O fator predominante que marcou a ruptura entre a Igreja Católica e a Reforma Protestante no século 16 foi a doutrina do sola Scriptura. O Concílio de Trento (1546) reagiu contra esse princípio, declarando que a verdade divina está “contida nos livros escritos e nas tradições não escritas”1 que foram preservados dentro da Igreja Católica. Essa posição não mudou. A igreja romana continua ensinando que possui “o depósito sagrado” (cf. 1Tm 6:20; 2Tm 1:12-14) da fé (depositum fidei) contido na Sagrada
Tradição e nas Escrituras Sagradas”;2 portanto, ambos “devem ser recebidos e respeitados com o mesmo espírito de devoção”.3 Da perspectiva católica, sola Scriptura não é um ensino bíblico, mas um argumento criado pelos reformadores protestantes para negar a autoridade da igreja. A Enciclopédia Católica pergunta: “Onde está escrito na Bíblia que ela é a única fonte de fé?”4
O assunto é de interesse para todo adventista, visto que todas as denominações que aceitam o sola Scriptura se consideram a mais consistente com esse princípio.
O que é sola Scriptura?
Defender o sola Scriptura significa afirmar que, fora da Bíblia, não há outra autoridade infalível de fé e prática para os cristãos, e que tudo o que ela contém é suficiente para a salvação. Essa ideia não está completa até que seja contrastada com aquilo que ela não é:
1. Não significa que a Bíblia possua tudo o que Deus disse ou fez. As Escrituras afirmam que há coisas que ela não contém, visto que sua finalidade é salvífica (Jo 21:25), não enciclopédica.
2. Não significa negar a razão (Mt 22:37; Mc 12:30; Lc 10:27), mas ela deve estar sujeita à autoridade das Escrituras (1Co 2:1-6; 2Co 10:5).5
3. Não significa que a Bíblia possa ser interpretada descuidadamente, gerando conclusões absurdas (2Pe 1:19-21; 3:15, 16).
Uma interpretação adequada é regida por “princípios de uma hermenêutica saudável”.6
4. Não exclui a autoridade da igreja ao ensinar a verdade bíblica (1Tm 3:15), mas a própria igreja deve estar sujeita à Palavra de Deus (2Tm 3:15–4:15). Ou seja, a igreja “tem um papel ministerial de defender as Escrituras, mas não tem um papel magisterial sobre as Escrituras”.7
5. Não significa negar a utilidade das tradições adequadas, mas sustenta que as Escrituras estão acima de qualquer uma delas, pois é a norma pela qual todo costume religioso deve ser julgado.
Sola Scriptura se encontra na Bíblia?
Não há nenhuma declaração na Bíblia que expresse o conceito de sola Scriptura, mas isso não significa que ele não esteja lá. O caso se assemelha à Trindade; embora a palavra não seja bíblica, a doutrina é. No caso do sola Scriptura, o conceito surge do estudo da natureza da Bíblia, ao refletir como homens piedosos se relacionavam com ela, o lugar único que eles lhe deram em um nível pessoal e seu papel frente às ideias e costumes religiosos de seu tempo.
Durante o processo de formação das Escrituras, os profetas receberam a mensagem divina e a transmitiram oralmente; mas, para que fosse preservada, o Senhor ordenou que ela fosse escrita
(Êx 17:14; 34:27; Nm 33:2; Dt 31:19; Jr 30:2). Por essa razão, desde os dias de Moisés, as Escrituras eram consideradas autoritativas (Êx 24:3, 7). A Palavra escrita foi usada como norma de obediência pelo rei (Dt 17:18, 19; Js 1:8; 23:6a) e pelo povo (Dt 30:10); como padrão de conduta (Js 1:7; Dt 17:20; 23:6b); e para distinguir entre a verdade e o erro (Is 8:20). Israel sempre foi lembrado de que a obediência às Escrituras traria bênçãos (Dt 30:9, 10; 1Rs 2:3), mas sua desobediência resultaria em maldição (Dt 27:26; 28:58-61).
