A doutrina da presciência divina tem sido marcada por vários conflitos ao longo da história do cristianismo. Já no início do século V, encontramos a controvérsia pelagiana, na qual, de um lado estava Agostinho, defendendo a doutrina da predestinação e da “graça divina irresistível”, e do outro, Pelágio e Céstio, superenfatizando a “liberdade da vontade humana”.1
Durante o período da Reforma dos séculos XVI e XVII, podemos salientar que, mesmo entre os adeptos da Confissão de Augsburgo (1530), houve por algum tempo desacordo entre alguns teólogos sobre a questão “da eterna presciência e eleição de Deus”.2 Porém, como ponto culminante, podemos considerar a reação que o calvinismo produziu especialmente na Holanda, e que envolveu os Países Baixos protestantes. A maior expressão dessa reação encontramos em Jacó Arminius (1560-1609) e seus discípulos, cuja doutrina é conhecida como arminianismo. Essa controvérsia assumiu caráter político e intensificou-se a tal ponto que, num sínodo nacional em Dort (1619), o arminianismo foi condenado, e um de seus defensores, João van Odenbarneveldt, foi decapitado em 13 de maio de 1619, e Grotius, condenado à prisão perpétua, muito embora conseguisse fugir posteriormente.3
Ainda hoje, o cristianismo se encontra dividido neste aspecto da teologia; e, para chegarmos a algumas conclusões mais consistentes, mencionaremos primeiramente algumas das principais maneiras como tem sido interpretado o assunto e, então, procuraremos nos deter ao máximo no conceito bíblico e em suas implicações sobre outros aspectos da teologia bíblica.
Teorias Sobre a Presciência Divina
As várias teorias sobre a presciência divina podem ser reunidas em dois grupos principais: os que crêem na presciência divina absoluta, e os que advogam a presciência divina relativa, isto é, não absoluta. O primeiro grupo, que crê na presciência divina absoluta, pode ser dividido em dois subgrupos: um afirmando que a presciência divina não é causativa em si mesma, sendo, deste modo, compatível com o livre-arbítrio humano; e o outro, asseverando a presciência divina causativa, ou seja, que ela implica em predestinação absoluta ou determinismo, negando, portanto, o livre-arbítrio humano.
Entre os que crêem na presciência divina absoluta e não-causativa, encontra-se a maioria dos cristãos ortodoxos e fundamentalistas, entre os quais estão os Adventistas do Sétimo Dia. Eles afirmam que Deus prevê o futuro nos seus mínimos detalhes, bem como todas as ações dos seres livres, sem que isto implique em determinismo ou predestinação.
Já os que asseveram a predestinação divina absoluta e causativa, colocam grande ênfase sobre a “soberania de Deus”,4 afirmando que todas as coisas ocorrem pela vontade divina. Seus maiores defensores são os seguidores da dupla predestinação de Calvino; porém, suas raízes já podem ser encontradas em Santo Agostinho, segundo o qual, a graça divina é destinada àqueles a quem Deus escolhe. Ele, portanto, predestina aqueles que Ele quer predestinar, “para o castigo e para a salvação”. Sendo que o número em cada um dos casos está fixado.5
Do outro lado estão os que acreditam numa presciência divina relativa, ou seja, que Deus não conhece o futuro no sentido absoluto. Para estes o ponto crucial é que, “se Deus conhece todas as coisas de antemão, toda a liberdade de ação parece ser excluída”.6 “Foi essa dificuldade que levou Cícero, Marcião e os socinianos a negarem a presciência absoluta de Deus. Os jesuítas tentaram harmonizar a presciência divina e a liberdade humana por sua doutrina de um conhecimento médio (mediato); isto é, um conhecimento contingente do futuro; por exemplo, Deus conhece o que Ele irá fazer SE Davi for a Queila, e igualmente SE ele não for; etc. A teologia católica romana aceita este conhecimento mediato. Os arminianos e os luteranos não são hostis a ele. Agostinho e todos os teólogos reformados rejeitaram-no absolutamente.”7 Ainda entre os defensores dessa posição estão os que advogam a “Onisciência Aberta”, isto é, que Deus prevê o futuro apenas parcialmente — pelas consequências naturais de fatores presentes e passados, pelas Suas próprias ações (o que Ele há de fazer), e pelo fato de conhecer todas as opções disponíveis aos seres humanos; porém não as próprias ações livres.8 E o Dr. Herman Bavinck (1854-1921), um dos maiores teólogos reformados, esclarece que esta posição “está baseada sobre o conceito pelagiano do livre-arbítrio; e torna Deus dependente do homem”.9
Predestinação e Livre-Arbítrio
Predestinação e livre-arbítrio são dois conceitos aparentemente contraditórios. Como a Bíblia estabelece a ambos, não podemos advogar apenas um deles, em detrimento do outro; pois “quando argumentamos dedutivamente, com base na onisciência e na onipotência de Deus, o livre-arbítrio humano parece ser obliterado. Por outro lado, quando argumentamos dedutivamente, com base no livre-arbítrio humano, a presciência e o poder divino de determinar as ações parecem excluídos”.10 Assim surge a indagação: Até que ponto Deus determina os acontecimentos humanos, e até que ponto o homem é livre em suas ações?
