O dispensacionalismo como sistema de interpretação das Escrituras pode ser melhor compreendido contra o fundo de sua origem histórica no século dezenove. A João N. Darby (1800-1882), um dos principais fundadores do Movimento dos Irmãos Plymouth na Inglaterra, é atribuído o desenvolvimento de um novo sistema de interpretação teológica não conhecido anteriormente na história do pensamento cristão. Clarence B. Bass, que a princípio fora dispensacionalista, descobriu na doutrina de Darby sobre a Igreja, em sua pesquisa doutorai, “um básico padrão hermenêutico de interpretação que difere consideravelmente do da fé histórica”.1

Bass declara em seu estudo histórico: “Darby introduziu não somente novos conceitos na teologia, mas também um princípio de interpretação completamente novo. Ele mesmo admitiu que esse princípio fora ocultado à Igreja por dezenove séculos, e então revelado só a ele.”2

Esse novo princípio era um literalismo aplicado estritamente na interpretação da Bíblia e resultando em acentuada separação entre “Israel” e a “Igreja”, e entre as “dispensações” da lei e da graça.

Bass infere: “Seja qual for a avaliação que a História faça desse movimento, ela atestará que o dispensacionalismo se baseia no conceito de Darby sobre a Igreja — um conceito que faz acentuada distinção entre a Igreja e Israel.”3 Darby concebeu a idéia de que a Igreja não foi profetizada no Velho Testamento. Por isso ele começou a ensinar que havia uma futura esperança para Israel fora da Igreja, baseada em sua suposição de que as promessas do concerto que Deus fez a Abraão e Israel eram incondicionais. Por conseguinte, teve de ser elaborada uma cronologia completamente nova dos acontecimentos finais, a fim de salvaguardar a premissa de uma esperança separada para Israel depois que a Igreja tiver sido arrebatada da Terra para o Céu.

O conceito de Darby, de que constitui um grave erro do cristianismo histórico acreditar que a Igreja de Cristo Jesus é o verdadeiro Israel e que, portanto, ela herdou as promessas do concerto e as responsabilidades de Israel, ainda é a suposição fundamental do dispensacionalismo moderno.

É mister reconhecer o clima espiritual no começo do século dezenove, com seu liberalismo teológico, o desaparecimento de sua esperança no segundo advento de Cristo e sua crassa ignorância dos ensinos bíblicos, para compreender a rápida aceitação do Darbyísmo. Guilherme E. Cox explica: “O ensino dos Irmãos, com sua ênfase à profecia e à segunda vinda de Cristo, satisfez uma necessidade na vida do povo espiritualmente faminto daquela geração. Não é difícil encher um vácuo!… Darby não somente retornou à fé que uma vez foi entregue aos santos — a qual, no consenso geral, tinha sido rejeitada e precisava ser recuperada — mas foi muito além dessa fé, introduzindo numerosos ensinos de sua própria invenção, de que nunca se ouvira falar até serem apresentados por ele.”4

Entretanto, na década de 1920 muitos dirigentes do movimento fundamentalista começaram a achar que para ser fundamentalista — isto é, crer nos ensinos fundamentais das Escrituras Sagradas — tem-se de ser também, automaticamente, dispensacionalista. Assim o dispensacionalismo moderno, como sistema, surgiu como reação contra as espiritualizações da teologia literal do século dezenove. Originou-se dos ensinos de João N. Darby e é divulgado nas notas ao pé das páginas da Scofield Reference Bible (1917) e da The New Scofield Reference Bible (Nova Iorque: Oxford University Press, 1967). A teologia dispensacional é elaborada sistematicamente por Luís Sperry Chafer (sucessor de C. I. Scofield) em sua obra apologética Systematic Theology (8 volumes) e nos escritos de João F. Walvoord, atualmente diretor do Seminário Teológico de Dallas. O dispensacionalismo é ensinado por princípio no Instituto Bíblico Moody (Chicago) e calcula-se que também nuns duzentos outros institutos bíblicos dos Estados Unidos. A revista dos dispensacionalistas é Bibliotheca Sacra, herdada pelo Seminário Teológico de Dallas, em 1934.

