O que dizem a Bíblia e os escritos de Ellen G. White sobre o envolvimento de adventistas em demandas judiciais

No mundo atual, as pessoas são levadas a ter vida socialmente ativa, interagindo com outras pessoas e até mesmo com instituições. Inserido nessa realidade, o cristão se vê diariamente em contato com os efeitos colaterais do pensamento liberal predominante no mundo ocidental, onde aspirações cada vez mais secularistas e materialistas levam indivíduos a ferir o patrimônio espiritual (consciência), psíquico-emocional (moral) e material (bens) alheio, em razão de extremadas condutas antissociais e anticristãs.

Os adventistas do sétimo dia não estão imunes a tais dissabores, considerando que, para eles, além dos estímulos naturais de conflito social, acrescenta-se a peculiaridade das doutrinas professadas e praticadas, surgindo a partir daí situações que requerem seguras respostas às seguintes perguntas: Pode o adventis-ta demandar judicialmente? Em que hipóteses, e como, isso deve ocorrer?

Este artigo pretende ajudar aqueles que se virem numa situação de conflito, ou que necessitem orientar membros da igreja com vistas a decidir o que, como e quando fazer alguma coisa acerca do tema.

Palavra inspirada

Da Palavra de Deus e dos escritos proféticos, é possível extrair alguns textos que servem de guia para o estudo desse assunto e seus desdobramentos. O plano de Deus para o homem foi que esse jamais conhecesse o mal (Gn 3:3) nem fosse parte ativa ou passiva em qualquer conflito. No entanto, a partir do pecado, teve início um processo de degradação do comportamento humano, dando causa à providência divina para que houvesse uma estrutura de solução de conflitos bem como leis claras que regulassem o convívio civil e religioso do povo, conforme se lê em todo o livro de Levítico.

O estabelecimento de tais leis veio acompanhado do estabelecimento de tribunais e de agentes que os dirigissem para aplicação dessas leis: os chamados juizes, com a função de investigar, apurar e decidir quanto à contenda surgida, fosse essa no tocante a questões religiosas ou sociais (civis). O relato bíblico demonstra que, de acordo com cada época, esse papel teve titulares diversificados: sacerdotes (Dt 17:9), reis (lRs 3:28), príncipes, chefes de tribos (2Cr 19:8), profetas, ou mesmo cidadãos comuns foram ao longo do tempo encarregados de julgar, tendo Deus orientado quanto ao dever de agirem com equidade (Dt 25:2) e integridade, buscando sempre a verdade e a paz como meios de promoção da justiça, que é um dos atributos do caráter de Deus.

O tempo passou e, com a separação entre Igreja e Estado, também se separou a competência de regular, fiscalizar e promover meios de pacificar conflitos insurgentes, ficando a Igreja com a prerrogativa de regular conflitos de ordem estritamente religiosa, e o Estado com a tutela dos interesses civis, para isso estabelecendo leis de aplicação geral e compulsória visando a dirimir os litígios ameaçadores da paz social.

Embora se saiba que o pano de fundo de todo litígio seja o grande conflito entre o bem e o mal, a Bíblia demonstra a infinita sabedoria de Deus no trato com o tema, ao identificar as hipóteses de que esse conflito gere demandas de naturezas distintas, delineando para cada uma delas a postura do cristão.

Conflitos entre crentes

O texto de 1 Coríntios 6:1-8 apresenta alguns princípios de observância essencial para resolver conflitos entre cristãos:

  • O cristão deve evitar promover demanda judicial contra seus irmãos de fé (v. 6).
  • ♦ Evitar contendas que possam gerar qualquer litígio contra seus irmãos de fé (v. 7).
  • ♦ Deve ser paciente e tolerante, quando for vítima de injustiça ou dano por parte de seus irmãos de fé1 (v. 7).
  • ♦ Evitar causar qualquer injustiça ou dano que possam levar seus irmãos de  a sofrer demanda judicial (v. 8).

Depois de observar esses princípios, eventuais conflitos que persistam devem ser levados à igreja,2 a quem a Bíblia e os escritos de Ellen G. White atribuem autoridade judicial interna,3 exclusiva para solução de conflitos entre os da família da fé: “Contendas, discórdias e processos entre irmãos são uma desgraça para a causa da verdade. Os que enveredam por esse procedimento expõem a igreja ao ridículo de seus inimigos, e fazem que triunfe a causa dos poderes das trevas. Dilaceram de novo as feridas de Cristo, expondo-O à ignomínia. Desprezando a autoridade da igreja, mostram desprezo a Deus, que conferiu autoridade à igreja.”4

Outras declarações confirmam o mesmo princípio bíblico de que os conflitos entre cristãos devem ser tratados entre eles, nunca se recorrendo a estranhos.5 Aqui, devem ser ressalvados os casos extremos, possuidores destas características:

  • ♦ Notória repercussão pública e implicação social.
  • ♦ Casos cujo tema e seus desdobramentos extrapolem os limites de atuação da Igreja.6
  • ♦ Casos diante dos quais a igreja decline do exercício de sua autoridade judicial interna e, por razões de consciência, os envolvidos julguem necessário, depois de observados os passos de reconciliação previstos em Mateus 18:15-21,7 buscar ajuda externa.