A doutrina da predestinação calvinista “sustenta que desde toda a eternidade passada, todas as coisas foram ordenadas de antemão, de tal modo que elas terão de ocorrer necessariamente dentro do tempo, incluindo a salvação final ou a reprovação final dos homens”.11 Essa doutrina afirma ainda que Cristo morreu apenas pelos “eleitos de Deus”, para os quais a graça salvadora de Deus é concedida incondicionalmente; enquanto que para o restante da humanidade não há esperança de salvação.
A doutrina da predestinação nem sempre tem sido apresentada da mesma forma; porém, desde os dias da controvérsia com o arminianismo, duas concepções diferentes têm sido advogadas: o supralapsarianismo e o infralapsarianismo; a primeira afirmando que o primeiro pecado do homem, que o levou à queda, havia sido predestinado; e a segunda, que esse pecado de Adão foi meramente um objeto da presciência divina.12 Em outras palavras, o supralapsarianismo acredita que o decreto da eleição precedeu à queda, ao passo que o infralapsarianismo “acredita que os indivíduos que foram vistos por Deus como ‘eleitos’, foram contemplados por Deus como membros de uma raça decaída. Em outras palavras, o decreto da eleição se seguiria logicamente, se não mesmo cronologicamente, à queda do homem no pecado”.13
Entretanto, o próprio relato da criação e da queda do homem, no livro de Gênesis, estabelece a doutrina do livre-arbítrio humano — de um lado está a ordem divina a Adão: “Da árvore da ciência do bem e do mal não comerás” (cap. 2:17), e do outro, a transgressão dessa ordem: “e ele comeu” (cap. 3:6). Este episódio demonstra claramente que as ordens divinas podem ser transgredidas por Suas criaturas dotadas de livre-arbítrio. Mesmo para Henrique Bullinger (1504-1575), o sucessor de Zuínglio, a predestinação da queda de Adão parecia irreconciliável com a justiça da punição do pecado.14 Isto faria de Deus um tirano arbitrário! E neste ponto surge mais uma indagação: “Uma vez que somos todos pecadores, por que uma pessoa deveria ser escolhida para honra e outra para desonra?”15
A dupla predestinação calvinista afirma que a graça salvadora de Deus é concedida apenas aos que Ele predestinou à salvação; porém o conceito bíblico não suporta esta posição. Isaías 55:1 diz: “Ah! todos vós os que tendes sede, vinde às águas…”, e Cristo ratifica essas palavras com o convite: “Vinde a Mim todos…” (S. Mat. 11:28), e ordena que as boas-novas da salvação devem ser pregadas “a toda criatura” (S. Marc. 16:15). A Bíblia aprofunda ainda mais esse conceito ao declarar que Deus
“deseja que todos os homens sejam salvos’’ (I Tim. 2:4), e que Ele não quer “que nenhum pereça, senão que todos cheguem ao arrependimento’’ (II S. Ped. 3:9); e a ordem divina é: “Agora, porém, notifica aos homens que todos em toda parte se arrependam” (Atos 17:30). “O convite a todos para que se arrependam seria um escárnio ao nome de Deus se os homens não se pudessem arrepender.”16 A Bíblia acrescenta, porém, que “Deus não faz acepção de pessoas; pelo contrário, em qualquer nação, aquele que O teme e faz o que é justo Lhe é aceitável” (Atos 10:34 e 35).
