Sacerdócio de todos os crentes, desenvolvimento espiritual, fraternidade e discipulado são valores básicos da igreja em células

Deus usa a História para melhorar o futuro. Somente poderemos tomar decisões sábias para o desenvolvimento dos ministérios da igreja, se considerarmos relevante a História, ou se, no outro extremo, nos tornarmos prisioneiros do passado ao ponto de negligenciarmos as necessidades e oportunidades contemporâneas.

A História revela os efeitos negativos que a união estado-igreja e o institucionalismo tiveram sobre o cristianismo. Em 313 a.D., o cristianismo se tornou a religião nacional em Roma, sob liderança do imperador Constantino. De religião ilegal, praticada nos lares, se tornou a religião que cultuava em grandes catedrais tanto em Constantinopla como em Roma. As igrejas nos lares desapareceram, resultando no declínio do crescimento numérico e espiritual. Em razão disso, o senso de companheirismo e intimidade foram substituídos por catedrais, rituais e formalidade. Em 1456, a Bíblia de Gutemberg saiu do prelo, dando início à revolução tipográfica que libertaria a Bíblia do confinamento clerical para as mãos do povo. Pequenos grupos de cristãos voltaram a se reunir nos lares para estudar as Escrituras junto a lareiras, despertando a espiritualidade na vida dos participantes.

Durante a Reforma

Martinho Lutero defendia três tipos diferentes de culto: a liturgia em latim, a missa em alemão e os grupos de reuniões nos lares. Apesar disso, não implantou os pequenos grupos. Ele reformou o vinho doutrinário, mas negligenciou reformar o odre estrutural da igreja por causa de seu espírito de cautela, considerações políticas, e por acreditar que as igrejas que responderam aos seus escritos careciam de vigor espiritual. Quando Lambert de Avignon desejou implantar os pequenos grupos em Hesse, Lutero o desencorajou, temendo que fosse negligenciado o cuidado pastoral de pessoas alheias aos grupos.

Uma rede de pequenos grupos foi implantada em 1520 por Ulrico Zwinglio. Nos três anos seguintes, houve um grande movimento espontâneo de pequenos grupos nos distritos de Zurique. Infelizmente, as reuniões nos lares foram banidas pelo concilio de Zurique, em 1525, porque seus participantes estavam ensinando o batismo de adultos, rejeitado pela tradição católica.4 Em 21/01/1515, um desses grupos desafiou a decisão do concilio e se reuniu para praticar o rebatismo. Esse foi o início dos anabatistas. Os pequenos grupos surgiram a partir de uma necessidade. Lutero teve que admitir que havia mais qualidade nos cultos anabatistas, que ele tanto hostilizava e perseguia, do que nas congregações luteranas. Os anabatistas que não tinham templos se reuniam nos lares para o culto e a comunhão.

Outra figura-chave na reforma da igreja no século 16 foi Martin Bucer, que passou grande parte da vida em Estrasburgo. Calvino era discípulo de Bucer que, em assuntos teológicos, se posicionava entre Lutero e Zwinglio. Mas, foi na eclesiologia e na experimentação prática dos pequenos grupos que ele se destacou entre os reformadores. Bucer acreditava que a santificação era um processo e que a vida religiosa se desenvolvia em estágios. Logo, as pessoas necessitam de assistência para avançar nesses estágios. Para restaurar o cristianismo primitivo, Bucer sugeria uma “segunda reforma” na igreja. Essa expressão tem sido usada para defender a necessidade de pequenos grupos.

“A estrutura de pequenos grupos é vital para o cumprimento da missão da igreja”

Após a Reforma

Pessoas insatisfeitas com a forma de vida desenvolvida na igreja anglicana foram chamadas de “puritanas”, por destacarem a importância da pureza na doutrina, na eclesiologia e na vida. Além do culto regular aos domingos, eles realizaram várias reuniões de pequenos grupos, chamadas conventicles. As pessoas eram divididas em grupos de doze, conforme sexo, idade, profissão e raça. Então, se reuniam nos lares, para oração, estudo da Bíblia e dos sermões apresentados nas reuniões coletivas. A opinião dos historiadores é que esses conventicles foram bem- sucedidos em seu objetivo de transformar vidas.

Os puritanos que se desencantaram com o puritanismo formaram o grupo dos quakers. No início desse movimento, os seguidores de George Fox tremiam de emoção quando estavam reunidos nos lares, especialmente quando oravam, Daí, seus oponentes os chamarem de quakers, ou seja, “aqueles que tremem”. Desejando restaurar o cristianismo, sentiram que edifícios, liturgia e sacramentos não eram importantes. Conquanto ainda continuasssem frequentando reuniões de culto, passaram a se reunir também nos lares para orar e estudar a Biblia.

