As origens e a trajetória do princípio sola Scriptura na igreja cristã

A celebração dos 500 anos da Reforma Protestante é um marco comemorativo da publicação das 95 teses contra o tráfico de indulgências,ocorrida em 1517. Naquela ocasião, talvez poucos pudessem imaginar a dimensão e os desdobramentos que isso desencadearia no cristianismo. A experiência de despertamento do monge alemão agostiniano Martinho Lutero, iniciada por ocasião de sua memorável viagem a Roma, intensificou-se com o estudo dos Salmos e do livro de Romanos e culminou com a elaboração e divulgação de suas teses.2

Lutero protestou contra o sistema de indulgências da Igreja Católica Romana, convicto de que tal sistema representava uma séria distorção do genuíno ensino da Bíblia, “o abandono das Sagradas Escrituras e a aceitação de tradições e palavras humanas”.3 Em resposta, ele desenvolveu seus ensinos tomando como base bíblica a justificação pela fé, e como princípios diretivos “cinco solas” na forma das proposições latinas sola Scriptura (somente a Escritura), sola fide (somente a fé), sola gratia (somente a graça), solo Christus (somente Cristo) e soli Deo gloria (glória somente a Deus).4 Entre esses, o lema sola Scriptura “reflete o princípio-chave da Reforma”.5 Entretanto, para se compreender a importância dessa iniciativa de Lutero, é necessário relembrar a origem e a trajetória do sola Scriptura, enquanto princípio fundamental de interpretação da Bíblia.

Sola Scriptura e a interpretação apostólica

Embora a Bíblia não faça menção à expressão latina sola Scriptura, seu texto estabelece esse princípio e seu significado, ao mesmo tempo em que reivindica sua observância por parte do leitor. Essa proposição está presente em contextos do Antigo Testamento (Sl 119:105; Is 8:20), nos ensinos e práticas de Jesus (Lc 24:27, 44, 45; Jo 17:14, 17, 20) e no testemunho apostólico do Novo Testamento (At 15:21; 1Co 4:6; 2Pe 1:19-21). Com isso, fica claramente sinalizado que as Escrituras inspiradas eram a única fonte de genuíno conhecimento teológico do povo de Deus.

Forte evidência disso é o uso que os escritores do Novo Testamento fizeram da expressão
grega hē graphé (“A Escritura”), apelando para tal conteúdo. Por meio do uso singular de graphé (Escritura), precedido de artigo definido, eles apontaram, ora para uma passagem específica do Antigo Testamento (Jo 13:18; At 1:16; 1Tm 5:18, Tg 2:8, 23), ora para o Antigo Testamento como um todo (At 8:32, Gl 3:8; 1Pe 2:6). Por meio do uso plural haí graphaí (“As Escrituras”), eles sempre apontaram para o Antigo Testamento como um todo (Mt 21:42; Mc 12:24; Lc 24:27, 32, 45) e para a inclusão dos textos de Paulo na mesma categoria das demais Escrituras (2Pe 3:16).6 Com esses usos, ficou sinalizado que as Escrituras inspiradas por Deus eram sua única fonte de genuíno conhecimento teológico.

Outra evidência disso é o reiterado uso da expressão gégraptai (“está escrito”) no Novo Testamento, que ocorre cerca de cem vezes em alusão às Escrituras.Estando sob inspiração, os escritores bíblicos destacaram esse uso como a única fonte autoritativa para compreensão e vivência de toda a mensagem revelada e inspirada por Deus. A isso se pode chamar de princípio bíblico sola Scriptura, reconhecendo que o texto bíblico reivindica seu próprio conteúdo como único critério para sua interpretação.

Sola Scriptura e o período pós-apostólico

Enquanto os apóstolos viveram, eles se esforçaram para que a igreja se mantivesse fiel ao princípio sola Scriptura e a suas regras interpretativas resultantes. Inclusive combateram ideias de fontes estranhas à
Palavra de Deus, as quais ameaçavam a pureza doutrinária da recém-nascida igreja cristã (1Tm 1:3, 4; 4:13-16; 1Pe 2:1-3; 1Jo 2:18-26). Entretanto, a partir do segundo século, os intérpretes da Bíblia adotaram outras fontes de dados teológicos8 e suas ideias não bíblicas.9 Os apologetas foram os primeiros a fazer isso.10 Com o objetivo de minimizar ou conciliar “o choque e o mútuo desprezo entre a fé cristã e a filosofia, foi se produzindo o sincretismo de ideias cristãs e filosóficas”.11 Com essa prática, a filosofia de origem não bíblica passou gradualmente a ser aceita como ferramenta útil para a interpretação e o ensino bíblico.12 Chegou a ser dito que a Bíblia teria quatro diferentes sentidos (literal, alegórico, moral, escatológico), o que ficou conhecido como quadriga.13