Na verdade, “a predestinação pode apenas ser compreendida cristologicamente”.17 Porque o próprio Deus declara: “Tão certo como Eu vivo, diz o Senhor Deus, não tenho prazer na morte do perverso, mas em que o perverso se converta do seu caminho, e viva.” Ezeq. 33:11. EIS. João 5:12 esclarece ainda mais este aspecto ao dizer que “aquele que tem o Filho tem a vida; aquele que não tem o Filho de Deus não tem a vida”. Neste sentido a eleição bíblica para a salvação é “em Cristo” (Efés. 1:4).
“Certas coisas foram decretadas pelo livre-arbítrio de Deus, e uma delas é a lei da escolha e suas consequências. Deus decretou que todo aquele que voluntariamente se entrega a Seu Filho Jesus Cristo na obediência da fé, receberá a vida eterna e se tornará filho de Deus. Decretou também que aqueles que amam as trevas e continuam em sua rebeldia contra a suprema autoridade do Céu, permanecerão em estado de alienação espiritual e sofrerão a morte eterna.”18
Por outro lado, a Bíblia não sanciona um livre-arbítrio tal como o que Pelágio defendia. Muito embora o homem tenha sido criado originalmente com livre-arbítrio pleno, ele o perdeu em grande proporção, devido ao pecado. O apóstolo S. Paulo declara que o homem natural é “prisioneiro da lei do pecado” (Rom. 7:23), e que ele não consegue fazer por suas próprias forças o bem, ainda que ele o queira, mas apenas o mal que não quer (Rom. 7:19). Mas ele acrescenta que “em Cristo” podemos ser livres “da lei do pecado” (Rom. 8:2); e o pró-prio Cristo afirmou que, “se, pois, o Filho vos libertar, verdadeiramente sereis livres” (S. João 8:36). Porém, mesmo estando “em Cristo”, há um aspecto sob o qual o cristão não é livre. No dizer de Lutero: “Um cristão é senhor livre sobre todas as coisas e não está sujeito a ninguém. Um cristão é servidor de todas as coisas e sujeito a todos.”19 (Ver I Cor. 9:19 e Rom. 13:8.) “O cristão não vive em si mesmo, mas em Cristo e no próximo. Em Cristo, pela fé, e no próximo, pelo amor. Pela fé o cristão se eleva até Deus e diante de Deus se curva pelo amor; mas sempre permanece em Deus e no amor divino.”20
“Não é um decreto arbitrário da parte de Deus que veda o Céu aos ímpios; estes são excluídos por sua própria inaptidão para dele participar.”21 Mas, se Deus não quer que nenhum pereça, por que alguns se perderão? “Tudo depende da reta ação da vontade. O poder da escolha deu-o Deus ao homem; a ele compete exercê-lo. Não podeis mudar vosso coração, não podeis por vós mesmos consagrar a Deus as suas afeições; mas podeis escolher servi-Lo. Podeis dar-Lhe a vossa vontade; Ele então operará em vós o querer e o efetuar, segundo o Seu beneplácito.”22
Mas mesmo havendo gozado uma vez a salvação em Cristo, a Bíblia declara que essa eleição pode ser perdida (Heb. 6:4-6: “Foram iluminados e provaram o dom celestial… e caíram”); e o apóstolo S. Paulo, após declarar que ele havia sido “chamado pela vontade de Deus” (I Cor. 1:1 e 2), afirma que ele próprio poderia “ser desqualificado” (I Cor. 9:27).