No Novo Testamento (NT), quando o cânon do Antigo Testamento (AT) já estava formado,8 pode-se observar que tanto Jesus quanto Seus discípulos usaram as Escrituras como autoridade final para elucidar todas as controvérsias religiosas (Mt 4:4, 7, 10; 19:3-6; 22:41-46; Mc 12:35-40; Lc 10:25, 26; 20:39-44; 24:25-27, 44-46). Seguindo o exemplo de Jesus, os apóstolos continuamente citavam as Escrituras para pregar, apoiar seus argumentos e desenvolver sua teologia (At 1:15-17; 17:2, 3; 18:24, 28 ; Rm 1:2, 17; 16:25, 26; 2:24; 3:4, 9-18; 4:17; 2Tm 3:15-17).
O conceito católico de tradição
De acordo com o Catecismo da Igreja Católica, Cristo ordenou aos apóstolos que pregassem o evangelho, e para que “este evangelho se mantenha sempre vivo e íntegro na igreja, os apóstolos nomearam os bispos como sucessores, ‘deixando-lhes a sua posição no magistério’ (DV 7)”.9
Assim, era esperado que a “pregação apostólica” fosse “preservada por transmissão contínua até o fim dos tempos (DV 8)”.10 Essa “transmissão viva realizada no Espírito Santo é chamada de Tradição, na medida que é distinta das Escrituras Sagradas, embora intimamente ligada a elas. Por ela, ‘a igreja com seu ensino, sua vida e seu culto conserva e transmite a todos os tempos o que é e o que crê’ (DV 8)”.11
A Enciclopédia Católica afirma que o magistério vivo da igreja é aquele que toma “os meios de transmissão” da tradição (escritos dos padres gregos e latinos, concílios, monumentos, entre outros) e busca neles “a expressão exata do pensamento vivo da igreja”.12
Segundo a Igreja Católica, a tradição está no mesmo nível das Escrituras porque o NT assim o ensina: “Eu os elogio porque em tudo vocês se lembram de mim e retêm as tradições assim como eu as transmiti a vocês” (1Co 11:2); “Assim, pois, irmãos, fiquem firmes e guardem as tradições que lhes foram ensinadas, seja por palavra, seja por carta nossa” (2Ts 2:15). O argumento é que nessas passagens Paulo pediu aos cristãos que retivessem as verdades comunicadas pela “tradição”, e não apenas pelas Escrituras. De acordo com o catolicismo, isso acaba com o sola Scriptura.
É indiscutível que, nos primeiros anos da igreja, o evangelho era transmitido oralmente (1Co 15:3), então os apóstolos ou seus colaboradores o colocavam por escrito e o enviavam às diferentes igrejas (Cl 4:16; 1Ts 5:27). Essa mensagem escrita foi inspirada pelo Espírito Santo (Jo 16:13; 1Co 7:40; 2Tm 1:14), autorizada (Gl 1:11, 12; Ef 3:4, 5; 1Pe 1:12; 2Pe 3:15, 16) e estava em harmonia com a mensagem oral que havia sido transmitida (2Ts 2:15). Por esse motivo, esses escritos apostólicos advertiam contra a aceitação de mensagens espúrias ou o aparecimento de falsos mestres com uma doutrina diferente da que tinham ouvido (At 20:28-30; Tt 1:10, 11; 2Tm 2:17; 4:1-4; 2Pe 2:1-22; 2Jo 1:1-7). Pedro chamou esses falsos ensinos de “heresias destruidoras” (2Pe 2:1). Paulo também admoestou os romanos: “Irmãos, peço que notem bem aqueles que provocam divisões e escândalos, em desacordo com a doutrina que vocês aprenderam. Afastem-se deles” (Rm 16:17). Quando escreveu aos gálatas, chegou a colocar sob anátema qualquer um que pregasse um “evangelho diferente” daquele que ele lhes havia pregado (Gl 1:8, 9). Para o apóstolo, havia perfeita harmonia entre sua mensagem oral e a escrita, e ninguém poderia mudar, nem eles nem “mesmo um anjo vindo do Céu”.