Autores populares como Hal Lindsey, Salem Kirban e outros influíram sobre milhões de pessoas, por meio de seus escritos e filmes, para aceitarem o futurismo dispensacionalista — a guerra do “Armagedom” no Oriente Médio e um reino judaico de mil anos centralizado em Jerusalém — como o verdadeiro quadro profético do plano de Deus para o povo judeu e para o mundo.

O fato de que Darby foi o originador do sistema do dispensacionalismo não indica por si mesmo — é claro — se o sistema, portanto, é falso ou verdadeiro. A veracidade ou a falsidade do dispensacionalismo depende exclusivamente de sua harmonia ou desarmonia com as Escrituras Sagradas. A afirmação do dispensacionalista Harry A. Ironside de que os ensinos de Darby “quase não foram encontrados num só livro ou sermão durante um período de mil e seiscentos anos!”5 convida à investigação crítica da essência do dispensacionalismo — sua distintiva hermenêutica do literalismo.

A Hermenêutica do Literalismo

O dispensacionalismo constitui o sistema de interpretação da Bíblia que afirma que nas Escrituras os vocábulos “Israel” e “Igreja” sempre representam dois povos do concerto de Deus essencialmente diferentes: um reino terrestre, nacional e teocrático para Israel, mas para a Igreja apenas um lugar eterno 15 no Céu. Luís S. Chafer enunciou-o desta maneira: “O dispensacionalista crê que através dos séculos Deus está procurando alcançar dois propósitos distintos: um relacionado com a Terra e envolvendo pessoas e objetivos terrenos, ao passo que o outro se relaciona com o Céu e envolve pessoas e objetivos celestiais.”6 Daniel P. Fuller infere corretamente: “A premissa básica do dispensacionalismo são dois propósitos de Deus expressos na formação de dois povos que conservam sua distinção por toda a eternidade.”7

Em outras palavras, o dispensacionalismo mantém escatologias diferentes para “Israel” e para a “Igreja”, tendo cada um deles suas próprias promessas do concerto, em contraste. A essência do dispensacionalismo, portanto, consiste em “dividir corretamente” as Escrituras, não apenas em divisões de tempo ou dispensações, mas também em seções das Escrituras que se aplicam ou a Israel ou à Igreja ou aos gentios, uma divisão derivada de I Coríntios 10:32. L. S. Chafer ensinou que as únicas partes das Escrituras dirigidas especificamente aos cristãos são o Evangelho de S. João, o livro de Atos e as Epístolas do Novo Testamento.8

O conflito final ou a tribulação de Apocalipse 6 a 20 é interpretado como ocorrendo entre o Anticristo e os judeus piedosos, e não entre o Anticristo e a Igreja de Cristo, porque, segundo declara J. F. Walvoord, “o livro, como um todo, não se ocupa originariamente do programa de Deus para a Igreja”.9

O princípio fundamental do qual dimana essa divisão das Escrituras é chamado “literalismo coerente”. Um de seus porta-vozes modernos, Carlos C. Rvrie, afirma categoricamente: “Visto que o literalismo coerente é o princípio de interpretação lógico e óbvio, o dispensacionalismo é mais do que justificado.

“O dispensacionalismo é o resultado da coerente aplicação do básico princípio hermenêutico de interpretação literal, normal ou simples. Nenhum outro sistema de teologia pode reivindicar isto.

“Literalismo coerente é o âmago da escatologia dispensacional.”10

As inferências desse princípio de literalismo têm grande projeção na teologia, especialmente na escatologia. Ele requer o cumprimento literal das profecias do Velho Testamento, o qual, portanto, deve ocorrer durante algum período futuro na Palestina, “pois a Igreja não as está agora cumprindo nalgum sentido literal”.11 Assim, o literalismo conduz inevitavelmente ao futurismo dispensacional no tocante ao Israel nacional na interpretação profética.

