Por que muitos cristãos não aceitam o ministério profético de Ellen White?

Fernando Dias

Desde que recebeu seu chamado profético em dezembro de 1844, Ellen White teve que lidar com a resistência entre os cristãos à autenticidade de seu dom. Apesar do bom testemunho de sua vida, da natureza evangélica de seus escritos e da coerência de suas visões com a Bíblia, prevalece contra ela, entre muitos cristãos, a acusação de falsa profetisa. No início, a maior desculpa para desacreditar a inspiração divina de Ellen White era a crença cessacionista predominante no meio cristão na metade do século 19. Para muitos protestantes, os dons sobrenaturais do Espírito Santo, particularmente o de profecia, cessaram após a morte do último apóstolo do Novo Testamento.

No entanto, durante o período de vida de Ellen White, despontaram movimentos cristãos com forte ênfase nos dons espirituais, incluindo o de profecia. Os movimentos irvingita, da vida mais elevada (ou de Keswick), restauracionista, de santidade, da carne santa e o pentecostalismo abriram-se para a possibilidade de manifestações carismáticas na igreja.Relatos de revelações, sonhos e visões tornaram-se comuns nas reuniões cristãs.

Alguns pregadores alegaram receber revelações divinas, e suas mensagens são aceitas além de seus limites denominacionais, influenciando a teologia evangélica. Podemos citar como exemplos Margaret MacDonald (1815-1840), jovem escocesa cujas visões apresentaram o arrebatamento pré-tribulacionista; Charles Finney (1792-1874), inspiração de grandes evangelistas posteriores; Phoebe Palmer (1807-1874), a dama do segundo despertamento; e A. W. Tozer (1897-1963), autor prolífico. Esses são apenas alguns pregadores não pentecostais que alegaram receber revelações divinas e cujas mensagens são amplamente aceitas no meio evangélico.

Entre os cristãos pentecostais, sonhos, visões e revelações são plenamente aceitos, a ponto de a defesa pentecostal da continuidade dos dons2 lembrar, em muitos aspectos, a defesa do dom de profecia feita pelos pioneiros adventistas. Atualmente, mesmo teólogos contemporâneos reformados, como Wayne Grudem e R. T. Kendall, admitem a continuidade do dom de profecia na igreja.3

No entanto, Ellen White praticamente não desfruta de aceitação fora dos limites do adventismo. Desde sua vocação profética em 1844, o evangelicalismo tem estado muito mais aberto à crença na continuidade dos dons, incluindo o de profecia. Por que, apesar de haver aceitação ampla de outros pregadores cristãos que admitiram receber revelações proféticas, ainda persiste a resistência quanto à manifestação desse dom no ministério dela?

Este artigo identifica cinco pontos de vista que se levantam como barreiras à aceitação de Ellen White entre o corpo maior de cristãos como uma mensageira legítima de Deus.

Segurança da salvação

O alto padrão de santidade que Ellen White apresentava em seus escritos, a ênfase na perfeição cristã e na obediência, a concepção de um juízo investigativo em andamento e a herança arminiana e wesleyana concebem uma salvação que pode ser perdida a qualquer momento. Segundo ela, o crente precisa permanecer em constante vigilância espiritual para não perder sua condição de salvo.4

Esse conceito é incompatível com as correntes dominantes da teologia cristã. No calvinismo há segurança da salvação porque essa é considerada uma obra exclusiva de Deus. No pentecostalismo a dotação do carisma, a segunda bênção, é garantia do favor divino. No catolicismo a participação do sacramento garante a certeza da salvação. O espiritismo e o protestantismo liberal tendem ao universalismo. Enfim, para todos esses grupos cristãos, a soteriologia de Ellen White, que admite a possibilidade de se perder a salvação, é inconveniente.

Mudança de cosmovisão

Ellen White escreveu em uma cultura vitoriana, modernista. Seu contexto religioso e sua própria produção literária tiveram influência do puritanismo, do avivalismo do segundo despertamento e do movimento de santidade, com algum reflexo e reação ao iluminismo.

Atualmente vivemos em um contexto pós-moderno, e o evangelicalismo está sob influência ecumênica e pentecostal-carismática. Essa mudança de paradigma faz com que muitas declarações de Ellen White sejam consideradas absurdas, como, por exemplo, seus pontos de vista sobre usos e costumes, criacionismo e anticatolicismo.5 Mesmo alguns adventistas do sétimo dia mais inclinados ao espírito desta época têm dificuldades com algumas declarações da autora e são tentados a reinterpretar ou desprezar declarações que destoam da contemporaneidade.

Fundamentalismo

O fundamentalismo cristão, movimento surgido no começo do século passado e que tomou seu nome da obra Os Fundamentos,6 enfatiza a inspiração verbal e inerrante da Bíblia e um apego a doutrinas tradicionais do cristianismo como a guarda do domingo, a imortalidade incondicional da alma, a antropologia dicotomista (ou, em alguns casos, tricotomista) e o castigo eterno dos ímpios. Naturalmente, o fundamentalismo foi uma barreira erguida para conter a enchente do liberalismo teológico.

