Palavra de Deus na Escritura. Seus pronunciamentos, declarações, acordos, conselho, testemunho, prática e missão serão normativos e autoritativos em virtude de sua obediência à revelação autoritativa da Palavra de Deus na Escritura.

A Igreja não é uma instituição que proporciona seus próprios fins. Não é um organismo que esboça linhas ideais do que deve ser segundo a Palavra de Deus na Escritura, em tensão com o que quer ser sobre a base de suas confissões estatutárias e regulamentares.

A Igreja organizada só pode ter autoridade equiparável à da Escritura na medida em que lhe seja obediente. Ela possui verdadeira autoridade enquanto seus ensinamentos e mensagem sejam extraídos da Palavra de Deus. Portanto, a autoridade da Igreja organizada não é igual nem está por cima da autoridade da Escritura. A autoridade da Igreja organizada deveria estar sujeita à autoridade da Escritura.

Referências:

  • 1 Ellen G. White, O Grande Conflito, pág. 7.
  • 2 Idem, pág. 452.
  • 3 R. Pereyra, Ekklesía em el Contexto de I Tessalonicenses: Um Estudio Acerca de la Naturaleza de la Iglesia, Enfoques 11.1-2 (1999), págs. 61-68.
  • 4 Raoul Dederen, The Revelation-lnspiration Phenomenon According to the Bible Writers, pág. 18.
  • 5 F. Canale, Revelation and Inspiration (Monografia não publicada, apresentada para o Instituto de Pesquisa Bíblica da Associação Geral da IASD, abril de 2000), pág. 43.
  • 6 Ellen G. White, O Grande Conflito, pág. 7.
  • 7 Raoul Dederen, The Church: Authority and Unity (On line: www.biblicalresearch.gc.adventist.org/documents/ churchauthority.htm)
  • 8 W. Neil, The Epistle of Paul to the Thessalonians (Nova York: Harper, 1950), pág. 4.
  • 9 J. E. Frame, A Criticai and Exegetical Commentary on the Epistles of St. Paul to the Thessalonians (ICC; Nova York: Charles Scribner’s Son, 1912), pág. 82.
  • 10 S. Kim, The Original of Paul’s Gospel (Tübingen: J. C. B. Mohr, 1984); P. Stuhlmacher, ed., The Gospel and the Gospels (Grand Rapids: Eerdmans, 1991), págs. 149-172.
  • 11 M. Serwick e M. Grosvenor, A Grammatical Analysis of the Greek New Testament: Gospel Acts (Roma: Instituto Bíblico Pontifício), vol. 1, pág. 407.
  • 12 R. C. H. Lenski, The Interpretation of the Acts of the Apostles (Minneapolis: Augsburg, 1961), pág. 692.
  • 13 M. Hengel, The Atonement: A Study of the Origins of the doctrine in the New Testament (Londres: SCM, 1981), págs. 17-89.