Os chamados Pais da Igreja e os demais teólogos medievais, com raras exceções, seguiram na mesma linha. Jerônimo e Agostinho aceitaram a filosofia cultural (greco-romanismo) e a experiência mística. Tomás de Aquino aceitou três fontes de autoridade que, segundo ele, também tinham origem na revelação: “os ensinamentos dos filósofos, as Escrituras e os doutores da igreja”.14

Essa prática medieval serviu de fundamento para que a Igreja Católica Romana consolidasse sua perspectiva acerca da Bíblia e de seu papel para a igreja cristã. Ainda hoje, para a igreja de Roma, a autoridade vem da “Palavra de Deus”, que se manifesta por meio de duas fontes distintas e equivalentes em valor: a Escritura e a tradição,15 cabendo ao magistério da igreja sua interpretação. Como dirigente supremo desse magistério, o papa, quando fala ex cathedra, é considerado como tendo autoridade equivalente à da própria Escritura e da tradição, podendo inclusive reinterpretá-la. A interpretação da Bíblia ocorre segundo a “tradição da fé”16 e não segundo a própria Escritura. Dessa forma, atualmente o princípio sola Scriptura continua sendo absolutamente rejeitado no meio católico-romano.17

Sola Scriptura e a Reforma Protestante

A Reforma Protestante foi o primeiro movimento que desafiou radicalmente “o confinamento católico das Escrituras à hermenêutica da tradição”.18 O movimento envolveu os chamados pré-reformadores (Wycliffe, Huss e Jerônimo), os reformadores magisteriais (Lutero, Zuínglio e Calvino) e os reformadores radicais (anabatistas e puritanos). Com sensíveis diferenças de compreensão, em geral, eles concordavam em seu apreço pelas Escrituras e pelo que consideravam ser uma porção aceitável da tradição.19

O sola Scriptura se tornou o “grito de guerra dos reformadores”.20 A primeira alusão pública a esse conceito parece ter sido feita por Lutero no debate de Leipzig (1519) e, mais tarde, foi reafirmada em Worms (1521).21 Assim, Lutero e os demais reformadores manifestaram sua convicção de que “a Escritura é a única autoridade”.22 É norma normanda (norma determinante) e não norma normata (norma determinada). Para eles, o sola Scriptura apontava para a autoridade final das Escrituras e não sua exclusividade.23 Nessa perspectiva,
aceitava-se outras fontes de autoridade, desde que a Bíblia fosse considerada a medida final de validação das demais fontes.24

Para esses reformadores, “sola Scriptura nunca significou que os únicos recursos que o cristão precisa para entender bem a Palavra de Deus são a Bíblia e o Espírito Santo”.25 Consideraram “a história, os conselhos, os credos e a tradição da igreja, incluindo os escritos dos pais”,26 como fontes elementares válidas de dados teológicos. Lutero aceitou parte da tradição e a experiência pessoal como fontes de conhecimento teológico,27 e Calvino se mostrou simpático a duas fontes: parte da tradição teológica e das interpretações filosóficas.28

Tal perspectiva fez com que Lutero privilegiasse os livros que, segundo ele, mostravam Cristo, e questionavam a canonicidade de Hebreus, Tiago, Judas e Apocalipse,29 o que levou ao estabelecimento de um “cânon dentro do cânon”.30 De fato, os reformadores contribuíram grandemente para reconhecer na Bíblia seu valor obscurecido pelas práticas interpretativas medievais. Contudo, o sola Scriptura dos reformadores não correspondeu amplamente ao sola Scriptura biblicamente reivindicado.

A Reforma Protestante foi o primeiro movimento que desafiou radicalmente o confinamento católico das Escrituras à hermenêutica da tradição.

Sola Scriptura e avivamento evangélico

Em sua perspectiva avivalista, Wesley parece ter tido uma compreensão do sola Scriptura sensivelmente distinta em relação a dos reformadores. Para ele, essa expressão indicava as Escrituras como fonte primária de dados teológicos entre as demais, que “inclui tradição, razão e experiência como autoridades adicionadas à Escritura”.31 A essa perspectiva, deu-se o nome de “quadrilátero wesleyano”. Assim, enquanto os reformadores situavam a Bíblia como autoridade final do processo de interpretação, Wesley a via como critério inicial do mesmo processo, o importante ponto de partida ao qual se acrescentaria as demais fontes.

