Uma análise sobre as origens do marxismo e a tentativa de harmonizá-lo com o cristianismo

Vivemos em um período da história ocidental ainda não compreendido em profundidade, que se tornou objeto de análise para muitos intelectuais e teólogos. De maneira ainda provisória, talvez nosso tempo possa ser pensado como pós-moderno ou outro termo mais ou menos semelhante. Acerca desse contexto histórico, ao analisar sua trajetória pessoal em livro, Eric Hobsbawm, historiador britânico, chamou o século 20 de “tempos interessantes”,1 sem ousar adentrar profundamente nas ambiguidades do século seguinte.

No entanto, em outro livro, deixou claro que “a destruição do passado […] é um dos fenômenos mais característicos e lúgubres do findar do século 20”.Essa perspectiva pode descrever também o alegado fim das metanarrativas e a crescente diminuição do poder simbólico do cristianismo, minado desde o século 19 e descrito pelo filósofo e sociólogo alemão Jürgen Habermas, ao citar Friedrich
Nietzsche, como “ponto de inflexão da pós-modernidade”.3

Gilles Lipovetsky, filósofo francês, considera o atual contexto histórico, de fortes mudanças e progressos científicos, como “tempos hipermodernos”.Para cunhar essa expressão, ele se valeu do conceito de “hipertexto”, que diz respeito a um texto bifurcado, sem sequência ou linearidade, cujo fim não pode ser percebido desde o início, estando esse sempre em contínua atualização. Trata-se, sob certa ótica, de um estranho otimismo elencado tão somente por progressos humanos em um plano imanente e repleto de personificações cúlticas e midiáticas. Mais compatível com esses tempos talvez seja o que ele, ainda em 1983, chamou de “era do vazio”,antevendo o profundo individualismo típico do fim do século 20 e cada vez mais presente hoje.

Por sua vez, Zygmunt Bauman, sociólogo polonês, tratou nossos tempos pelo conhecido termo “modernidade líquida”. Enquanto o líquido pode ser contido em qualquer recipiente ou discurso vazio, a Verdade, que é sólida, repleta de sentido e significados imutáveis, não é compatível com o que é transitório, finito e desenraizado. A perspectiva de um ser humano, paradoxalmente finito e autossuficiente, é uma questão para o cristianismo responder, a partir da cosmovisão apresentada na Bíblia.

No entanto, nosso tempo não nasceu no vácuo. Foi concebido séculos antes, depois da quebra do paradigma supostamente teocêntrico, no fim da Idade Média, e a inserção de uma nova forma de pensar, conhecida como antropocentrismo. O teocentrismo, algo como “Deus no centro”, talvez não seja a melhor expressão a ser utilizada para aquele período. Soa melhor falar em uma espécie de eclesiocentrismo, algo como “a igreja no centro”. No caso, a Igreja Romana medieval, geralmente mais interessada no poder secular.

O Renascimento, no fim da Idade Média, foi um dos movimentos responsáveis pelo Iluminismo. Este, de forma lenta, mas gradual e sistemática, criou um contexto que obscureceu o papel simbólico e normativo da igreja cristã na Europa. Sob muitos aspectos, há óbvios avanços proporcionados pelo Iluminismo como, por exemplo, o nascimento da ciência moderna. Contudo, certa falta de equilíbrio entre ciência e religião, que outrora proporcionou grandes benefícios ao mundo, levou, no século 19, ao desenvolvimento de ideias contrárias à soberania de Deus e ao lugar do ser humano. Nesse contexto, destacam-se Friedrich Nietzsche, filólogo crítico da religião ocidental, Charles Darwin e sua teoria evolucionista, e Karl Marx, como representante do materialismo histórico, abordagem que condiciona a evolução histórica à luta de diferentes classes sociais, motivada pela exploração dos mais pobres pelos mais ricos.

É possível entender vários aspectos do pensamento desses autores à luz de seu próprio tempo. Contudo, deve-se fazer aqui a ressalva de Paulo: “E não vivam conforme os padrões deste mundo, mas deixem que Deus os transforme pela renovação da mente, para que possam experimentar qual é a boa, agradável e perfeita vontade de Deus” (Rm 12:2). Ou seja, o cristão deve ter compromisso primário não com os paradigmas que moldam seu tempo, mas com a revelação divina, que é atemporal. Essa é uma premissa histórica para aqueles que aceitam a Bíblia como sua regra de fé e prática.6

Na sociedade, o resultado da influência de pensadores da era moderna sobre a compreensão da religião cristã foi uma grande ênfase em seu aspecto imanente, com resultados desastrosos. Afinal, “quando os deuses morrem, e os sistemas de valores desmoronam, o homem só encontra uma coisa: seu corpo. O domínio do físico”.Em contrapartida, no mesmo período, Deus levantou um movimento com uma mensagem distinta e a missão de exaltar os fundamentos da verdade contidos nas Escrituras Sagradas.

