No início das eras, uma guerra épica irrompeu nas vastas esferas do Céu, onde anjos se enfrentaram e o orgulho desafiou o Criador. Esse conflito que abalou as fundações do Universo e lançou sementes de rebeldia no cosmos culminará com outra batalha monumental na Terra. Assim, as forças do bem e do mal se confrontarão mais uma vez, no fim do milênio, enquanto o ciclo se fecha ao som do triunfo divino e sob a luz da justiça eterna.1
No Apocalipse, o fim de Satanás vem em duas fases: seu aprisionamento no abismo (Ap 20:1-3) e sua destruição no lago de fogo depois de ser solto por um tempo (Ap 20:3, 10). A expulsão dele é descrita pelo passivo do verbo “lançar” (balō). Primeiro, ele é lançado do Céu para a Terra (Ap 12:9), depois é lançado no abismo (Ap 20:3) e, por fim, é lançado no lago de fogo (Ap 20:10).2
O fato de ser lançado ou jogado significa que ele não tem controle sobre seu destino. Há um poder soberano que o julga. Porém, após os mil anos, ele é solto e tenta guerrear contra Deus e Seu povo até o último momento, pois o mal é resiliente e insistente. Se a soltura de Satanás causa certa perplexidade, sua tentativa de invadir a “cidade amada” (Ap 20:9) é ainda mais perturbadora. O enganador “sairá para enganar as nações que estão nos quatro cantos da terra” (v. 8), o que indica a totalidade do globo.
Nesse contexto, em associação com a batalha cósmica final, encontramos uma referência misteriosa a “Gogue e Magogue” (Ap 20:8). Mas de onde vêm esses nomes e o que significa essa batalha?
Origem dos nomes
Os nomes Gogue e Magogue são uma alusão ao oráculo de Ezequiel 38–39. João incorpora vários temas de Ezequiel no Apocalipse, incluindo a batalha de Gogue e Magogue (Ez 38:2; Ap 20:8). Das cem alusões a versos de Ezequiel no Novo Testamento, 57 se encontram no último livro da Bíblia. No Apocalipse, não está claro se Gogue e Magogue se referem a um rei, um povo, uma coalizão de povos ou um território. Mas em Ezequiel fica evidente que Gogue é o governante da terra de Magogue (Ez 38:2).
David Petersen, entre outros, sugere que o “nome ‘Gogue’ pode derivar do governante lídio Giges”, e, nos capítulos “trans-históricos” de Ezequiel 38–39, Gogue simboliza “qualquer antagonista estrangeiro”.3 Daniel I. Block concorda: “A explicação mais provável deriva Gogue de Giges, o nome do rei da Lídia, mencionado em seis inscrições de Assurbanípal (668-631 a.C.).”4 No entanto, não há base sólida para essa identificação.
Flávio Josefo, em sua descrição da origem das nações, também apresentou sua versão: “Magogue deu origem àqueles que, a partir dele, passaram a ser denominados magogitas, mas que os gregos chamam de citas.”5 G. H. Aalders propôs que o nome Gogue deriva de Magogue, mencionado na lista de nações (Gn 10:2), e “Gogue, da terra de Magogue”, talvez seja “uma figura representativa de todos os povos do norte”.6 De fato, a geografia de Gogue é associada ao norte.
Havia também a crença de que Gogue era o “equivalente a gug, termo sumério para ‘trevas’”.7 A comparação do exército de Gogue com uma “nuvem que cobre a terra” (Ez 38:9, 16) evoca escuridão e pode reforçar essa hipótese. De igual maneira, alguns intérpretes consideram que os nomes são mitológicos, no sentido de descrever entidades temíveis que personificam o mal.
Ao longo do tempo, surgiram muitas versões a respeito de Gogue e Magogue. A popularidade do tema é comprovada por diversas tradições judaicas, cristãs e islâmicas (Gogue e Magogue são conhecidos como Yajuj e Majuj entre os árabes), sem falar de outros grupos.8
Assumindo uma perspectiva escatológica, o Targum de Jônatas sobre Números 24:17 diz que o “rei poderoso” messiânico da casa de Jacó, “o cetro poderoso de Israel”, conquistará os “exércitos de Gogue”. O Targum de Pseudo-Jônatas sobre Êxodo 40:11 se refere a um ataque de Gogue contra Israel. De igual maneira, o Targum de Pseudo-Jônatas sobre Números 11:26 afirma que Eldade e Medade profetizaram juntos, dizendo: “Ao fim, bem no fim dos dias, Gogue, Magogue e seus exércitos irão contra Jerusalém, mas cairão nas mãos do Rei Messias.”
