O judeu pensava no sábado durante tôda a semana.” 1 Alimentos especiais adquiridos no decorrer da semana eram guardados para o sábado. A quinta-feira era o dia de mercado.

Mas o clímax da preparação ocorria na sexta-feira. Era considerado muito meritório tra-balhar na sexta-feira, como preparação para o sábado. “Os judeus estavam tão ocupados na sexta-feira, preparando-se para o sábado, que tinham certeza que o profeta Elias não aparecería numa sexta-feira com sua mensagem de redenção.” 2

Para evitar a profanação do sábado, logo lhe foram acrescentadas as últimas horas da sexta-feira. Em Jerusalém, um sacerdote, parado sôbre alta torre do templo, tocava uma trombeta como sinal de abandonar todo o trabalho e começar o repouso sabático. O mesmo era feito em tôdas as outras cidades e povoações da Palestina, por um oficial da respectiva comunidade, parado sôbre o teto duma casa alta, que geralmente era uma sinagoga.

Havia seis toques de trombeta:

  • (a) O primeiro era para abandonar os trabalhos, princípalmente o da lavoura. Os homens que trabalhavam mais perto da povoação esperavam os que vinham de mais longe e entravam juntos. Os estabelecimentos comerciais continuavam abertos.
  • (b) Ao ser a trombeta tocada pela segunda vez, as casas de negócio eram fechadas.
  • (c) O terceiro toque indicava que deviam ser tiradas as panelas das cozinhas e envoltas em vários tipos de materiais, para conservarem o calor.

Também deviam ser acesas as lâmpadas do sábado. Os devotos que trajavam filactérias o dia todo, tiravam-nas.

  • (d) Depois de uma pausa, três toques sucessivos de trombeta indicavam que começava definitivamente o descanso sabático. O oficial não podia descer com sua trombeta. Deixava-a sôbre o teto até a noite seguinte, quando dava o sinal de que o sábado havia terminado. 3

O Talmude e a Observância do Sábado4

Talmude (“ensinamento”) originou-se na tradição oral dos judeus, desenvolvida durante vários séculos. Começou a adquirir forma escrita por volta do início do terceiro século de nossa era, “com a codificação de seus elementos básicos — a Mishnah.Durante os dois séculos seguintes foram elaborados e codificados muitos comentários sôbre a Mishnah, que são conhecidos como Gemara. Estas duas coleções em conjunto formam o Talmude e proporcionam a estrutura do judaísmo histórico.” 5 Diversos regulamentos do Talmude, relacionados com a observância do sábado, refletem claramente certas situações ou declarações mencionadas nos Evangelhos. Além disso, há outros que são muito esclarecedores. Examinemos alguns dêles.

a. Os 39 Trabalhos Primários

“Os trabalhos primários são quarenta menos um: semear, arar, colhêr, atar molhos, trilhar, joeirar, selecionar, moer, peneirar, amassar, assar, tosquiar, alvejar, rastelar, tingir, fiar, estirar fios, fazer dois laços, entrelaçar dois fios, dividir dois fios, amarrar e desamarrar, coser dois pontos, rasgar para coser dois pontos, capturar um veado, matá-lo, esfolá-lo ou salgá-lo, curar sua pele, raspá-la (para tirar o pêlo), cortá-la, escrever duas cartas, apagar para escrever duas cartas (sôbre o que foi apagado), edificar, derrubar, extinguir (fogo), acender, bater com um martelo e transportar algo de uma propriedade para outra: êstes são os trinta e nove trabalhos primários.” 6

Baseados nesta lista, os judeus acusaram pelo menos três vêzes a Jesus e a Seus discípulos de violar o sábado ou de induzir outros a transgredi-lo:

  • (a) Os discípulos colhem espigas, esfregam-nas e comem o grão (S. Mat. 12:1-8; S. Mar. 2:23-28; S. Luc. 6:1-5). Acusados de: colhêr, trilhar e joeirar.
  • (b) Jesus faz barro e o coloca sôbre os olhos do cego de nascença (S. João 9:1-41). Acusado de amassar (barro). Outro preceito do Talmude permite derramar água sôbre o farelo ao prepará-lo como alimento para os animais, mas não permite misturá-lo. 7 Ademais, Cristo transgrediu outra disposição tradicional que proibia ungír-se no sábado de maneira diferente da habitual. Jesus “ungiu” (untou) com lôdo os olhos do cego.

