Isaac Malheiros

Em 2013, a comissão que preparava o novo hinário de uma grande denominação evangélica dos Estados Unidos queria incluir nele a famosa canção contemporânea “In Christ Alone”, de Keith Getty e Stuart Townend. No entanto, para que a canção fosse aceita, os integrantes da comissão queriam que os compositores autorizassem uma mudança na letra: em vez de “até que na cruz, quando Jesus morreu / a ira de Deus foi satisfeita”,1 sugeriram “até que na cruz, quando Jesus morreu / o amor de Deus foi magnificado”.2 A intenção era suavizar a mensagem, retirando a referência à ira de Deus.

Os compositores não autorizaram a mudança, a comissão rejeitou incluir a canção com sua letra original, e o hino não entrou no hinário.3 Segundo a explicação da comissão, relacionar a cruz com a ira divina produziria um efeito negativo, em vez de construir a fé das novas gerações.4 Por outro lado, Keith Getty, compositor do hino, levantou a questão: “Por que muitos cristãos se esquivam de qualquer pensamento sobre a ira de Deus?”5

Propiciação ou expiação?

Aparentemente, a propiciação é uma doutrina bíblica ofensiva para alguns. Há quem acredite que apenas o conceito de expiação, e não o de propiciação, é aplicável à teologia cristã, pois a morte de Cristo
não teve o objetivo de abrandar a ira de Deus.6 Livros populares para o público cristão têm apresentado Deus como Alguém incapaz de irar-Se ou de castigar.7

Outros tratam expiação e propiciação como sinônimos, apesar de os dois conceitos serem muito diferentes. Como Frank Holbrook corretamente destaca: “propiciação é uma palavra pessoal; propicia-se uma pessoa. Expiação é uma palavra impessoal; expia-se pecado ou crime”.8 Ou seja, propiciar é aplacar a ira, e expiar é corrigir erros.

Os teólogos têm debatido esse tema em torno do significado de palavras hebraicas (kipper e outras relacionadas) e gregas (hilaskomai e outras relacionadas). Contudo, já ficou demonstrado que essa não é somente uma questão de tradução de palavras, mas de compreensão de um conceito: a propiciação está presente em diversos contextos, mesmo quando essas palavras-chave não são usadas.9 A ideia da ira de Deus, que se levanta e resulta em juízo, castigo, destruição e morte,10 está presente em toda a Bíblia.11 Sua ira santa e justa não é equivalente à ira humana, uma emoção relacionada à natureza pecaminosa (Mt 5:21-26; Gl 5:20; Ef 4:31; Cl 3:8).

A diferença básica entre propiciação e expiação está na intenção. Em linhas gerais, a propiciação torna (ou mantém) a divindade favorável ao adorador, enquanto a expiação faz uma reparação pela ofensa cometida. Em seus efeitos, a propiciação é direcionada primariamente à divindade, e a expiação é direcionada aos atos de quem causou a ofensa à divindade.12

A Bíblia apresenta e ensina ambas, expiação e propiciação. E o testemunho bíblico é claro ao descrever como a ira de Deus contra o pecado foi direcionada para Si mesmo (em Jesus Cristo) a fim de que fôssemos poupados. A salvação inclui tanto o perdão e a purificação dos pecados quanto a libertação da ira divina: expiação e propiciação.

Visão distorcida

Teologias mais fundamentadas em sentimentos humanistas do que nas Escrituras têm obscurecido a santa indignação de Deus e desenvolvido teorias mais suaves e mais ajustadas à sensibilidade do ser humano contemporâneo. Entre elas se destaca o universalismo: no fim, Deus vai salvar todas as pessoas, quer elas tenham se arrependido ou não.

A ênfase necessária na graça e no amor de Deus não deve esconder o aspecto santo e justo de Seu caráter. Deus é misericordioso e amoroso (Sl 111:4; Lc 6:36; 1Jo 4:8), mas também é um “fogo consumidor” (Hb 12:29) para o pecado, pois “horrível coisa é cair nas mãos do Deus vivo” (Hb 10:31).13

Como destaca John Stott, o pecado não provoca ira em nós mesmos e, por isso, não acreditamos que o pecado provoque a ira de Deus.14 É preciso tomar cuidado para não selecionar da Bíblia somente o que é confortável, e criar um deus que é apenas a projeção dos nossos sentimentos e conceitos.

Teologias centradas no indivíduo e no seu comportamento também tendem a diminuir a severidade da ira de Deus e a natureza propiciatória da morte de Jesus, uma obra que só Ele poderia ter feito, ao sugerir claramente que seria possível escapar da ira divina apenas imitando Seu exemplo. Quando o ser humano se vê diante de Deus, consciente de sua condição pecadora, ele sente a necessidade de orar como o publicano, “Ó Deus, sê propício a mim, pecador!” (Lc 18:13), e não de proclamar suas obras, como fez o fariseu (v. 11, 12).