Na literatura judaica antiga, “a era final incluirá um ataque furioso das forças inimigas contra o povo de Deus, Jerusalém e talvez o Messias”.9 A batalha será uma hostilidade global contra Deus e Seus eleitos. Embora houvesse variações, esse conceito era bem difundido.
Em meio a uma quantidade desconcertante de interpretações sobre Gogue e Magogue,10 muitos eruditos tentam descobrir o código por trás desses nomes. Será que a maioria dos intérpretes teria entendido essa profecia de forma completamente equivocada?
Última batalha
A fim de entender melhor a referência a Gogue e Magogue, precisamos analisar Ezequiel 38–39, um oráculo único em forma de dois painéis. A linguagem dessa profecia é escatológica, apocalíptica e universal. Embora a descrição seja extremamente simbólica, ela aponta para um acontecimento literal. Dez características do texto mostram que o cumprimento final dessa profecia tem que ver com a aniquilação de Satanás e de seus aliados. Isso sugere que Gogue simboliza uma figura sobrenatural.
1. O uso de fórmulas temporais específicas indica uma perspectiva escatológica. Nesse oráculo, Ezequiel emprega “naquele dia” (Ez 38:10,14,18,19; Ez 39:11) e, em dois casos, “opta por uma expressão rara e cheia de carga semântica”, isto é, “nos últimos dias [be’aharit hayyamim]” (Ez 38:16), “e por uma variante única dessa fórmula”, “no fim dos anos [be’aharit hashanim]” (v. 8).11 A batalha não acontecerá a qualquer momento, mas, sim, em um dia escatológico. Foi profetizada para ocorrer no futuro distante, e o texto possui teor apocalíptico.
2. O próprio Deus batalhará, e Sua presença cria um cenário apocalíptico. O profeta deveria profetizar: “Assim diz o Senhor Deus: ‘Eis que estou contra você, Gogue, príncipe de Rôs, de Meseque e Tubal’” (Ez 38:3). Yahweh aparece como sujeito (“Eu”) mais de 40 vezes na narrativa. Além disso, o Senhor põe “anzóis” no queixo de Gogue (v. 4). Isso revela a dimensão cósmica da batalha. A Terra será sacudida, todos os animais e pessoas tremerão diante da presença de Deus (v. 19, 20). Tudo isso é resultado de uma teofania impressionante.
3. O arrogante príncipe Gogue dirige uma confederação mundial. Ele não é rei ou imperador de nenhuma entidade política, mas ajunta um vasto exército de guerreiros de muitas nações (Ez 38:9). O texto enfatiza, em diversas partes, o grande número de aliados de Gogue (Ez 38:4-9, 13, 15; Ez 39:4). As direções desses inimigos (norte, sul, leste) formam um merismo literário, figura de linguagem reforçada por suas sete armas simbólicas (Ez 39:9), os sete anos que servem de combustível para o fogo (v. 9) e os sete meses necessários para enterrá-los (v. 12).12
Somente no dia escatológico após o milênio haverá essa confluência de pessoas e nações marchando “pela superfície da terra” (Ap 20:9). Em Apocalipse 20:8, a abrangência dessa rebelião final é destacada tanto em termos geográficos (“as nações que estão nos quatro cantos da terra”) quanto numéricos (“como a areia do mar”). Na Bíblia, a expressão “quatro cantos” simboliza a totalidade da geografia, ao passo que “areia do mar” é uma metáfora para uma multidão incontável.13 Com sua linguagem simbólica, o oráculo não retrata um inimigo qualquer, em um ataque isolado, mas o inimigo supremo final, em uma ofensiva global.