Portanto, pode-se dizer que, no primeiro século, as Escrituras e a tradição apostólica eram iguais. Quando Paulo pediu aos crentes que permanecessem nas “tradições”, nada mais era do que permanecer nos ensinamentos ou “instruções” que ele lhes deu durante suas estadas evangelísticas, ensinamentos que mais tarde foram colocados por escrito nos documentos do NT. Por sua vez, a tradição católica é muito diferente, pois não apenas consiste em um conjunto diverso, variado e às vezes conflitante de práticas e ensinamentos reunidos ao longo dos séculos, mas continuamente contradiz as Escrituras. Portanto, a suposta base bíblica para a teoria da tradição católica simplesmente não existe.
Problemas com a tradição católica
Há uma semelhança notável entre o conceito de revelação sustentado pelos fariseus nos dias de Cristo e a doutrina católica da tradição.13 O farisaísmo afirmava a existência de uma lei escrita e uma oral, procedentes do Sinai, das quais eram considerados porta-vozes.14 O NT chama essa tradição oral de “tradição dos anciãos” (Mt 15:2) ou “tradições dos meus pais” (Gl 1:14). O mais interessante, porém, é observar que Cristo, embora respeitasse certos ensinos dos fariseus (Mt 23:1-3), nunca Se submeteu às tradições que iam contra a Palavra de Deus, mas antes as condenou como “preceitos humanos” (Mt 15:9).
Para Cristo e Seus discípulos, a lavagem ritual das mãos não tinha base bíblica, por isso eles não a praticavam.15 A atitude de Jesus gerou críticas por parte dos fariseus (Mt 15:1, 2; Mc 7:1, 2, 5). Naquela ocasião, Cristo mostrou-lhes que, por causa da tradição, estavam invalidando “o mandamento de Deus” (Mt 15:3-6), e lembrou-lhes que a adoração que coloca as ideias humanas acima das Escrituras não tem valor diante do Céu (Mt 15:7-9; Mc 7:6-9).
Além dos indicadores apresentados, a tradição contém outras limitações. O NT exemplifica como uma ideia compartilhada por meio da tradição oral pode ser deturpada. João 21:21 a 23 apresenta uma interpretação inadequada das palavras de Cristo que se espalhou entre os discípulos pela tradição oral – a ideia de que João não morreria – até que, como afirmam Geisler e MacKenzie, o próprio João “contestou essa falsa tradição em seu registro escrito autorizado”.16
A evidência mais clara de que a tradição oral não é confiável está no fato de que ela se contradiz. Um exemplo é o tema do milênio. Alguns pais como Papias de Hierápolis, Irineu, Justino Mártir, Melitão de Sardes e Tertuliano acreditavam que Cristo voltaria e reinaria mil anos desde Jerusalém. Contudo um dos principais oponentes a essa ideia foi Orígenes, que ensinou que o milênio era alegórico. Até 396, Agostinho aceitava o milenismo, mas depois ensinou que o milênio é todo o período da igreja.17
Outro exemplo é a veneração de imagens. Pais como Orígenes, Lactâncio, Epifânio e Agostinho se opuseram às imagens no culto. O Concílio de Elvira (em algum momento entre 300 e 324) em seu cânon 36 também proíbe essa prática.18 Eusébio de Cesareia, quando soube que alguns recém-convertidos haviam feito imagens, inclusive de Cristo, atribuiu isso ao “uso pagão que prevalecia entre eles”.19 Posteriormente, Gregório III privilegiou as imagens sem nenhum tipo de restrição.20 Por fim, o Concílio de Niceia II, em 787, permitiu a veneração das imagens e ameaçou excomungar os que se opusessem a essa prática.21 Não há consenso nem uniformidade no que o catolicismo chama de tradição, porém o mais sério é que muitas vezes contradiz as Escrituras.