Os pequenos grupos também foram praticados pelo movimento pietista que pretendia ser uma renovação do protestantismo (reforma dos ensinamentos, não do estilo de vida). Philip Jacob Spener iniciou o programa de pequenos grupos em 1670, para estimular o estudo da Bíblia, promover boas obras, encorajamento mútuo e supervisão. Spener chamava seus grupos de collegia pietatis (grupos religiosos). Esses grupos se reuniam duas vezes por semana e eram frequentados por homens e mulheres que discutiam o sermão de domingo, usando livros devocionais e a Bíblia. Na Universidade de Leipzig, entre 1689 e 1692, e, mais tarde, na cidade de Halle, August Hermann Franckle iniciou um pequeno grupo frequentado por destacados membros da sociedade e da família imperial. Provavelmente, Zinzendorf, líder dos morávios, tenha frequentado as reuniões dos collegia. Ali, ele começou sete desses grupos com seus amigos.

Em 1722, o conde Nicolaus Ludwig von Zinzendorf, aristocrata criado numa família pietista luterana, estabeleceu um campo de refugiados religiosos provenientes da Moravia e Boêmia, em suas terras, na Saxônia. Essa comunidade, mais tarde chamada de Herrnhut (abrigo do Senhor), se desenvolveu com forte estrutura de pequenos grupos, para se tornar o maior movimento missionário protestante do mundo até então.

Quando foi organizada a comunidade de Herrnhut, eram usados três tipos de pequenos grupos. O primeiro, formado por homens casados, era chamado de Banden (faixas) e tinha participação voluntária. As reuniões eram nos lares com duração de uma hora, para confissão e orações mútuas. Cada um falava honesta e abertamente sobre sua vida espiritual.

Os “coros” dividiam os membros em grupos homogêneos: casados, viúvas, jovens, rapazes, etc. Finalmente, surgiram as “sociedades de diáspora”, estabelecidas como grupos de missionários que viajavam por outras terras, onde se reuniam nos lares para orar e ler. Enquanto os “coros” eram designados para o ensino, as “faixas” consistiam apenas de reuniões de encorajamento.

A França também teve exemplos de pequenos grupos organizados por um nobre católico chamado Gaston de Renty. Após ter um encontro transformador com Cristo, Renty encorajou sua geração à prática da santidade e dedicou a vida ao cuidado dos pobres, transformando seu castelo em abrigo para camponeses. Esse trabalho foi realizado graças ao desenvolvimento de uma rede de 50 pequenos grupos, com aproximadamente mil membros, que também se ocupavam da oração, estudo da Bíblia e busca da santidade.

Renty via o serviço cristão como contexto para o desenvolvimento da santidade pessoal. Por isso, foram fundados hospitais e escolas acessíveis aos pobres. Mais tarde, esse modelo foi copiado por Wesley, que manteve seus pequenos grupos afastados da ênfase no misticismo e na introspecção, por reconhecer que a preocupação excessiva com a espiritualidade própria poderia levar a uma atitude egoísta. A obra de Renty evidencia o desejo de imitar a igreja cristã primitiva e o anseio em crescer em santidade através do envolvimento missionário e da ação social.

Samuel Wesley, pai de John Wesley, iniciou o alicerce para um tipo de sociedade religiosa entre 1701 e 1702. Sua esposa, Suzana, iniciou em seu lar reuniões que cresceram de tal maneira que o esposo, alarmado, lhe pediu que parasse. Ela se recusou a fazê-lo e João Wesley deu continuidade ao movimento. Após sua experiência com o Clube Santo em Oxford, que se reunia para promover a religião prática, Wesley foi convidado por Whitefield para pregar ao ar livre, em Bristol. Percebendo que não era suficiente apenas pregar, ele teve que encontrar um meio de manter o Céu no coração do seu povo.

Em 1742, o Senhor inspirou Wesley a desenvolver as “Classes Metodistas”, que se reuniam nos lares para compartilhar experiências espirituais, sem preocupação com doutrina ou informação bíblica. O programa iniciava com um hino seguido pelo testemunho do líder sobre sua experiência naquela semana: lutas, tentações e falhas, dando oportunidade para que outros fizessem o mesmo. Os grupos alcançavam o máximo de 12 pessoas que, a partir daí, se dividiam para iniciar novo grupo. Mais tarde, ele elaborou uma rede de grupos interligados, que incluíam as sociedades, reuniões de classe, as “faixas”, os grupos dos penitentes e as sociedades seletivas. Tamanha era a convicção de Wesley sobre a importância dos pequenos grupos que ele decidiu não desperdiçar tempo com pessoas que se recusassem a fazer parte deles.