Essa ideia influenciou fortemente os avivamentos inglês e norte-americano. A partir daí, os teólogos protestantes e evangélicos fazem alusão ao princípio sola Scriptura, significando-o de forma intercambiável, ora como “autoridade final das Escrituras” ora como “primazia das Escrituras”, buscando destacar sua autoridade suprema. Dessa forma, assim como os reformadores e avivalistas, seus herdeiros – protestantes e evangélicos – concordam que as Escrituras têm autoridade fundamental, ou seja, têm a supremacia em matéria de fé e prática cristã,32 embora lhe atribuam diferentes papéis no processo interpretativo. Portanto, nenhuma pretensa autoridade está acima das Escrituras, ainda que outras fontes possam ser aceitas em concomitância com elas.

Sola Scriptura no contexto adventista

Os pioneiros adventistas viram a Reforma Protestante com apreciação e discernimento. Entenderam o sola Scriptura do contexto da Reforma como sendo o “grande princípio protestante – a Bíblia, e a Bíblia só, como regra de fé e prática”.34 Eles reconheceram o importante papel dos reformadores para o início do restabelecimento da autoridade das Escrituras na igreja cristã. Entretanto, tiveram discernimento para reconhecer que, ao se manterem em certa medida influenciados por outras fontes, os reformadores também cometeram erros interpretativos.35 Assim, a Reforma foi o começo de um processo de restauração, cujo avanço ficou limitado. Por essa razão, os pioneiros adventistas buscaram entender e aplicar o sola Scriptura de acordo com a reivindicação bíblica das Escrituras como a única fonte de conhecimento teológico. De maneira geral, essa mesma compreensão tem sido mantida no meio adventista. Há consenso de que em Sua Palavra “Deus conferiu à humanidade o conhecimento necessário para a salvação”.36

Perspectivas do princípio interpretativo sola Scriptura33
PeríodoApostólicoPós-apostólico
e Medieval
Reforma ProtestanteAvivalista
SignificadoExclusividade das EscriturasFusão das EscriturasAutoridade final das EscriturasPrimazia das Escrituras
Fontes de dadosUnicamente o Antigo Testamento (AT) e o Novo Testemunho Inspirado (NT) acerca dos ensinos de Cristo.Escrituras combinadas às fontes de ideias extrabíblicas (tradição pós-apostólica, filosofia e experiência mística).As fontes mistas de teologia (parte da tradição, a razão e a experiência) submetidas à autoridade das Escrituras e assim validadas.As Escrituras seguidas das fontes mistas de teologia (tradição, razão e experiência) e complemen-tadas por estas últimas.

Conclusão

A Reforma Protestante foi o importante marco inicial na restauração do significado e da aplicação do princípio bíblico interpretativo da exclusividade das Escrituras como fonte de dados teológicos. Entretanto, o valioso esforço feito pelos reformadores não foi suficiente para que a leitura e aplicação do texto sagrado fossem totalmente ajustadas às próprias reivindicações bíblicas.

Portanto, se por um lado é honroso comemorar 500 anos da Reforma e do que esse importante movimento representou e ainda representa para o cristianismo, por outro, é urgente refletir sobre as razões desse processo não ter sido ainda concluído. O princípio sola Scriptura encontra-se no cerne da questão. Conforme indagou Norman Gulley, “esta é a crise […] hoje. É a Bíblia sua própria intérprete?”37 Como leitores-intérpretes das Escrituras, somos desafiados nessa importante tarefa, conscientes de que a melhor maneira de celebrar a Reforma é, de fato, continuá-la! 

