Perigos e soluções para o trabalho pastoral

Em 1953, o renomado autor de livros infantis Roald Dahl escreveu um conto intitulado The Great ­Automatic Grammatizator (O Grande Gramatizador Automático). Espantosamente, sua narrativa parecia prever o surgimento da inteligência artificial (IA), que se tornou um dos aplicativos que teve um dos maiores crescimentos de consumo da história até aqui. O conto de Dahl captura a ansiedade gerada pela crescente prevalência da IA e pela diminuição do valor do trabalho criativo humano.

Na tentativa de desmistificar onde estamos e para onde vamos com a IA, convido você a conhecer a tecnologia e a várias ferramentas que ela fornece para a nossa igreja.

Definição

Para resumir, a IA é um software de computador que tenta simular o pensamento humano. Mas, em vez de apenas executar uma lista de instruções, esse software trabalha com um propósito.

Para funcionar, ele precisa ingerir grandes quantidades de dados rotulados de treinamento e, em seguida, analisá-los em busca de correlações e padrões, que, por sua vez, ajudam nas previsões ou tomadas de decisões.

Diferenciação dos humanos

Mesmo que a IA possa se tornar muito inteligente em certas áreas, ela jamais poderá substituir a inteligência humana criada por Deus pois, francamente, nem nós compreendemos totalmente a inteligência humana. Então, como poderemos replicá-la?

Deus nos criou com uma ou duas inteligências predominantes destes nove tipos de inteligência humana e três estilos de aprendizagem:1 inteligência visual-espacial, inteligência musical, inteligência cinestésico-corporal, inteligência linguística, inteligência interpessoal, inteligência lógico-matemática, inteligência intrapessoal (aprendizagem individual), inteligência naturalista (uso da natureza nas explicações), inteligência existencial e estilo de aprendizagem visual, cinestésico ou auditivo.

Apesar de um computador conseguir simular alguns dos tipos de aprendizagem e processos de raciocínio que Deus criou, a IA também busca emular habilidades cognitivas, como o raciocínio, o aprendizado e a autocorreção, obtendo diferentes graus de sucesso. Ela é melhor em alguns estilos de aprendizagem (como a lógico-matemática), é moderadamente boa em outras (como a visual-espacial) e vai muito mal em outras (como a intrapessoal e a interpessoal).

Embora Deus tenha colocado na humanidade o desejo de criar e inventar, parece (até agora) que replicar o processo de pensamento de um cérebro humano não é possível, o que me faz ficar ainda mais maravilhado com o poder, o conhecimento e a criatividade de Deus.

Categorias de IA

Podemos classificar a inteligência artificial por funcionalidade, conforme sugerido por Arend Hintze:2

Máquinas reativas. Uma máquina reativa não tem memória, mas é utilizada especificamente para um determinado tipo de tarefa. Ela geralmente é projetada para fins específicos e não pode ser facilmente usada em outras situações. Um exemplo disso seria um aplicativo de jogo de xadrez que não pode usar jogadas do passado para informar os jogos futuros, em vez disso, ele analisa os movimentos possíveis e escolhe quais são os mais estratégicos.

Memória limitada. Esses sistemas de IA usam experiências passadas para moldar decisões futuras. Um bom exemplo disso é um carro autônomo: “As observações informam ações que ocorrerão em um futuro não tão distante, como um carro mudando de faixa.”3 No entanto, essas observações não são armazenadas permanentemente.

Teoria da mente. “Quando aplicada à IA, [a teoria da mente] significa que o sistema teria inteligência social o suficiente para entender as emoções. Esse tipo de IA seria capaz de deduzir as intenções humanas e prever o comportamento, uma habilidade necessária para que os sistemas de IA se tornem membros integrais do ­mundo humano.”4 Até o momento, esse tipo de IA não existe.

Autoconsciência. Essa funcionalidade é capaz de guardar memórias do passado e fazer previsões, aprender e se tornar mais inteligente, baseando-se em suas próprias experiências. A IA da ficção científica se enquadra nessa categoria, que também não existe ainda.