“Se alguém está com dor de dentes, não pode sorver vinagre através dêles (. . . isto é curar, o que é proibido no sábado) mas pode molhar (o pão no vinagre) da maneira costumeira, e se ficar curado, que fique. Se alguém tiver dor nas costas, não deve friccioná-las com vinho ou vinagre, mas pode fazê-lo com azeite, se bem que não com azeite de rosas. Filhos de reis podem ungir suas feridas com azeite de rosas, pois costumam ungir-se assim nos dias da semana. Disse R. Simeon: Todo o Israel são filhos de reis.” 8

(c) Jesus cura o paralítico de Betesda e lhe ordena carregar o leito. (S. João 5:1-15.)

O homem é acusado de “transportar algo de uma propriedade para outra,” (o último dos 39 trabalhos primários que eram proibidos).

Outro regulamento da Mishnah afirma que se um homem carregar, num lugar público, “a uma pessoa viva em um leito, não é culpável nem sequer em relação ao leito, porque êste lhe é secundário.”9 Isto parece implicar que carregar um leito vazio era considerado pecaminoso.

De outra forma, não era permitido nem mesmo levar um lenço no sábado, a menos que uma de suas extremidades estivesse costurada no vestido. Neste caso passava, tècnicamente, a fazer parte da vestimenta.10

Não obstante, a própria Mishnah proporcionava uma saída “legal” para quem necessitava transportar algo durante o sábado: “Se alguém transporta (um artigo), com a (mão) direita ou com a esquerda, no regaço ou no ombro, é culpável, porque assim transportavam os filhos de Coate. De maneira disfarçada (quer dizer) com o pé, na bôca, na orelha, no cabelo, no cinto com sua abertura para baixo, entre o cinto e a camisa, na bainha da camisa, nos sapatos ou sandálias, não merece censura, porque não (o) transportou como as pessoas (geralmente) o fazem.” 11 

b. Tratamento no Sábado

Alguns trechos apropriados:

“Não podemos comer hissopo grego no sábado, pois não é alimento de pessoas sãs (. . . mas sim, um remédio); podemos, porém, comer Yo’ezer (certa planta) e beber abub ro’eh (literalmente : ‘flauta do pastor’ — nome de uma planta (Eupatório) usada com propósitos medicinais). O homem pode comer qualquer espécie de alimento como remédio, e beber qualquer líquido (desde que não sejam comidos e bebidos sem intenções curativas), com exceção da água de côco e um medicamento de raízes, pois êstes são (remédios) para a icterícia; mas pode-se tomar água de côco para saciar a sêde, e friccionar-se com óleo de raízes sem propósitos medicinais.” 12

“Se alguém fôr acometido duma fome voraz, pode-se dar de comer para êle também coisas imundas, até seus olhos se aclararem. . . . Diz R. Matthia b. Heresh: Se alguém sentir dor de garganta, pode introduzir remédios na bôca durante o sábado, porque existe a possibilidade de perigo para a vida humana e tudo o que faça perigar a vida humana suspende as (leis do) sábado.” 13

“… todos os requisitos da circuncisão podem ser feitos no sábado.” 14

Em relação com isto, citamos duas declarações significativas: (a) Afirma o rabi Eliézer (cêrca de 90 A. D.): “A circuncisão está acima do sábado. … Se êle (o homem) passa o sábado por alto, devido a um de seus membros, não deveria passar o sábado por alto devido a todo o seu corpo (se há perigo de morte)?” 15 (b) Declaração do Talmude por volta do ano 100 de nossa era: “Se a circuncisão que se relaciona com apenas um dos duzentos e quarenta e oito membros do corpo humano, suspende o sábado, quanto mais deveria (a salvação de) todo o corpo suspender o sábado!” 16

Dos trechos anteriores, torna-se claro que os judeus permitiam atender no sábado sòmente os casos de enfermidade que pusessem a vida em perigo imediato.

De uns 20 milagres de cura mencionados nos Evangelhos, os seguintes 7 foram efetuados no sábado, e quase todos originaram violentas críticas e oposição a Jesus, pois, aparentemente, em nenhum dêles havia perigo imediato de morte:

  • (a) O paralítico de Betesda — S. João 5:1-15
  • (b) O endemoninhado na sinagoga — S. Mar. 1:21-28
  • (c) A sogra de Pedro — S. Mar. 1:29-31
  • (d) O homem da mão ressequida — S. Mar. 3:1-6
  • (e) O cego de nascença — S. João 9:1-41
  • (f) A mulher inválida —S. Luc. 13:10-17
  • (g) O homem hidrópico — S. Luc. 14:1-4

c. “Jornada de um sábado” (Atos 1:12)

A frase que forma êste subtítulo aparece sòmente em Atos 1:12. Descreve a distância entre Jerusalém e o monte das Oliveiras. Josefo diz que esta distância era de 5 ou 6 estádios 17, isto é, mais ou menos um quilômetro.