Portanto, o livre-arbítrio do homem para escolher a salvação ou a perdição é uma das grandes ênfases bíblicas; pois, se o destino de cada indivíduo já estivesse predeterminado desde a eternidade, para a salvação ou para a perdição, a proclamação do evangelho perderia o seu sentido, os homens não seriam mais moralmente responsáveis, e Deus, em última análise, seria responsável pela perdição dos impenitentes, o que faria da punição do pecado — a cada um “segundo as suas obras” (Apoc. 20:12)
— uma farsa e uma injustiça; pois tais obras teriam sido o resultado do desígnio divino. Isto é completamente contrário ao conceito bíblico!
A Presciência Divina e a Origem e a Existência do Mal
Neste ponto de nossas considerações surge outra indagação: Se a doutrina da dupla predestinação calvinista não satisfaz o conceito bíblico, como vimos anteriormente, não seria melhor admitirmos o conceito da presciência divina relativa, isto é, que Deus não conhece o futuro no sentido absoluto, para que possamos estabelecer a doutrina do livre-arbítrio humano, e para que Ele não seja responsável pelo pecado?
- — Antes de chegarmos às conclusões mais detalhadas sobre a presciência divina, analisaremos ainda o conceito da origem e da existência do pecado.
A Bíblia declara que o pecado se originou em Lúcifer, um ser perfeito que veio a rebelar-se contra Deus (Ezeq. 28:14 e 15; Isa. 14:12-15), o qual, após suscitar “peleja no Céu”, foi expulso (Apoc. 12:7-9). Posteriormente, ele induziu também os nossos primeiros pais ao pecado. O Espírito de Profecia diz a esse respeito, e com relação ao plano divino para a salvação do homem: “O plano de nossa redenção não foi um pensamento posterior, formulado depois da queda de Adão…. Desde o princípio Deus e Cristo sabiam da apostasia de Satanás, e da queda do homem mediante o poder enganador do apóstata. Deus não ordenou a existência do pecado. Previu-a, porém, e tomou providências para enfrentar a terrível emergência.”23 “Deus tinha um conhecimento dos eventos do futuro, mesmo antes da criação do mundo. Ele não fez Seus propósitos para se ajustarem às circunstâncias, mas permitiu que as coisas se desenvolvessem e surtissem efeito. Ele não agiu para produzir certas condições, mas sabia que tais condições iriam existir.”24
Se Deus sabia, porém, de antemão, que Lúcifer e nossos primeiros pais cairiam em pecado, por que Ele os criou? — Cristo “sabia que Lúcifer procuraria tirar-Lhe a vida durante o Seu ministério terrestre e que finalmente conseguiria fazê-lo no Calvário. Sabia que Lúcifer tentaria induzi-Lo a abusar do poder de Seu Pai ou de Seu próprio poder. Ele sabia também a parte que seria desempenhada por homens e mulheres. Mas a eterna presciência de Cristo dos contínuos e definidos efeitos dos pecados dos outros sobre Ele foi superada por Seu eterno amor. Prosseguiu na criação dos anjos e do homem a despeito do terrível custo para Sua própria Pessoa.”25
Mas, o fato de Cristo os ter criado, apesar de saber previamente que eles cairiam, não torna Deus, em última análise, o autor do pecado? — A questão básica na compreensão deste assunto é fazermos “a diferença entre praescientia e praedestinatio, isto é, entre a presciência e a eterna eleição de Deus. A presciência de Deus nenhuma outra coisa é senão isso que Deus sabe todas as coisas antes de acontecerem26;”. mas ela “não é causativa em si mesma”.27
Deus é o autor de tudo que foi criado (Apoc. 4:11), mas não de tudo que existe; porque o pecado realmente existe, mas não foi criado. Segundo Bavinck, “o pecado de fato não tem origem, mas só um início”.28 E Berckouwer acrescenta que “o pecado é presente e não tem direito de existir. Existe, e ninguém explica a sua origem. Entrou sem motivo no mundo…”29 Ele é biblicamente descrito como o mysterium iniquitatis (“mistério da iniquidade” — II Tess. 2:7), por causa do seu “caráter sem sentido e sem motivo”,30 “ilegítimo e injustificável”31 e “estranho, que não podemos discernir pela nossa inteligência humana e limitada”.32