Em tais hipóteses e no intuito de preservar sua pureza e integridade, a Igreja admite que seja o conflito levado às autoridades legais. Tal admissão não fica configurada nas hipóteses em que o membro rejeita a conciliação e decide demandar judicialmente em aberta rebeldia ao conselho pacificador da igreja.8

Crentes e descrente

Em relação a conflitos entre cristãos e não cristãos, podemos extrair significativos princípios a partir de alguns textos bíblicos:

  • O cristão deve evitar promoção de demanda judicial contra os que não partilham da mesma fé (Pv 25:8);
  • ♦ Deve evitar qualquer contenda em relação aos que não fazem parte da família da fé (Rm 12:18);
  • ♦ Deve ser paciente e tolerante quando for vítima de injustiça ou dano, por parte dos que não partilham a mesma fé (Mt 5:40);
  • ♦ Evitar causar qualquer injustiça ou dano aos que não são da mesma fé (Mt 5:25) e observar sempre a ordem bíblica, levando sua causa primeiramente a Deus (Is 41:21), o Supremo juiz, depois à Igreja (para aconselhamento e orientação).
  • ♦ Finalmente, em último caso depois de seguidos esses passos, é admitido que eventuais conflitos persistentes sejam levados aos tribunais e juizes seculares (Dt 19:17), legalmente constituídos (1Pe 2:13,14).

Quando se pensa na hipótese de um conflito somente entre pessoas descrentes, a Bíblia estabelece como princípio o não envolvimento de cristãos em conflitos alheios (lPe 4:15).

“Devemos reconhecer a importância de se garantir o respeito aos direitos humanos fundamentais”

Outros princípios

A Palavra de Deus prevê ainda alguns princípios de aplicação geral para os cristãos, na hipótese de envolvimento em demandas. Podemos resumi-los nos seguintes termos: Em todas as hipóteses possíveis, o crente deve preferir a solução pacífica, priorizando a arbitragem e a composição amigável do litígio.9 O crente deve zelar pela verdade, e sempre que for chamado a prestar declarações em juízo (Êx 23:2), deve fazê-lo cônscio de sua dupla responsabilidade ao ser juramentado.10

Jamais o cristão deve agir com favoritismo, preferência ou discriminação, em face de qualquer demanda, assim como jamais deve aceitar suborno (Dt 16:19). Estando em posição de autoridade, ele deve ser íntegro e justo no exercício de sua função (Lv 19:35; Dt 16:18). “Unicamente homens estritamente temperantes e íntegros devem ser admitidos em nossas assembleias legislativas e escolhidos para presidir nossas cortes de justiça. As propriedades, a reputação e a própria vida se acham inseguras quando deixadas ao juízo de homens intemperantes e imorais.”11

O cristão deve reconhecer que há conflitos cuja solução está além do alcance humano. Também deve reconhecer e obedecer às leis civis e as sentenças judiciais decorrentes de sua aplicação, desde que essas não contrariem os princípios da Palavra de Deus (Dt 17:11). Quando as leis dos homens se chocam com a Palavra e a lei de Deus, cumpre-nos obedecer a estas, sejam quais forem as consequências.12

Especialmente os adventistas do sétimo dia devem reconhecer a importância de se garantir o respeito aos direitos humanos fundamentais,13 como mecanismo de garantia de liberdade religiosa, dispondo-se a não violá-los e protegendo-os contra todo tipo de violação, utilizando para isso todos os meios formalmente adquiridos em Lei, tudo fazendo equilibradamente, em atento respeito e testemunho cristãos diante das pessoas.

Quando necessitar de ajuda especializada em direito, a Igreja ou qualquer de seus membros deverão procurá-la junto a pessoas que, antes de qualquer atributo, compartilhem da mesma fé. Jamais devemos ameaçar levar alguém a juízo como forma de provocação ou coação.14

Também devemos reconhecer que nunca é tarde para desistirmos de uma eventual demanda já iniciada, caso seja comprovado nosso erro, buscando nesses casos reparar danos causados a outras pessoas, evitando a extensão do mal.15

Responsabilidade cristã

Assim como aconteceu nos dias dos profetas Isaías (Is 59:4) e Habacuque (Hc 1:2,3), o mundo, a Igreja e os fiéis clamam por justiça. Sabemos que esse clamor somente encontrará satisfação quando nosso Supremo juiz e advogado retomar à Terra. Até então, devemos ser achados entre os pacificadores, aqueles que tudo fazem e suportam para não se tomarem a causa comis-siva ou omissiva de envolvimento em qualquer demanda judicial.

Porém, é certo que, enquanto aqui vivermos, seremos provados no tocante a esse assunto. Diante das prováveis hipóteses de conflitos ou demandas judiciais que possam surgir, a Palavra continua sendo o guia seguro para nossas ações e a fonte de respostas para nossos questionamentos.

Referências:

  • 1 Ellen G. White, Mensagens Escolhidas, v. 3, p. 299, 300.
  • 2 Manual da Igreja, 2005, p. 191.
  • 3 Ellen G. White, Testemunhos Seletos, v. 1, p. 390.
  • 4 Ibid., v. 2, p. 84.
  • 5 Ellen G. White, Mensagens Escolhidas, v. 3, p.