Questões éticas

Preconceito, discriminação e uso indevido. Como são os seres humanos que treinam os sistemas de IA com conjuntos de dados que eles mesmos criaram, o que for produzido pelos programas pode refletir os vieses e preconceitos de seus criadores. Considere os resultados com cautela e lembre-se de que o resultado será parecido com o conjunto de dados onde foi treinado, sem falar em outros fatores, como o viés algorítmico, por exemplo. Outra questão importante é que um criminoso cibernético poderia desenvolver um “vírus” que distorcesse os dados que estão sendo treinados em um sistema de IA, usando informações erradas para obter um resultado prejudicial.

Privacidade. Os sistemas de IA coletam e processam grandes quantidades de dados sobre nós. Dependendo das regulamentações do país, os dados podem incluir informações pessoais, como localização, histórico de navegação e de atividade nas mídias sociais. Portanto, é imperativo que tais dados sejam utilizados de forma responsável.

Falta de transparência e responsabilidade. Os sistemas de IA geralmente são vistos como complexos e obscuros, o que dificulta o entendimento de como eles tomam decisões e também torna difícil saber como corrigir o processo. Isso pode levar à desconfiança e ao medo da IA.

Controle. Os sistemas de IA estão se tornando cada vez mais autônomos, pois tomam decisões sem o envolvimento humano. Esses sistemas precisam ser monitorados. É importante garantir que os sistemas de IA não representem uma ameaça à nossa segurança ou liberdade (isso para o bem de “muitos”).

Vantagens e desvantagens

Veremos, em primeiro lugar, algumas vantagens da IA:

• Se for programada adequadamente, a IA pode eliminar erros humanos (de ortografia, por exemplo), aproveitando sua precisão programada e sua ­capacidade de tomar decisões embasadas em informações coletadas e padrões abrangentes.

• Os robôs de IA podem substituir os humanos em cenários perigosos, como desarmar bombas e explorar o espaço ou as profundezas do mar.

• A IA não é afetada pelo cansaço, por distrações ou pelo tédio e não precisa de intervalos para descanso. Ela é particularmente boa em tarefas monótonas e repetitivas.

• Embora as atitudes e emoções subjetivas influenciem as tomadas de decisão do ser humano, a IA se baseia em informações factuais como fundamento para seu processo de tomada de decisão (se programada adequadamente).

Por outro lado, a IA também apresenta algumas desvantagens:

• O desenvolvimento da IA exige ­hardwares e softwares sofisticados, além de um investimento significativo de tempo. Os dispositivos de IA exigem atualizações e manutenção regulares, o que os torna um empreendimento caro.

• A IA é excelente na ­execução de tarefas programadas, mas não tem a capacidade de pensar de forma criativa ou de se desviar de seus parâmetros predeterminados.

• O desemprego é uma grande preocupa­ção em relação à IA, pois os robôs movidos a IA já substituíram os humanos em várias funções nas áreas da indústria e da pesquisa.

• Como a IA assume uma parte substancial das responsabilidades do funcionário, os trabalhadores podem se tornar negligentes e acabar confiando demais na IA para gerenciar detalhes críticos da sua função.

• O desenvolvimento moral, que é enraizado nos seres humanos desde a primeira infância, não existe nas máquinas de IA (a menos que sejam explicitamente programadas para isso). Elas só possuem conhecimento, reconhecimento e habilidades de utilização baseados em parâmetros programados.

Mitos

A inteligência artificial retratada na ficção é real. Alguns filmes de ficção, como Matrix, Exterminador do Futuro e M3GAN, geralmente exageram nos tipos de IA autoconscientes. Esses tipos de IA não existem e não existirão tão cedo. Se existissem, seriam um divisor de águas absoluto. Um computador com inteligência artificial geral poderia devorar todo o conhecimento do mundo (coletado da internet) para resolver alguns dos problemas globais, ou até mesmo lidar com eles antes que surgissem.

Os sistemas de IA são injustos. A IA é mais utilizada para decisões relacionadas a empregos, empréstimos bancários e alocação de crédito e portanto, pode parecer injusta para com os grupos vulneráveis. É preciso lembrar que a IA é treinada para imitar o comportamento de seres humanos na tomada de decisão e que ela irá refletir os seus vieses.