No Talmude, a batalha de Gogue e Magogue é “a guerra suprema, o clímax das tribulações da era messiânica”, e se refere a um ajuntamento de nações, uma reunião incontável de inimigos, não de apenas um povo.14 Às vezes, Gogue e Magogue são retratados na literatura judaica como aqueles que juntam as nações para a batalha.15
4. Esse rival virá de uma direção associada a Deus. “Você virá do seu lugar, dos lados do Norte”, descreve a profecia (Ez 38:15; Ez 38:6; Ez 39:2). O “norte” é a direção do trono ou da morada divina, que a estrela da manhã (Satanás) tentou conquistar (Is 14:13), e se tornou símbolo da origem dos inimigos do povo de Deus. A ambição dele se voltava para o trono do Altíssimo. Paul Fitzpatrick destaca que Gogue, um “representante trans-histórico dos poderes cósmicos do caos reinstaurado”, é associado à parte mais distante do globo em relação ao “meio da terra” (Ez 38:12), onde ele ataca o povo de Deus. “Gogue vem de uma região nas extremidades da criação e sua presença significa o desfazer dessa criação. Essa imagem apresenta Gogue como a antítese da criação. Gogue de Magogue é o maior símbolo da anticriação e de tudo que se opõe ao Soberano divino.”16
5. O inimigo tem caráter transcendente e será alvo da ira divina. A seu respeito, foi profetizado: “Assim diz o Senhor Deus: ‘Por acaso você não é aquele de quem falei nos tempos antigos, por meio dos Meus servos, os profetas de Israel, que naqueles dias profetizaram, durante anos, que Eu faria com que você viesse e atacasse o Meu povo?’” (Ez 38:17). Gogue foi o destruidor histórico de Israel. Agora, planejando uma grande invasão militar, o príncipe Gogue conceberá um “plano perverso” (v. 10) para conquistar a terra e as vilas. “Quando Gogue ataca o povo de Yahweh e invade a terra de Yahweh, está declarando guerra contra Yahweh.”17 Em outras palavras, os verdadeiros rivais não são Gogue e Israel, mas, sim, Gogue e Yahweh. Contudo, Deus diz: “Eu ficarei furioso” (v. 18). Isso sugere o juízo final.
6. A destruição de Gogue e seus aliados é descrita em termos apocalípticos. As imagens são reveladoras: “Eu o castigarei com peste e derramamento de sangue. Farei cair chuva torrencial, grandes pedras de granizo, fogo e enxofre sobre ele, sobre as suas tropas e sobre os muitos povos que estiverem com ele”, declara o Senhor Deus (Ez 38:22). Essa linguagem de destruição por meio do fogo, típica do juízo divino, também sugere um cenário pós-milenar. Note que o fogo consumirá não só Gogue, mas também Magogue e as “terras do mar” (Ez 39:6). O “império” ímpio de Gogue chegará ao fim.
7. As pessoas atacadas estarão vivendo em paz em um lugar especial. Elas habitam “no meio da terra” (Ez 38:12), uma referência ao monte santo de Deus em Jerusalém, ou, de maneira mais apropriada, à Nova Jerusalém. “O ‘meio’ enfatiza que não se tratará apenas de mais uma guerra, dessas que enchem as páginas da história, mas, sim, de um confronto que terá relevância decisiva sobre a história mundial e, uma vez que acontece no centro teológico do mundo, envolverá tanto o espaço quanto o tempo.”18
8. Haverá uma purificação da Terra. Os restantes dos mortos na face da Terra serão enterrados, e a Terra será purificada (Ez 39:14-16).
Isso aponta para uma purificação cerimonial de grande escopo. O lugar de sepultamento mencionado em Ezequiel 39:11 (o “vale dos Viajantes”, que será chamado de “Hamon-Gogue”) parece simbólico. O nome “vale de Hamon-Gogue” parece um trocadilho com “vale de Hinom”, “onde cadáveres de animais e criminosos costumavam ser queimados”.19 Trata-se de um “tributo” simbólico adequado para o originador da morte.
9. A carnificina final dos inimigos é um banquete apocalíptico planejado por Deus. O profeta foi instruído a falar “às aves de toda espécie e a todos os animais selvagens” a fim de reuni-los para um “grande sacrifício nos montes de Israel”, no qual “comerão carne e beberão sangue”. Nesse banquete escatológico sinistro (zebab, um sacrifício cerimonial), serão servidos “a carne dos poderosos” e “o sangue dos príncipes da terra”; os comensais se fartarão “de cavalos e de cavaleiros, de valentes e de todos os homens de guerra” (Ez 39:17-20). Observe a ironia: “Em vez de adoradores humanos sacrificando animais na presença de Yahweh, é Yahweh quem sacrifica humanos para fartar os animais.”20 Esse fenômeno simbólico nessa dimensão e com esse caráter é único.
10. Por meio desse evento, a glória e a grandeza de Deus serão vistas, e Sua santidade e justiça serão vindicadas. “Nos últimos dias, trarei você contra a Minha terra, para que as nações Me conheçam, quando Eu tiver revelado a Minha santidade em você, ó Gogue, diante das nações” (Ez 38:16). “Assim, revelarei a Minha grandeza e a Minha santidade e Me darei a conhecer aos olhos de muitas nações. E saberão que Eu sou o Senhor” (v. 23). Além disso, será “o dia” em que o Senhor Deus manifestará a Sua glória entre as nações (Ez 39:13, 21, 22). O próprio Deus está no controle do ajuntamento, que cumprirá um propósito cósmico mais elevado da teodiceia.