Ellen G. White afirma que “a existência do pecado é inexplicável”.33 “O pecado é um intruso, por cuja presença nenhuma razão se pode dar. É misterioso, inexplicável; desculpá-lo corresponde a defendê-lo. Se para ele se pudesse encontrar desculpa, ou mostrar-se causa para a sua existência, deixaria de ser pecado.”34 Para Kierkegaard, o pecado é uma posição, e está além da capacidade do pecador compreender o pecado. Se pudesse compreendê-lo, estaria acima dele. “O fato de que ele é compreendido significa precisamente que é negado.”35
A razão por que Deus não pode ser responsabilizado pela queda de Suas criaturas, é a maneira como Ele as trata. A respeito de Lúcifer é dito que “Deus, em Sua misericórdia, suportou longamente a Satanás. … Reiteradas vezes lhe foi oferecido o perdão, sob a condição de que se arrependesse e submetesse.”36 Para Adão, segundo Gerhard von Rad, “a própria proibição de comer do fruto da árvore do conhecimento é resultado da solicitude de Deus, pois se comesse desses frutos o homem se destruiría”.37 E para a pecadora raça humana, Deus não somente proveu o plano da redenção, como também é concedido um tempo de graça a cada pecador, durante a sua existência.
E Berckouwer conclui: “A respeito da praescientia Dei foi esclarecido que esta não é a causa do mal, e também sobre o pecado hereditário foi dito que Deus não é seu autor, e tudo isto é concebido sem mais extra conversiam, afirmando-se que Deus não nos torna pecaminosos, pois a nossa natureza corrupta é obra de Satanás.”38 Crer numa presciência divina relativa, como o “conhecimento mediato” ou a “onisciência aberta”, apenas põe o problema um pouco mais distante, mas não o soluciona. “O problema que sempre surgiu não foi originado por nossa falta de visão dos caminhos de Deus, mas está relacionado com o fato de que se trata aqui do pecado, que nunca pode ser posto ou visto numa relação lúcida sem lançar sombras sobre a glória de Deus.”39
Mas, apesar de o pecado ser um mistério, a grande realidade da “ação vitoriosa de Deus sobre o pecado”40 permanece como ponto crucial da história salvífica. A doutrina da “onisciência aberta” admite a possibilidade de surgir uma nova rebelião, após a final erradicação do pecado;41 mas a Bíblia assegura que “não se levantará por duas vezes a angústia” (Naum 1:9), e o Espírito de Profecia confirma estas palavras ao declarar que “a rebelião não se levantará segunda vez. Jamais poderá entrar o pecado no Universo. Todos estarão por todos os séculos garantidos contra a apostasia”.42 E a garantia contra uma nova rebelião está na morte de Cristo sobre a cruz do Calvário. “Quando Satanás for destruído, não existirá alguém para tentar ao mal; a expiação jamais precisará ser repetida; e não haverá o perigo de outra rebelião no universo de Deus. Aquilo unicamente que pode de maneira eficaz afastar do pecado neste mundo de escuridão, irá impedir o pecado no Céu. O significado da morte de Cristo será compreendido pelos santos e pelos anjos.”43
A Presciência Divina e as Profecias Bíblicas
As profecias bíblicas têm sido consideradas “o diapasão da Bíblia — sua grande, dominante nota do Gênesis ao Apocalipse”;44 porque cerca de um terço da Bíblia está relacionado com profecias.45
A literatura profética da Bíblia, essencialmente, tem sido classificada em dois grandes grupos: 1) Profecia geral, como por exemplo a que pode ser encontrada em Isaías, Jeremias, Amós, etc.; e 2) profecia apocalíptica, como de Daniel.46 Porém, neste estudo, para melhor compreensão, analisaremos as profecias bíblicas sob três aspectos diferentes, muito embora possam estar relacionados em alguns pontos: 1) Profecias condicionais; 2) profecias incondicionais; 3) profecias messiânicas.