De acordo com o dispensacionalismo. a Igreja de Cristo, a qual nasceu no dia de Pentecostes, conforme é relatado em Atos 2, não constitui absolutamente uma parte dos concertos de Deus com Abraão e Davi. A Igreja Cristã com seu evangelho de graça é apenas uma “interrupção” do plano original de Deus para Israel, um “parêntese” (H. Ironside) ou “intercalação” (L. S. Chafer), não previsto pelos profetas do Velho Testamento e não tendo nenhuma ligação com as promessas de Deus a Abraão, Moisés e Davi, de um reino terrestre.

De capital importância para o sistema dispensacionalista é a suposição de que Cristo Se ofereceu à nação de Israel como o Rei messiânico para estabelecer o glorioso reino terrestre prometido a Davi. Nessa suposição se baseia a inferência de que Cristo “adiou” Seu oferecimento do reino quando Israel O rejeitou como seu legítimo Rei. Cristo começou então a oferecer Seu reino da graça (S. Mateus 13 em diante) como transitório concerto de graça que terminaria quando Ele estabelecesse novamente a nação judaica como Sua teocracia. A igreja de crentes regenerados precisa, pois, primeiro ser tirada deste mundo, por meio de repentino “arrebatamento” invisível para o Céu, antes que Deus possa cumprir Suas “incondicionais” promessas do Velho Testamento a Israel. A restaurada nação judaica será então lançada nas tribulações do “tempo de angústia de Jacó”. Por conseguinte, o sistema dispensacionalista requer um arrebatamento da Igreja de Cristo antes da tribulação.

O dispensacionalismo assevera que as promessas do Concerto do Velho Testamento para Israel só podem ser cumpridas para a nação judaica (em todos os pormenores, da maneira como está escrito) durante o futuro milênio judaico de Apocalipse 20. Só então serão gloriosamente consumados os distintos e incondicionais propósitos de Deus para Israel. Isso envolve necessariamente a reconstrução do templo de Jerusalém e o restabelecimento dos sacrifícios de animais em “comemoração” da morte de Cristo. Naquele tempo todas as nações reconhecerão que o Israel nacional é o povo favorecido de Deus. Ryrie declara: “Essa culminância milenar é o ponto culminante da História e o grande alvo do programa de Deus para os séculos.’’*2

É bem claro, portanto, que o dispensacionalismo separa a Igreja de Cristo do total plano redentor de Deus para Israel e a humanidade, e restringe o futuro reino de Deus à restauração de um remo estritamente judaico — o chamado reino milenário.

Essa dicotomia entre Israel e a Igreja, entre o reino de Deus na Terra e a Igreja, entre o evangelho do reino de Jesus e o evangelho da graça, de Paulo, é o resultado lógico da adoção do princípio de interpretação literalista da profética Palavra de Deus.

A Chave do Velho Testamento: o Literalismo ou o Novo Testamento?

De acordo com Cristo e o Novo Testamento, é a hermenêutica dispensacional do “literalismo coerente” a genuína chave para interpretar o futuro cumprimento das profecias do Velho Testamento? A hermenêutica do literalismo está organicamente (isto e, genuína e intrinsecamente) relacionada com as próprias Escrituras Sagradas, ou constitui uma pressuposição que é imposta à Palavra de Deus do lado de fora, como “padrão objetivo”13, a fim de proteger a Bíblia contra injustificadas espiritualizações e alegorizações? O princípio “objetivo” para compreender a Palavra de Deus não deve ser extraído indutivamente do próprio relato inspirado?

O ponto fundamental é este: O crente cristão está autorizado a considerar os escritos do Velho Testamento como unidade independente por si mesmos e separada do testemunho de seu cumprimento no Novo Testamento, ou deve aceitar o Velho e o Novo Testamento juntos, como uma só revelação orgânica de Deus em Cristo Jesus?

O comentarista cristão está autorizado a interpretar o Velho Testamento como a completa e final revelação de Deus ao povo judeu, um cânon fechado, sem permitir que Jesus Cristo seja o verdadeiro intérprete de Moisés e dos profetas, e não deixando que o Novo Testamento, como final revelação de Deus, tenha a suprema autoridade para interpretar as profecias do Velho Testamento de acordo com Cristo?