Paulo, em sua carta aos Romanos, afirmou que a “ira de Deus se revela do Céu contra toda impiedade e perversão dos homens” (1:18); que o impenitente acumula para si mesmo “ira para o dia da ira e da revelação do justo juízo de Deus” (2:5); e que será recompensado com “ira e indignação” (2:8). O apóstolo afirmou ainda que “a lei suscita a ira” (4:15) e perguntou: “Porventura, será Deus injusto por aplicar a Sua ira?” (3:5).

Felizmente, Paulo também apresentou a solução: somos “justificados gratuitamente [pela graça divina], mediante a redenção que há em Cristo Jesus, a quem Deus propôs, no Seu sangue, como propiciação, mediante a fé, para manifestar a Sua justiça” (3:24, 25), e, “sendo justificados pelo Seu sangue [de Cristo], seremos por Ele salvos da ira” (5:9). Esse é o quadro completo.

Uma expressão do amor divino

Os críticos da doutrina da propiciação fazem uma caricatura do conceito bíblico. Eles apresentam a imagem de um Deus raivoso que precisa ser apaziguado por um Filho amoroso. Entretanto, essa caracterização não é bíblica, pois não existe distinção entre o propósito do Pai e o do Filho. Pai e Filho amam igualmente e têm a mesma intenção de salvar (1Jo 4:10). Em outras palavras, o próprio Deus faz a propiciação por causa de Seu amor (Jo 3:16).

Ellen White declara que “esse enorme sacrifício não foi feito para despertar no coração do Pai o amor pelo ser humano, nem para fazer com que Ele Se dispusesse a salvá-lo. Não! […] O Pai nos ama, não por causa da grande propiciação; mas Ele proveu a propiciação porque nos ama”.15 A morte de Cristo “não foi a causa do amor de Deus, mas o resultado desse amor. Jesus morreu porque Deus amou o mundo”.16 O amor divino oferece o que a justiça divina exige, e Deus é tanto o reconciliador quanto o reconciliado (2Co 5:19). Na cruz, a justiça de Deus e a Sua misericórdia se beijaram.

Para alguns estudiosos da Bíblia, a propiciação é uma doutrina pagã, pois os pagãos ofereciam sacrifícios para acalmar seus deuses. No entanto, apesar da nomenclatura semelhante, há uma diferença teológica entre os conceitos: na teologia cristã, Deus Se sacrificou para aplacar os efeitos de Sua ira. Ele “estava em Cristo reconciliando consigo o mundo” (2Co 5:19).17

O conceito bíblico de propiciação estabelece que, na cruz, Deus propiciou Sua própria ira, voltando contra Si mesmo Sua indignação, quando “Cristo tomou sobre Si a ira de Deus, que por justiça deveria cair sobre o ser humano”.18

A propiciação evoca as palavras de Abraão: “Deus proverá para Si o cordeiro para o holocausto” (Gn 22:8, ARC), e a afirmação de Isaías de que “ao Senhor agradou moê-Lo, fazendo-O enfermar” (Is 53:10). É, portanto, uma expressão do amor de Deus por Seus filhos, pois “do Seu próprio amor vem o Dom que os reconcilia com Ele”.19

No Calvário, Jesus estava “suportando nossa punição – a ira de Deus contra a transgressão”.20 Foi o “senso da ira de Seu Pai” e o “peso esmagador dos pecados do mundo” que tão rapidamente pôs fim à vida de Cristo na cruz.21 O caráter propiciatório do sacrifício de Jesus O levou a passar por algo semelhante “ao que os pecadores hão de sentir quando os cálices da ira de Deus forem derramados sobre eles”.22

Conclusão

Propiciação e expiação andam juntas, e o desviar da ira de Deus se deu por meio da expiação.23 Conceitualmente, o dia da expiação (Lv 16) continha elementos de propiciação e expiação, remoção de pecados e aplacamento da ira divina. Esses elementos continuam no dia antitípico da expiação. Por isso, a pregação bíblica contemporânea deve conter a séria pergunta: “Como escaparemos nós, se negligenciarmos tão grande salvação?” (Hb 2:2, 3).
A Bíblia ensina que justiça implica punição, e essa não é somente a visão do Antigo Testamento (2Pe 2:4-9; Mt 23:29-38; 2Co 5:10, 11).