A IA é tão boa quanto os dados com os quais é treinada. Nenhum conjunto de dados do mundo real é perfeito. No entanto, é possível resolver os problemas usando técnicas como a formulação cuidadosa do problema, uma amostragem direcionada, uso de dados sintéticos ou a criação de restrições nos modelos.

A IA vai tirar nossos empregos. A maioria das mudanças de paradigma na tecnologia enfrentou o medo do desemprego em massa, desde o carro até a calculadora e ao computador pessoal. No longo prazo, alguns empregos desaparecerão de fato, mas novos empregos e novos setores surgirão, juntamente com padrões de vida mais elevados. Eu acredito que a IA será usada como uma ferramenta para aumentar os empregos existentes.

A IA se desenvolverá por conta própria e irá se rebelar contra a humanidade. Embora a IA esteja superando os seres humanos em tarefas repetitivas complexas, ela permanece limitada em seu escopo e carece de criatividade. Como criacionista, acredito que somente Deus transmite a consciência e que simplesmente não é possível que uma IA desenvolva consciência e sensibilidade por conta própria.

O uso da IA na igreja

Perguntei a dois dos sistemas de IA mais populares, o Google Bard (baseado no Modelo de Linguagem para Aplicativos de Diálogo) e o ChatGPT (baseado em transformadores generativos pré-treinados), como eles veem a IA ajudando as igrejas hoje e em um futuro próximo. Aqui estão algumas das sugestões geradas por eles (meus comentários estão entre parênteses):

Melhoria de operações. A IA pode ser usada para automatizar tarefas como agendamento, orçamento e entrada de dados. Isso liberará o tempo da equipe para se concentrar em tarefas mais importantes, como ministrar à congregação.

Melhorar estratégias evangelísticas. A IA pode ser usada para criar conteúdo personalizado para membros da igreja e membros em potencial. Quando as estratégias são adaptadas aos interesses e às necessidades de cada pessoa, é mais provável que seja aceita e haja engajamento.

Oferecer atendimento. A IA pode ser usada para fornecer aconselhamento (embora eu prefira um ser humano real com empatia fazendo essa tarefa), registrar pedidos de oração ou outras informações referentes aos membros da igreja.

Chatbots. Os programas de computador podem simular conversas com seres humanos. Os chatbots podem ser usados para responder perguntas, interagir com os visitantes como se fosse um diácono virtual ou fornecer orientação e ajuda. (Embora a novidade de ser abordado por um robô como visitante possa ser divertida para alguns, os seres humanos buscam, por natureza, conexões com outros seres humanos. Sugiro que os chatbots sejam restritos ao suporte on-line.)

Evangelismo personalizado. Os variados chatbots podem conduzir estudos bíblicos. (Pessoalmente, prefiro que um estudo bíblico seja conduzido por um ser humano capaz de empatia. Tenho essa mesma sensação quando “converso” com o chatbot do meu banco.)

Assistentes virtuais. Os assistentes virtuais são como os chatbots, mas podem fazer mais. Eles podem agendar compromissos, fazer reservas e até mesmo ajudar em tarefas como lavar roupa e fazer compras no supermercado. (Suponho que um pastor experiente possa tirar proveito dessa ferramenta.)

Ferramenta para sermões. A IA pode auxiliar pastores e outros líderes fornecendo acesso a referências bíblicas relevantes, ao contexto histórico e a outros recursos. (Por exemplo, no ChatGPT, você pode perguntar: “Quais são alguns versos bíblicos que apoiam a ideia X?”)

Análise de dados. A IA pode ser ­usada para analisar dados de cultos, páginas da web e mídias sociais da igreja. Esses ­dados permitirão que você saiba mais sobre os membros da igreja, os membros em potencial e a comunidade em geral.

Tradução de idiomas. A tradução feita com a tecnologia da IA pode ajudar as igrejas a alcançar falantes de outras línguas, superando assim as barreiras linguísticas existentes.

Eventos virtuais. A IA pode criar eventos virtuais em que pessoas do mundo inteiro podem participar. Isso pode ajudar as igrejas a atingir um público mais amplo e a se conectar com aqueles que talvez não possam participar pessoalmente.