Referências

  • 1 Martinho Lutero, Martinho Lutero: Obras selecionadas, “Os primórdios – Escritos de 1517 a 1519”, 2ª ed. (São Leopoldo: Sinodal, Porto Alegre: Concórdia, Canoas: Ulbra, 2004), v. 1, p. 21-29.
  • 2 W. Walker, História da Igreja Cristã, 3ª ed. (São Paulo: ASTE, 2006), p. 494-497.
  • 3 Lutero, p. 215.
  • 4 J. M. Frame, A History of Western Philosophy and Theology, 1ª ed. (Phillipsburg, NJ: P&R Publishing, 2015), p. 754.
  • 5 D. Mangum, The Lexham Glossary of Theology (Bellingham, WA: Lexham Press, 2014).
  • 6 Geoffrey W. Bromiley, ed., The International Standard Bible Encyclopedia (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1988), v. 4, p. 361.
  • 7 Conforme informado por Guide Passage e Exegetical Guide, lemma gegraptai, pesquisado em Logos Bible Software.
  • 8 Jaroslav Pelikan, A Tradição Cristã: Uma História do Desenvolvimento da Doutrina, “O surgimento da Tradição Católica 100-600” (São Paulo: Shedd, 2014), v. 1, p. 66-70.
  • 9 E. M. Humphrey, Scripture and Tradition: What the Bible Really Says (Grand Rapids, MI: Baker Academic, 2013), p. 163.
  • 10 B. Hägglund, História da Teologia, 8ª ed. (Porto Alegre: Concórdia, 2014), p. 22, 23.
  • 11 Raúl Kerbs, El Problema de la Identidad Bíblica del Cristianismo: Las Pressuposiciones Filosóficas de la Teología Cristiana – Desde los Presocráticos al Protestantismo (Libertador San Martín: Editorial Universidad Adventista del Plata; Adventus, Editorial Universitaria Iberoamericana, 2014), p. 306.
  • 12 Alan Hauster e Duane F. Watson, A History of Biblical Interpretation: The Ancient Period (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 2003), v. 1, p. 304-333.
  • 13 Augustus Nicodemus Lopes, A Bíblia e Seus Intérpretes (São Paulo: Cultura Cristã, 2013), 3ª ed., p. 150.
  • 14 Justo L. Gonzalez, Uma Breve História das Doutrinas Cristãs (São Paulo: Hagnos, 2015), p. 231.
  • 15 “The Interpretation of the Bible in the Church” (6 de janeiro de 1994), <https://goo.gl/9f8HVt>.
  • 16 Ibid.
  • 17 D. Armstrong, 100 Biblical Arguments Against Sola Scriptura (San Diego, CA: Catholic Answers Press, 2012).
  • 18 Norman Gulley, Systematic Theology: Prolegomena (Berrien Springs, MI: Andrews University Press, 2003), p. 544.
  • 19 C. S. Evans, Pocket Dictionary of Apologetics & Philosophy of Religion (Downers Grove, IL: InterVarsity Press, 2002), p. 109.
  • 20 Gulley, p. 694.
  • 21 K. A. Mathison, The Shape of Sola Scriptura (Moscow, ID: Canon Press, 2001), p. 95.
  • 22 Gulley, p. 382.
  • 23 Christopher A. Hall, Lendo as Escrituras com os Pais da Igreja, 2ª ed. (Viçosa: Ultimato, 2007), p. 19, 20.
  • 24 J. M. Boice, Romans: God and History (Grand Rapids, MI: Baker Book House, 1991), v. 3, p. 1.473.
  • 25 C. A. Hall, Reading Scripture with the Church Fathers (Downers Grove, IL: InterVarsity Press, 1998), p. 13, 14.
  • 26 Ibid.
  • 27 Gonzalez, p. 234; Kerbs, p. 573.
  • 28 Kerbs, p. 597.
  • 29 C. H. Scobie, “History of Biblical Theology”, New Dictionary of Biblical Theology, ed. eletrônica (Downers Grove, IL: InterVarsity Press, 2000), p. 12.
  • 30 Richard M. Davidson, “Homosexuality and the Bible: What Is at Stake in the Current Debate”, em R. E. Gane, N. P. Miller e H. P. Swanson, eds., Homosexuality, Marriage, and the Church: Biblical, Counseling, and Religious Liberty Issues (Berrien Springs, MI: Andrews University Press, 2012), p. 190, 191.
  • 31 Gulley, p. 557.
  • 32 W. R. Godfrey, “What do We Mean by Sola Scriptura?” em D. Kistler, ed., Sola Scriptura: The Protestant Position on the Bible (Lake Mary, FL: Reformation Trust Publishing, 2009), p. 2.
  • 33 Carlos F. Teixeira, Sola Scriptura: Reflexões Temáticas Introdutórias Acerca dos Significados dessa Expressão (Engenheiro Coelho, SP: Academia Teológica, 2016), p. 13-57.
  • 34 Ellen G. White, O Grande Conflito, p. 204, 243, <egwwritings.org>.
  • 35 Ellen G. White, Fundamentos da Educação Cristã, p. 450, <egwwritings.org>.
  • 36 Extraído da Declaração Oficial de Crenças dos Adventistas do Sétimo Dia, <https://goo.gl/LUss9h>.
  • 37 Gulley, p. 595.