Conclusão
Sola Scriptura não é uma invenção do século 16, mas um princípio que está na Bíblia. Por outro lado, não há fundamento bíblico para o conceito católico de tradição. Mesmo assim, é impossível para a Igreja Romana abandoná-lo, porque “se renunciasse à tradição, todo o sistema entraria em colapso, pois grande parte de sua doutrina e prática não tem outro fundamento”.22
No contexto do grande conflito, os adventistas devem ter em mente as seguintes palavras de Ellen White: “No entanto, Deus terá na Terra um povo que se fundamentará na Bíblia, e apenas na Bíblia, como norma de todas as doutrinas e base de todas as reformas. […] Antes de aceitar qualquer doutrina ou preceito, devemos conferir se há um categórico ‘assim diz o Senhor’”.23
Cristhian Alvarez Zaldúa, professor de Teologia na Universidade Adventista da Bolívia
Referências
1 H. J. Schroeder, The Canons and Decrees of the Council of Trent (Rockford, IL: Tan Books, 1978), p. 17.
2 Catecismo de la Iglesia Católica (Santo Domingo: Librería Juan Pablo II, 1992), p. 29, 31.
3 Catecismo de la Iglesia Católica, p. 30.
4 “Tradition and Living Magisterium”, Catholic Encyclopedia. Disponível em <link.cpb.com.br/41d5da>, acesso em 20/2/2019.
5 John T. Baldwin, “Fé, Razão e o Espírito Santo na Hermenêutica”, em George W. Reid, Compreendendo as Escrituras (Engenheiro Coelho, SP: Unaspress, 2007), p. 15-26.
6 José M. Martínez, Hermenéutica Bíblica (Barcelona: Clie, 1984), p. 23.
7 Norman R. Gulley, Systematic Theology: Prolegomena (Berrien Spring, MI: Andrews University Press, 2003), p. 321.
8 Gleason L. Archer, Reseña Crítica de una Introducción al Antiguo Testamento (Grand Rapids, MI: Editorial Portavoz, 1987), p. 75-86.
9 Catecismo de la Iglesia Católica, p. 29.
10 Catecismo de la Iglesia Católica, p. 29.
11 Catecismo de la Iglesia Católica, p. 29, 30.
12 “Tradition and Living Magisterium”, Catholic Encyclopedia.
13 Daniel Carro, José Tomás Poe e Rubén O. Zorzoli (eds.), Comentario Bíblico Mundo Hispano: Gálatas, Efesios, Filipenses, Colosenses y Filemón (El Paso, TX: Editorial Mundo Hispano, 2001), v. 21, p. 210.
14 Alfonso Ropero, Alfonso Triviño e Silvia Martínez (eds.), “Tradición”, em Diccionario Enciclopédico Bíblico Ilustrado (Barcelona: Clie, 2016), p. 1557.
15 Darrel L. Bock, Marcos: Comentario Bíblico con Aplicación NVI (Miami, FL: Editorial Vida, 2014),
p. 323.
16 Norman L. Geisler e Ralph E. MacKenzie, Roman Catholics and Evangelicals: Agreements and Differences (Grand Rapids, MI: Baker Books, 1995), p. 195.
17 Agostinho, Ciudad de Dios, XX.
18 José Vives, Concilios Visgóticos e Hispano-romanos (Madri: Consejo Superior de Investigaciones Científicas, Instituto Enrique Flórez, 1963), p. 8.
19 Eusébio, História Eclesiástica, VII, 18, 4.
20 María Magdalena Ziegler Delgado, “Oh, Las Imágenes! El Conflicto Iconoclasta Bizantino”, Revista de la SEECI, XIII, n. 18 (2009), p. 53.
21 Alfonso Hernández Rodríguez, “Iconoclasmo e Iconodulia entre Oriente y Occidente (siglos VIII-IX)”, Byzantion Nea Hellás 30 (2011), p. 77, 78.
22 Rodríguez, “Iconoclasmo e Iconodulia”, p. 77, 78.
23 Ellen G. White, O Grande Conflito (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2021), p. 495 [596].