Segurança. Os sistemas de segurança com a tecnologia da IA podem ajudar as igrejas a proteger suas propriedades e evitar crimes, por meio da detecção e resposta a possíveis ameaças.

Um final diferente

Alguns filósofos da tecnologia acham que pode ocorrer uma crise se os objetivos de uma IA não forem os mesmos da humanidade, fazendo com que a IA ultrapasse as barreiras humanas e “domine o mundo”. No entanto, uma leitura escatológica da Bíblia sugere um fim do mundo bem diferente, no qual “Ele [Jesus] vem com a nuvens e todo olho O verá” (Ap 1:7). Estou ansioso por esse final glorioso e por esse novo começo.

Referências

Veja A Teoria das Múltiplas Inteligências de Howard Gardner em Howard Gardner, Inteligências Múltiplas: A Teoria na Prática (Porto Alegre: Penso Editora, 1995).

K. Sarwar, “Types of Artificial Intelligence”, disponível em <link.cpb.com.br/e09e57>, acesso em 19/5/2023.

Sarwar, “Types of Artificial Intelligence”.

“What Is Artificial Intelligence? How Does It Work?”, Zegashop, disponível em <link.cpb.com.br/928483>, acesso em 2/3/2022.

Daryl Gungadoo

diretor do laboratório de mídia da Adventist Review

Perigos da IA

As ferramentas e fontes consultadas pela IA são confiáveis? A busca parece ser sem critério, pois utiliza apenas as informações que estão disponíveis em seu banco de dados. Ficarão de fora, por exemplo, livros, dicionários, léxicos e comentários de autores e editoras que dialogam adequadamente com a ­nossa teologia.

Será um estímulo à preguiça intelectual. Agora o pastor nem precisa, ao menos, escolher as fontes: terá o sermão pronto, ainda que direcione as perguntas ou até proponha os tópicos. Se alguns pastores já tinham dificulda­des de fazer sermões novos, agora a preguiça terá ares de “inteligência”. No formato “antigo” de pesquisa, o pastor devia escolher suas fontes, mesmo em meio a várias fontes confiáveis – um processo de seleção altamente estimulante e educativo.

Talvez um dos maiores perigos da IA para o ministério seja a produção de sermões impessoais, sem o perfil do pregador, algo pior do que um “sermão enlatado”, pois, ao menos, o sermão enlatado vinha de um pastor ou teólo­go experiente e confiável. Com a IA, o sermão virá de “alguém” que nunca pregou um sermão sequer e não se preparou espiritualmente para isso. Pastores começarão a pregar sermões feitos por máquinas e dirigidos a pessoas, ou seja, quem não tem “cheiro de ovelha” fará os sermões de quem ou para quem cuida das ovelhas – um grande perigo!

Nesta era de imediatismo, usar a IA um dia antes de pregar parece ser uma tentação atraente. De fato, estamos imersos na cultura do fácil, do descomplicado, do rápido. Assim, sobra mais tempo para se perder em coisas superficiais, como curtir fotos ou assistir a vídeos de entretenimento. No entanto, o ministério pastoral não deve estar refém dessa cultura fast-food, alimentando-se de comida processada, artificial e sem nutrientes. Em vez de prepararmos sermões instantâneos, precisamos nos valer de sermões preparados em bibliotecas comuns, pesquisados com conteúdo sólido e rico, feito por pessoas reais e não por máquinas. Portanto, pastores e ­líderes de igreja precisam consultar livros físicos, livros digitais, aplicativos confiáveis (como o Logos, por exemplo) e, sobretudo, a Bíblia.

O preparo de um sermão deve ser feito com oração e estudo da Bíblia, dos livros do Espírito de Profecia e de outros livros teológicos confiáveis. Isso demanda tempo, esforço e relacionamento com Deus. Quando um pregador depende inteiramente da IA para produzir suas mensagens, está suprimindo o trabalho do Espírito ­Santo. Observe, portanto, que essa é uma questão de teologia, ideologia, identidade e escolha. 

ADOLFO SUÁREZ

reitor do SALT e diretor do Espírito de Profecia da Divisão Sul-Americana