Lições

Tudo o que vimos até aqui, de acordo com Peter Bunton, fornece as seguintes reflexões:

Universalidade. Os pequenos grupos surgiram em diferentes períodos históricos, denominações e ambientes socioculturais. Variaram desde os primeiros séculos da era cristã, passando pela Idade Média e os séculos 16,17 e 18. As referências culturais incluem da Palestina até a Escandinávia, Suíça, Inglaterra, França, Alemanha, Ásia e Estados Unidos. Os pequenos grupos têm sido usados por denominações tão diversas como anglicanos, luteranos, puritanos, quakers, batistas, morávios, metodistas e católicos romanos. Também é possível observá-los alcançando os mais diferentes níveis sociais.

Motivação. Uma variedade de motivações para o estabelecimento dos pequenos grupos pode ser discernível ao longo da História. Primeiramente, cria-se que a igreja devia ser restaurada e modelada conforme a igreja do Novo Testamento, que se reunia nos lares, em pequenas comunidades. Em segundo lugar, havia busca de santidade ética e pessoal. Finalmente, percebe-se a utilidade dos pequenos grupos para atender necessidades materiais e espirituais dos participantes ou não participantes.

Justificativa. A principal justificativa para os pequenos grupos era o retorno às práticas da igreja primitiva. Textos como o de Mateus 18:15-20 foram usados por Lutero, Bucer e Spener, para legitimar a implementação dos pequenos grupos.

Valores fundamentais. Os pequenos grupos floresceram devido a um sistema de valores e base teológica que dão sustentação ao programa. Adotá-los por razões apenas organizacionais é perder o foco. No entanto, eruditos concordam que a estrutura de pequenos grupos é vital para a igreja, tanto em termos organizacionais como por outras vantagens oferecidas para o cumprimento da missão. Os valores básicos fundamentais para a prática de pequenos grupos são: ensino bíblico do sacerdócio de todos os crentes, desejo de alcançar maior espiritualidade, desejo de ser responsáveis uns pelos outros e de alcançar os perdidos.

Os pequenos grupos são o melhor ambiente para ensino, dissipação de dúvidas e diálogo sobre os diversos assuntos, sem medo de julgamentos ou rejeição. Esse sistema pode florescer em diferentes culturas e ambientes, atendendo a uma necessidade básica que é pertencer a um grupo.

Movimento. Os pequenos grupos prosperam quando há um líder que comunica a visão e articula o propósito do movimento. De fato, é necessário que eles integrem uma rede de grupos. Células isoladas tendem a não se desenvolver, ao contrário do que acontece quando são claras sua missão e identidade. É preciso definir as razões de sua existência, regras de participação e as metas a ser alcançadas.

O funcionamento dos pequenos grupos é ideal somente quando se objetiva a renovação do movimento, quer seja para revigorar a denominação existente ou para estabelecer um novo núcleo. Os que iniciam novas igrejas parecem ter mais sucesso do que os que buscam reformar as antigas.

Multiplicação. Esse era o alvo de algumas das mais bem-sucedidas redes de pequenos grupos. Assim foram as sociedades da diáspora e as classes metodistas.

Liderança capacitada. É fundamental para o êxito dos pequenos grupos que seus líderes sejam adequadamente treinados. Eles precisam ter encontros para aprendizado, inspiração, apoio mútuo e devem ser modelos para os demais.

Constituição e objetivos. Os grupos podem ser multifuncionais. Temos visto vários deles providenciando cuidado pastoral e assistência prática nas áreas do discipulado, ensino, oração, ação social e evangelismo. Além disso, os grupos devem ter como alvo atender as necessidades das pessoas da comunidade exterior bem como dos membros do grupo; devem ser abertos aos descrentes.

Local de reuniões. As células funcionam melhor nos lares ou em ambientes informais. Observações feitas por Martin Bucer e Spener sugerem que reuniões de pequenos grupos na casa do pastor ou em edifícios de igrejas tiveram efeito desestimulador. Os morávios desaconselhavam reuniões em igrejas. Talvez, esses ambientes causem fadiga cognitiva nos membros do grupo.

Contextualização. Trata-se da adaptação dos princípios e valores básicos à cultura e sociedade ao meio em que as células estão inseridas.

Ministérios especiais. Wesley descobriu que certas pessoas tinham problemas com os quais era difícil lidar. Por isso, criou as classes reabilitadoras, semelhantes às dos alcoólicos anônimos, para atender a esses casos específicos.