Recentemente, as redes sociais se tornaram palco de alguns debates nos quais defensores de uma integração entre marxismo e cristianismo levantam questionamentos a respeito da maneira pela qual as denominações protestantes lidam com determinados temas importantes da sociedade. Este artigo se propõe a apresentar uma visão introdutória do marxismo, a fim de avaliar a viabilidade de sua integração com o pensamento cristão, especialmente adventista.

Origens do marxismo

Karl Marx (1818-1883) foi um filósofo, jornalista, historiador, economista e revolucionário socialista. Friedrich Engels, no discurso que fez no funeral do amigo, afirmou: “Marx era, antes de tudo, um revolucionário. Sua verdadeira missão na vida era contribuir, de um modo ou de outro, para a derrubada da sociedade capitalista e das instituições estatais, […] para a libertação do proletariado moderno, que ele foi o primeiro a tornar consciente de sua posição e de suas necessidades, consciente das condições de sua emancipação. A luta era seu elemento. E ele lutou com uma tenacidade e um sucesso com quem poucos puderam rivalizar.” 8

A teoria de Marx, ainda que de formas distintas, serviu como base para revoluções ao redor do mundo. Em seu escopo, o marxismo abarca temas como filosofia e política, entre outros, encontrados em uma série de textos, publicados mais tarde por Engels. É considerado um pensamento clássico passível de múltiplas leituras. Entre seus muitos escritos, O Capital (1867) é considerado sua principal obra, por ser resultado de um estudo minucioso da produção material na sociedade burguesa, com a intenção de compreender sua estrutura e dinâmica de funcionamento.

Os conceitos marxistas não são de fácil compreensão, pois envolvem “um tecido de categorias” que caminha “do abstrato para o concreto, […] das estruturas para a superfície da aparência”.A maneira pela qual Marx elaborou os conceitos seguiu um método, o materialismo histórico dialético, numa reação aos pensadores idealistas que inicialmente o influenciaram. Esse método defende que as bases materiais devem ser o foco da investigação, pois são objetivas; isto é, existem independentemente da vontade do pesquisador. Assim, não são as ideias (a consciência) que formam os indivíduos, mas as condições de existência (materiais) deles é que formam sua consciência. Isso justifica o termo materialismo e sua perspectiva imanente.10

Ao analisar as condições sociais de sua época, Marx entendeu que a essência da sociedade reside na propriedade privada e na distinção entre as classes sociais, sendo esses os fatores desencadeadores de problemas como a pobreza, miséria, violência e exploração. O cerne da teoria marxista reside na superação da sociedade de classes pelo proletariado, pois à medida que a classe trabalhadora ascendesse ao poder e alcançasse a condição de classe dominante, instauraria a democracia para retirar o capital da burguesia e concentrá-lo nas mãos do Estado.11

Esse pensamento presume que o ser humano, como ser histórico e social, é capaz de resolver o problema da exploração resultante da divisão de classes. Nesse processo, a concorrência entre os indivíduos seria abolida e, consequentemente, a propriedade privada, estabelecendo em seu lugar “a chamada comunidade dos bens”.12 Assim, haveria o desaparecimento das crises, e o excedente da produção seria para o suprimento das necessidades de todos. Nessa nova realidade, os jovens poderiam passar por diferentes ramos de produção, já que não haveria trabalho mais valorizado, bem como a extinção da exploração da agricultura por meio da indústria.13

Embora marxismo, teoria social, e cristianismo, religião revelada, pertençam a categorias diferentes, ao longo do tempo, alguns religiosos se propuseram a unir os conceitos, em busca de uma religiosidade que se livrasse de algumas distorções do ideal bíblico perpetuadas por séculos.

Sem julgar as intenções dos proponentes dessa integração, é preciso analisar se as principais premissas do pensamento marxista são compatíveis com a cosmovisão bíblica. Em primeiro lugar, de acordo com as Escrituras, a origem da desigualdade social e do sofrimento humano não está no modo de produção, mas na queda da humanidade, inserida no contexto do grande conflito cósmico entre o bem e o mal. Em segundo lugar, ao contrário do pensamento marxista, que defende o poder de a capacidade humana resolver por si mesma os problemas decorrentes da forma pela qual os seres humanos se organizam em sociedade, a Bíblia mostra que a solução para a humanidade está na aproximação com o divino, por meio da obra salvífica de Jesus Cristo. Finalmente, o marxismo defende a possibilidade de transformar o mundo a partir do processo revolucionário, enquanto o ensinamento da Palavra de Deus é enfático ao dizer que a restauração plena não ocorrerá antes da segunda vinda de Jesus.