Em primeiro lugar, o Velho Testamento, por si mesmo, carece da norma orientadora de Jesus Cristo e Seus apóstolos para a compreensão cristã das Escrituras hebraicas. O princípio do “literalismo” é então introduzido nesse vácuo de um incompleto cânon das Escrituras para prover a orientadora norma de interpretação que Deus tencionava fosse provida por Cristo e o Novo Testamento. O próprio vocábulo “literalismo” tem um significado duvidoso se for definido como representando a literal ou normal exegese gramático-histórica do Velho Testamento, mas em seguida se exalta imediatamente essa exegese do Velho Testamento como a verdade definitiva dentro do cânon total da Bíblia, de modo que Cristo e o evangelho apostólico não tenham autoridade para desdobrar, modificar ou (re) interpretar as promessas do concerto do Velho Testamento.

Carlos C. Ryrie declara que o conceito dispensacional de revelação progressiva pode aceitar luz adicional, mas não que o vocábulo “Israel” pode significar a “Igreja”. Isto seria inaceitável “contradição” de expressões e conceitos. O dispensacionalismo nega que haja alguma relação orgânica entre a profecia do Velho Testamento e a Igreja de Cristo Jesus. Ele rejeita a aplicação tradicional das promessas relacionadas com o reino de Davi ao domínio espiritual de Cristo sobre Sua Igreja, porque isso seria interpretar a profecia alegoricamente, não de modo literal, e, portanto, ilegitimamente.

Uma pergunta decisiva é a seguinte: Os dispensacionalistas realmente aceitam o caráter orgânico da Bíblia como um todo, isto é, a unidade teológica e espiritual da revelação do Velho e do Novo Testamento?

Nossa idéia acerca do “literalismo” deve constituir a norma mais elevada para a compreensão do cumprimento final das profecias de Israel, ou o próprio Jesus Cristo deve ser nossa Norma para a cabal compreensão de todo o Velho Testamento? F. F. Bruce dá a resposta: “O uso que nosso Senhor faz do Velho Testamento pode muito bem servir de norma e padrão para nós na interpretação bíblica; e além disso, convém que os cristãos se lembrem de que uma parte da obra do Espírito Santo no presente é expor-lhes as Escrituras como o Cristo ressurreto fez para os discípulos no caminho de Emaús.”15

Bibliografia

  • 1. Backgrounds to Dispensationalism (Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, 1977), pág. 9
  • 2. Idem, pág. 98. Grifo no original.
  • 3. Idem, pág. 127.
  • 4. An Examination of Dispensationalism (Filadélfia, PA: Presbyterian and Reformed Publishing Co., 1963), págs. 4 e 5.
  • 5. The Mysteries of God (Nova Iorque: Loizeaux Bros., 1908), págs. 50 e 51. citado por D. P. Fuller em Gospel and Law (Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1980), pág. 13.
  • 6. Chafer, “Dispensacionalismo”, em Bibliotheca Sacra 93 (1936), pág. 448.
  • 7. Fuller, The Hermeneutics of Dispensationalism. Dissertação não publicada. Northern Baptist Theological Seminary, Chicago, IL, 1957, pág. 25.
  • 8. Chafer, op. cit. págs. 406 e 407.
  • 9. Walvoord, The Revelation of Jesus Christ (Chicago: Moody Press, 1967, 2? edição), pág. 103.
  • 10. C. C. Ryrie, Dispensationalism Today (Chicago: Moody Press, 1965), págs. 97, 96 e 158.
  • 11. Idem, pág. 158.
  • 12. Idem, pág. 104.
  • 13. Ryrie, op. cit., pág. 88, declara: “Que controle haveria da diversidade de interpretações que a imaginação humana poderia produzir se não houvesse um padrão objetivo provido pelo princípio literal?”
  • 14. Idem, pág. 94.
  • 15. Baker’s Dictionary of Theology (Baker Book House, 1973), pág. 293.

O próximo artigo desta série considerará tais questões como: Quando realmente começou a Igreja de acordo com Cristo? Como Cristo e os escritores do Novo Testamento aplicam os antigos concertos de Deus com Abraão, Israel e Davi? O Novo Testamento apresenta a Igreja como o “Israel de Deus” e herdeira de todas as bênçãos do concerto prometidas por Deus para o presente e o futuro?