Todos os fatores salientados em Ezequiel 38 e 39, entre outros detalhes não explorados, em comparação com Apocalipse 20:7 a 10, traçam o retrato de uma realidade pós-milenar. Com tantas evidências cumulativas, fica difícil evitar a conclusão de que Gogue representa uma descrição poética de Satanás em sua última tentativa de invadir a cidade santa (a Nova Jerusalém) após o milênio.
Erradicação do mal
Ao analisar o tema, Jiří Moskala propôs cumprimentos múltiplos: (1) um cumprimento parcial em potencial durante a guerra dos macabeus (tipo) com Antíoco Epifânio, (2) pré-cumprimentos cristológicos-eclesiológicos múltiplos em potencial e (3) o cumprimento escatológico/apocalíptico final em duas etapas (antítipo), a saber, na segunda vinda e no fim do milênio.21 Ele ressaltou que, segundo Apocalipse 20:8, “Gogue e Magogue são nomes simbólicos das hostes dos ímpios de todas as gerações da humanidade que se opõem ao próprio Deus e a Seu povo”.22 Porém, não há evidências históricas desses cumprimentos múltiplos. Além disso, o Apocalipse (Ap 20:8) faz referência a Gogue e Magogue no contexto do milênio e não os conecta a nenhum outro período anterior.
Ao se levar em conta o tom escatológico/apocalíptico da profecia de Ezequiel, a ausência de qualquer cumprimento claro na história de Israel e o uso dessa profecia por João em Apocalipse 20, parece exegeticamente mais seguro optar por uma interpretação relacionada ao contexto pós-milenar.
É interessante notar que João usou uma abreviação da expressão de Ezequiel na Septuaginta (Ez 38:2): ao passo que o oráculo original é contra “Gogue, da terra de Magogue” (Gōg kai tēn gēn tou Magōg), João (Ap 20:8) fala em “Gogue e Magogue” (Gōg kai Magōg). Além disso, no grego, ele usou o artigo: ton Gōg kai Magōg. Uma vez que, no Apocalipse, o padrão é nunca usar o artigo para nomes próprios em geral, mas, sim, para entidades singulares (Cristo, Satanás, diabo) e entidades bem conhecidas do Antigo Testamento, é provável que João estivesse se referindo à figura familiar mencionada em Ezequiel.23 Essa profecia provavelmente já tivesse uma interpretação apocalíptica definida nos círculos judaico-cristãos.
Independentemente de ver o oráculo de Ezequiel como uma profecia com múltiplos cumprimentos ou uma profecia apocalíptica cujo foco original e simbólico é o fim de Satanás, a conclusão lógica é que, quando a Nova Jerusalém vier do Céu, sendo posicionada no local da antiga Jerusalém, o arqui-inimigo e seus aliados a atacarão; porém, descerá fogo do céu e consumirá a todos (Ap 20:7-9).
O mal finalmente será erradicado. Seu ciclo, marcado por uma batalha épica no início e outra no fim, se completará. O planeta, agora purificado, estará pronto para começar um novo capítulo glorioso ao longo da eternidade. O crepúsculo da humanidade chegará ao fim, e raiará a aurora de um novo amanhã!
Marcos De Benedicto , editor emérito da CPB
Referência
2 Cf. Steven Thompson, “The End of Satan”, Andrews University Seminary Studies 37 (1999), p. 266.
5 Flávio Josefo, Antiguidades Judaicas 1.6.1.
6 Jan G. Aalders, Gog en Magog in Ezechiël (Kampen: J. H. Kok, 1951), p. 166.
9 Pierre Prigent, Commentary on the Apocalypse of St. John (Tübingen: Mohr Siebeck, 2001), p. 575.
13 Dennis E. Johnson, Triumph of the Lamb (Phillipsburg, NJ: P&R Publishing, 2001), p. 295.
15 G. K. Beale, The Book of Revelation (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1999), p. 1025.
17 Milgrom e Block, Ezekiel’s Hope, p. 16.
18 Horace D. Hummel, Ezekiel 21–48 (St. Louis, MO: Concordia Publishing House, 2007), p. 1121.
19 Block, Beyond the River Chebar, p. 118.
20 Milgrom e Block, Ezekiel’s Hope, p. 28.
22 Moskala, “Toward the Fulfillment of the Gog and Magog Prophecy of Ezekiel 38–39”, p. 268.