Se a Bíblia não tem nenhuma dificuldade em vincular o amor de Deus ao conceito impopular de propiciação, nós também não deveríamos ter. Em vez de separar o amor da propiciação é preciso dar a eles o lugar que a Bíblia lhes concede, pois é somente no sacrifício propiciatório e expiatório de Cristo que o amor encontra sua expressão máxima: “Nisto consiste o amor: não em que nós tenhamos amado a Deus, mas em que Ele nos amou e enviou Seu Filho como propiciação pelos nossos pecados” (1Jo 4:10).

Quando corretamente compreendida, a doutrina da propiciação nos coloca de joelhos e esvazia toda pretensão humana de salvar a si mesmo. À medida que compreendemos a severidade da ira da qual escapamos, e o quanto isso custou ao Pai, convencemo-nos de que não tínhamos a menor chance. Nossa única reação deve ser semelhante a dos anciãos de Apocalipse 4: tirar nossa coroa da cabeça, lançá-la diante do trono e adorar Aquele que vive para todo o sempre (v. 4). 

Referências

1 Em inglês: “The wrath of God was satisfied”.

2 Em inglês: “The love of God was magnified”.

3 Hinário Glory to God, Igreja Presbiteriana dos Estados Unidos (PCUSA). Anteriormente, em 2010, outro hinário já havia publicado o hino com o texto alterado sem a autorização dos compositores. Ver David Music (ed.), Celebrating Grace Hymnal (Macon: Mercer University, Celebrating Grace, 2010).

4 Ed Thornton, “‘The wrath of God was satisfied’ loses hymn its place in new book”, <https://is.gd/fgWpXf>.

5 Jim White, “Removal of song from a hymnal because of reference to an atonement theory is drawing the ire of some”, <https://is.gd/uiVzZd>.

6 “Propiciação é essencialmente um processo pelo qual alguém faz um favor a uma pessoa a fim de torná-la favorável, mas, no NT, Deus nunca é o objeto de propiciação, uma vez que Ele já está do lado das pessoas.” Ver os subdomínios 40.9 e 40.12 em Johannes Louw, Eugene Nida e Rondal Smith, Greek-English Lexicon of the New Testament: Based on semantic domains, (Nova York: United Bible Societies, 1988-1989), v. 1.

7 William P. Young, A Cabana (Rio de Janeiro: Sextante, 2008.), p. 109, 174, 208.

8 Frank B. Holbrook, O Sacerdócio Expiatório de Jesus Cristo (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2002), p. 90.

9 Gn 8:21; 1Sm 26:19; Jó 42:7-8; Ez 5:13. Salvo indicação contrária, os textos bíblicos neste artigo são da versão Almeida Revista e Atualizada, 2ª edição.

10 Êx 32:14, 30; Nm 25:13; 2Sm 21:1-14; 2Rs 24:1-4; Sl 106:30; Lm 3:42-47; Dn 9:7-19.

11 Para um estudo mais profundo sobre a ira de Deus, ver Emilson dos Reis, A Ira de Deus no Mundo dos Homens (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2017).

12 David Hill, Greek Words and Hebrew Meanings: Studies in the semantics of soteriological terms (Eugene: Wipf and Stock Publishers, 2000), p. 23.

13 “A mim pertence a vingança; Eu retribuirei. E outra vez: O Senhor julgará o Seu povo” (Hb 10:30). Por isso, devemos servi-Lo “de modo agradável, com reverência e santo temor” (Hb 12:28).

14 John Stott, A Cruz de Cristo (São Paulo: Vida, 1991), p. 98.

15 Ellen G. White, Caminho a Cristo (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2017), p. 13, 14.

16 Ellen G. White, “Ye Are Laborers Together With God”, The Review and Herald, 2/9/1890.

17 Segundo Holbrook, a morte de Cristo “jamais foi o aplacamento da ira do Pai na forma como os pagãos aplacam seus deuses. Ao contrário, Sua morte foi o meio pelo qual o Deus triúno decidiu aplacar ou sufocar a ‘ira’ divina de uma forma coerente com Sua santidade e que, ao mesmo tempo, tornasse possível a salvação de pecadores arrependidos”, p. 90.

18 Ellen G. White, No Deserto da Tentação (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2016), p. 24.

19 Ellen G. White, Profetas e Reis (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2014), p. 685.

20 Ellen G. White, Mensagens Escolhidas (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2014), v. 3, p. 132.

21 Ellen G. White, Testemunhos Seletos (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2010), v. 1, p. 228.

22 Ibid., p. 229.

23 Ellen G. White, Carta 91, 30/1/1895. Ela cita Hb 2:17 na versão King James e completa o argumento: “[…] ‘para fazer reconciliação pelos pecados do povo’ por meio da expiação.”

Isaac Malheiros, doutorando em Teologia, é pastor do Instituto Adventista Paranaense