Ellen White sempre combateu a teologia liberal, mas muitos de seus ensinos não cabem na caixa do fundamentalismo.7 Ela jamais reconheceu a inspiração verbal das Escritura ou sua inerrância.Tampouco aceitou a doutrina do castigo eterno dos ímpios. Aceitar o dom profético de Ellen White implica renunciar a pretensa segurança do fundamentalismo, removendo ao mesmo tempo seu modelo de revelação e alguns pilares de sua ortodoxia tradicional. É dentre os fundamentalistas que vêm os ataques mais ferozes ao dom profético da escritora.

Espiritualidade mística

Para a espiritualidade carismática de pentecostais e católicos renovados, assim como para a espiritualidade contemplativa e litúrgica de protestantes históricos e católicos tradicionalistas, a revelação divina é sempre subjetiva e mística. Ou seja, Deus Se revela ao crente que O busca por meio do êxtase carismático ou contemplativo.9

A experiência profética de Ellen White, porém, era objetiva e partia sempre de Deus. Essa diferença torna, à vista dos demais cristãos, extremamente pretensioso seu dom, pois está totalmente fora do controle humano uma repetição de sua experiência.

Sincretismo

Outro fator que cria resistência à obra de Ellen White é a associação de alguns de seus pretensos seguidores a ideias radicais que ela jamais defendeu. Alguns tentam fundamentar, a partir de trechos de seus escritos mal interpretados e mal aplicados, conceitos estranhos ao seu pensamento, como a defesa do uso exclusivo de versões bíblicas produzidas a partir do Texto Recebido (como as versões King James e
Almeida Corrigida e Fiel), o veganismo, teorias de conspiração envolvendo jesuítas e sociedades secretas, a teologia da última geração, tentativas de cálculo para a segunda vinda de Cristo, o antitrinitarismo, a natureza pós-lapsariana do Cristo encarnado e o perfeccionismo. Essa amálgama do pensamento da autora com opiniões que ela nunca endossou confunde e cria rejeição ao seu ministério.

Conclusão

Ao longo dos séculos, muitos teólogos cristãos ensinaram muitas das coisas que Ellen White ensinou. Mas, na sempre crescente diversidade teológica protestante, cada um de seus segmentos define sua ortodoxia exagerando alguns pontos favoritos em reação a abusos e excessos dos outros grupos. A doutrina bíblica conforme apresentada por Ellen White não se harmoniza perfeitamente com essas tendências definidas mais pela história e pela dialética entre setores da cristandade do que pela Bíblia somente.

Por isso, apesar de relatos de experiências visionárias semelhantes às de Ellen White desfrutarem de bastante aceitação no cristianismo contemporâneo e de seus ensinamentos serem compatíveis com o que prega a maioria dos cristãos, sempre sobra alguma ênfase em cada segmento que o impede de reconhecer nela uma cristã que recebeu o genuíno dom de profecia. São, no entanto, justamente essas barreiras que podem ser transformadas em pontes para levar a mensagem que lhe foi revelada por Deus a um público mais amplo.

Os pioneiros adventistas formavam um grupo interconfessional que estudou a Bíblia, construiu uma teologia pré-milenarista bíblica e se valeu das revelações dadas por Deus a Ellen White para confirmar as fórmulas consensuais que elaboraram após estudo, discussão e oração. Ao propor experiência semelhante aos cristãos em geral, conceitos e preconceitos serão derrubados em favor da Bíblia, abrindo o caminho para o reconhecimento do dom de Ellen White como um carisma do Espírito
Santo à igreja contemporânea. 

Referências

1 Alderi Matos, “Edward Irving: Precursor do Movimento Carismático na Igreja Reformada”, Fides Reformata, 1º semestre de 1996; J. I. Packer, Na Dinâmica do Espírito (São Paulo: Vida Nova, 1991),
p. 22, 23; Gary Land, “Carne Santa, Movimento da”, em Denis Fortin e Jerry Moon (eds.), Enciclopédia Ellen G. White (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2018), p. 735, 736; W. W. Whidden, “Restauracionismo”, em Fortin e Moon, p. 1230, 1231.

2 Jack Deere, Surpreendido Pelo Poder do Espírito (Rio de Janeiro: CPAD, 1995), p. 101-116.

3 Wayne Grudem, O Dom de Profecia no Novo Testamento e Hoje (Natal, RN: Carisma, 2017),
p. 226-237; R. T. Kendall, A Unção (Belo Horizonte, MG: Betânia, 2005), p. 196-210.

4 Ellen G. White, Reavivamento Verdadeiro (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2012), p. 38-40.

5 Milton Torres, Heterodoxia (Artur Nogueira, SP: Paradigma, 2008), p. 118-127, 164-173.

6 R. A. Torrey, Os Fundamentos (São Paulo: Hagnos, 2005).

7 Ellen G. White, Atos dos Apóstolos (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2006), p. 474.

8 Ellen G. White, Mensagens Escolhidas (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 1895), v. 1, p. 21.

9 Herbert Douglass, Profecias Surpreendentes (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2020), p. 157-188; Vanderlei Dorneles, Cristãos em Busca do Êxtase (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2014),
p. 75-120.

Fernando Dias, editor de livros na Casa Publicadora Brasileira