Marxismo e religião

Marx não se dedicou a escrever sobre religião, mas a criticou. Como instância social, ela está incluída na crítica feita ao próprio mundo real, do qual ela faz parte. Embora o pensador não ironize a religião, ele a vê como “obra da humanidade sofredora e oprimida, obrigada a buscar consolação no universo imaginário da fé”.14 Para ele, a crítica da religião é a crítica das condições humanas que faz com que as pessoas busquem a religião.

Por conta disso, cunhou sua frase clássica ao escrever que “a angústia religiosa é, ao mesmo tempo, a expressão da dor real e o protesto contra ela. A religião é o suspiro da criatura oprimida, o coração de um mundo sem coração, assim como o é o espírito de uma situação sem espírito. É o ópio do povo”.15 Para Eduardo Chagas, Marx fez a crítica da religião “na sua dimensão social e política, enquanto expressão de alheamento do homem de seu mundo real e de conformação social com esse mundo”, não em sua dimensão privada, pois esta diz respeito a cada indivíduo.16

Dessa maneira, a religião para Marx tinha papel de protesto impotente para combater a condição humana insatisfatória, ao mesmo tempo que alimentava a esperança ilusória de uma vida em outro mundo, já que este é repleto de desigualdades e injustiças. Assim, essas crenças impedem o ser humano de lutar contra esse estado de coisas e almejar uma transformação real no mundo concreto.

Por isso, tentar combater as injustiças de nossa sociedade a partir dos pressupostos marxistas é insuficiente, uma vez que eles desconsideram, e até mesmo contradizem, as premissas encontradas nas Escrituras. Longe de uma visão humana imanentista e revolucionária, a única revolução admitida na Palavra é a do amor, exemplificada por Jesus de Nazaré. Aquela que leva o cristão genuíno a agir no espírito de Cristo, a fim de pregar o evangelho que transforma e minorar o sofrimento humano, enquanto aguarda “novos céus e nova terra, nos quais habita a justiça” (2Pe 3:13).

Fábio Augusto Darius, professor da Faculdade de Teologia do Unasp, EC

Referências

1 Eric Hobsbawm, Interesting Times: A Twentieth-Century Life (Nova York: Pantheon Books, 2002).

2 Eric Hobsbawm, Era dos Extremos: O Breve Século XX (São Paulo: Cia. das Letras, 1995), p. 13.

3 Jürgen Habermas, O Discurso Filosófico da Modernidade (São Paulo: Martins Fontes, 2000), p. 121.

4 Gilles Lipovetsky, Os Tempos Hipermodernos (São Paulo: Barcarolla, 2004).

5 Gilles Lipovetsky, A Era do Vazio: Ensaios Sobre o Individualismo Contemporâneo (Barueri: Manole, 2005).

6 H. Richard Niebuhr, Cristo e Cultura (Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1967), p. 67.

7 G. Suffert, Le Cadavre de Dieu Bouge Ancore (Paris: Grasset, 1975), p. 79.

8 “Karl Marx’s Funeral”. Disponível em
<bit.ly/3jgOUVH>, acesso em 18/1/2021.

9 José Arthur Giannotti, “Vida e Obra”, em Karl Marx, Para a Crítica da Economia Política. Do Capital. O Rendimento e Suas Fontes (São Paulo: Nova Cultural, 1999), p. 17.

10 Karl Marx e Friedrich Engels, A Ideologia Alemã (São Paulo: Expressão Popular, 2009).

11 Karl Marx e Friedrich Engels, Manifesto do Partido Comunista (São Paulo: Expressão Popular, 2008).

12 Friedrich Engels, Princípios Básicos do Comunismo, em Karl Marx e Friedrich Engels, Obras Escolhidas (Lisboa: Avante; Moscou: Progresso, 1982), v. 1.

13 Engels, Princípios Básicos do Comunismo.

14 Giovanni Reale, História da Filosofia: Do Humanismo à Kant (São Paulo: Paulus, 1990).

15 Karl Marx, Crítica da Filosofia do Direito de Hegel (São Paulo: Boitempo Editorial, 2005), p. 146, 147.

16 Eduardo Ferreira Chagas, “A Crítica da Religião como Crítica da Realidade Social no Pensamento de Karl Marx”. Disponível em <bit.ly/39NPxms>, acesso em 14/1/2021.

Tentar combater as injustiças de nossa sociedade a partir dos pressupostos marxistas é insuficiente, uma vez que eles desconsideram, e até mesmo contradizem, as premissas encontradas
nas Escrituras.