Com isto coincidem várias afirmações da Mishnah, em que o “limite do sábado” é fixado em 2.000 côvados. 18 Eis um exemplo:

“Se um homem a quem isto era permitido, saiu fora do limite do sábado e lhe foi dito então que o ato (que pensava executar) já havia sido feito, êle tem o direito de mover-se dentro de dois mil côvados em qualquer direção. Se estava dentro do limite do sábado, considerava-se como se não houvesse saído. Todos os que saem para salvar uma vida podem regressar a seus lugares de origem.” 19

Há duas maneiras de explicar a origem da medida de 2.000 côvados:

  • (a) A tradição judaica afirma que a distância entre a tenda mais afastada do acampamento israelita no deserto, e o tabernáculo, era de 2.000 côvados. Assim todo israelita podia ir até o tabernáculo sem transgredir a ordem: “Ninguém saia do seu lugar no sétimo dia” (Êxo. 16:29).
  • (b) Outros recorrem a Josué 3:4, onde se afirma que entre os sacerdotes e o povo devia haver um espaço “de cêrca de dois mil côvados”, ao ser atravessado o Jordão.

Contudo, havia maneiras de evitar a rigidez dêste limite, em certas circunstâncias:

“Se um homem que viaja (em direção ao lar) fôr surpreendido pelo crepúsculo, e conhecer alguma árvore ou muro e disser: “Que minha base sabática esteja debaixo dela!’ sua afirmação nada lhe valerá. Entretanto, se disser: ‘Que minha base sabática esteja junto a sua raiz!’ poderá andar dois mil côvados, e desde a raiz até sua casa, outros dois mil côvados. Destarte, pode caminhar quatro mil côvados depois de anoitecer.

“Caso não conheça nenhuma árvore ou muro, ou se não conhecer a halachah, e disser: ‘Que minha posição atual seja minha base sabática!’ sua posição dá-lhe o direito de movimentar-se num raio de dois mil côvados em qualquer direção. . . . Os sábios, no entanto, estabeleceram que as distâncias devem ser reduzidas a um quadrado na forma de uma tabuinha quadrada, de maneira que êle possa atingir a área dos cantos.” 20

Também se poderia ocultar alimento a intervalos apropriados ao longo do caminho que se esperava percorrer. “Então, pràticamente, o lugar onde estava o alimento podia ser considerado como outro ‘lar’ de seu dono. De cada um dêsses depósitos de alimento era possível, pois, percorrer outro caminho de um sábado, até o depósito seguinte.” 21

d. Vestuário Pessoal

“Com que pode sair e com que não pode sair uma mulher? . . . Ela não pode sair com fitas de lã e de linho, ou com fitas ao redor da cabeça; nem pode realizar a imersão ritual enquanto estiver com elas, a menos que as solte. (Não pode sair) à rua com adornos na frente, grinaldas (sarbitin), caso não estejam costuradas, ou com rêde para o cabelo (kabul) . . . ou com brincos, ou com anel sem sêlo. . . . Todavia, se sair (com isto), não está obrigada a apresentar oferta pelo pecado.” 22

“Se alguém cortar as unhas com as outras ou com os dentes, ou (se arrancar) o cabelo, o bigode ou a barba; e se (uma mulher) trançar o cabelo, ou se pintar (as pálpebras ou o rosto), R. Eliézer os declara culpados, ao passo que os rabinos proibem (estas ações) como shebuth.” 23

“Também era considerado como transgressão do sábado olhar num espelho pendurado na parede.” 24

2. Outras Determinações Sôbre o Descanso Sabático

“Pode-se dobrar as roupas até quatro ou cinco vêzes, e estender os lençois nas camas durante a noite de sábado, para usá-los nesse dia, mas não no sábado para (usar) depois dêle ser concluído.” 25

“Pode-se guardar alimento para três refeições. … Se ocorrer um incêndio na noite de sábado, pode-se salvar alimento para três refeições; (se) fôr de manhã, pode-se salvar alimento para duas refeições; à (hora de) minhah, alimento para uma refeição. Disse R. José: Em todo tempo podemos salvar alimento para três refeições.” 26

Algumas disposições revelam claramente que havia divergência de opiniões. São especialmente dignas de nota algumas divergências entre as escolas iniciadas por Hillel e Shammai, doutores da lei que alcançaram fama no fim do primeiro século antes de Cristo:

  • (a) “Regra de Beth Shammai: Não se deve vender (algo) a um gentio, ou ajudá-lo a carregar (um asno), … a menos que possa chegar a um lugar próximo; mas Beth Hillel o permite.” 27
  • (b) Shammai insistia que ao conseguir pássaros para o sacrifício num dia de festa, a escada não podia ser mudada dum pombal para outro, mas sòmente de uma abertura a outra do mesmo pombal. Hillel, porém, permitia ambas essas coisas. 28    
  • (c) Shammai permitia comer um ôvo posto no sábado, mas Hillel o proibia, afirmando que a proibição de preparar alimento no sábado se aplicava não sòmente aos homens mas também às galinhas. 29

Era considerado ilegal expectorar sôbre o solo porque assim talvez se estivesse regando uma planta. 30

Um princípio geral estabelecido pelo rabi

Aquiba:

“Tôda (espécie de) trabalho que pode ser realizado na véspera do sábado, não invalida (quer dizer, não deve ser feito em) o sábado; mas o que não se pode fazer na véspera do sábado, isso invalida o sábado.” 31

Tôdas as determinações citadas acima não são mais que uma demonstração da maneira meticulosa e particularizada como os judeus regulamentaram a observância do sábado. Olvidando o espírito da lei, exigiam de si mesmos e dos outros mais do que o próprio Deus havia especificado. E neste afã, chegavam até a contradizer a lei que pretendiam cumprir. Com razão, disse-lhes Jesus: “Jeitosamente rejeitais o preceito de Deus para guardardes a vossa própria tradição.” S. Mar. 7:9.

Referências

  • 1) Hayyim Schauss, The Jewish Festivais (Nova York, União das Congregações Hebraico-Americanas, 1938), pág. 13.
  • 2) Loc. cit.
  • 3) Schauss, op. cit., págs. 13 e 14.
  • 4) Citações tiradas da Mishnah traduzida em The Babylonian Talmud, editado por Isidoro Epstein (35 volumes, Londres, The Sonsino Press Lt. 1935-1952). Nós as colhemos do S. D. A. Bible Students’ Source Book, Washington D. C., Review and Herald Publ. Assn., 1962, págs. 847-856.
  • 5) The S. D. A. Bible Commentary (SDABC), Vol. 5, pág. 96.
  • 6) Shabbath 7.2, no Talmude 73a, págs. 348 e 349.
  • 7) Shabbath 24.3, no Talmude, pág. 794. Cit. no SDABC, Vol. 5, pág. 998.
  • 8) Shabbath 14.4, no Talmude 111a, págs. 539 e 540.
  • 9) Shabbath 10, no Talmude, pág. 448. Cit. no SDABC, Vol. 5, pág. 949.
  • 10) SDABC, Vol. 5, pág. 587.
  • 11) Shabbath 10.3, no Talmude 92a., págs. 439 e 440.
  • 12) Shabbath 14.3, no Talmude 109b, pág. 532.
  • 13) Yoma 8.6, no Talmude 83a, pág. 407.
  • 14) Shabbath 19.1, no Talmude 130a, pág. 649.
  • 15) Tosephta Shabbath 15.16. Ver SDABC, Vol. 5, pág. 979.
  • 16) Yoma 85b, no Talmude pág. 421. Ver Loc. cit.
  • 17) Antigüedades, xx 8.6; Guerras v 2.3.
  • 18) Ver ‘Erubin 4.5, 6 (Talmude 45a, 45b); ‘Erubin 5.8 (Talmude 61a).
  • 19) ‘Erubin 4.3, no Talmude, pág. 306. Ver SDABC, Vol. 5, pág. 126.
  • 20) ‘Erubin 4.8, no Talmude 49b, págs. 343 e 344.
  • 21) SDABC, Vol. 5, pág. 587.
  • 22) Shabbath 6.1, no Talmude 57a, pág. 266.
  • 23) Shabbath 10.6, no Talmude 94b, pág. 452.
  • 24) SDABC, Vol. 5, pág. 587.
  • 25) Shabbath 15.3, no Talmude 113a, págs. 551 e 552.
  • 26) Shabbath 16.2, no Talmude 117b, pág. 576.
  • 27) Shabbath 1.5, 6, 7, 8, no Talmude 17b, pág. 73.
  • 28) Shabbath 1.7, no Talmude, pág. 73. Cit no SDABC, Vol. 5, 97.
  • 29) ‘Eduyyoth 4.1, no Talmude, pág. 22. Cit. no SDABC, Vol. 5, pág. 98.
  • 30) SDABC, Vol. 5, pág. 587.
  • 31) Shabbath 19.1, no Talmude 130a, pág. 649.