As profecias condicionais são aquelas profecias dos profetas hebreus, especialmente, nas quais o elemento humano está diretamente envolvido num relacionamento de concerto. Este relacionamento de concerto envolve pelo menos duas partes — de um lado aparece a parte divina, e do outro, a parte humana. Para que tais profecias se cumpram, é necessário que ambas as partes cumpram a expectativa do concerto; se uma parte falhar, a profecia não encontra o seu pleno cumprimento previsto. Nestas profecias, Deus sempre cumpre as expectativas do concerto; portanto, o seu cumprimento final depende de o homem também cumprir a sua parte do concerto. Um exemplo clássico das profecias condicionais encontramos na pregação de Jonas em Nínive, que dependia da resposta dos ninivitas ao chamado ao arrependimento. Em Isaías 58:13 e 14 encontramos bem vivida a condicionabilidade da promessa divina: “Se desviares o teu pé de profanar o sábado…; então te deleitarás no Senhor.” Igualmente a promessa da salvação individual repousa sob a condição de termos a Cristo (I S. João 5:12).
Por profecias incondicionais subentendemos as profecias preditivas ou apocalípticas, que, muito embora encontrem o seu cumprimento ao longo da história humana, não dependem diretamente do elemento humano; isto é, não estão baseadas num relacionamento de concerto. “A profecia apocalíptica realça o fato de que Deus está no comando e a história da salvação avança de acordo com a Sua presciência…. A literatura apocalíptica tem em torno de si uma incondicionalidade e inevitabilidade que confere a suas predições um aspecto absoluto…. Não importa o que façam os poderes do mal, o bem irá triunfar de acordo com a presciência de Deus.”47 Um exemplo clássico destas profecias encontramos em Daniel 2, onde o curso da história humana desfila diante do profeta, até o seu fim, com a implantação do reino de Deus na Terra.
Aparentemente, essas profecias suportam a ideia da presciência relativa, mas se as investigarmos em profundidade, tal posição não pode ser mantida. As profecias incondicionais, dado o seu cumprimento incondicional, suportam apenas duas possibilidades: ou Deus predestinou todo o curso da História, ou Ele o anteviu, e então o revelou aos profetas; mas mesmo neste caso, não podemos nos esquecer de que “o Altíssimo tem domínio sobre o reino dos homens” (Dan. 4:25). Porque a alegação de que Deus podia predizer o futuro da História, com base nos fatores já existentes na época em que a profecia foi revelada,48 deixa muito a desejar; pois prever o curso da história humana por cerca de quinze séculos, como é o caso das profecias de Daniel, exige muito mais fé do que crer que Deus tem a capacidade de o antever pela Sua presciência.
Como vimos anteriormente, Deus apenas predestina o bem; ao passo que a atuação do mal, Ele apenas antevê. E neste ponto surgem algumas indagações: Será que durante o ministério profético de Isaías já existiam fatores que permitiam predizer a atuação, bem como o fato de que o indivíduo pagão que tomaria Babilônia e libertaria o povo judeu do cativeiro receberia o nome de “Ciro”, aproximadamente 150 anos depois? (Isa. 44:28; 45:1-6). Será que todos os mínimos detalhes proféticos que encontramos em Jeremias 50 e 51, sobre a queda de Babilônia, foram previstos como decorrência de fatores naturais já existentes? — Há apenas duas opções satisfatórias: estas profecias, ou são fruto de uma presciência divina; ou os instrumentos humanos não foram completamente livres em suas ações, pois estas já estavam determinadas. E ain-da, será que ao tempo da segunda visão de Daniel (c. 551 A.C.) já existiam fatores determinantes, pelos quais podia ser prevista a atuação histórica de Alexandre o Grande, e especialmente o fato e que ele morreria repentinamente no auge do seu poder em 323 A.C. (Dan. 8:5-8) e que o seu sucessor não conseguiria manter o império unido (Dan. 8:8)?
Surgem também no cenário bíblico as profecias messiânicas, as quais, muito embora consideremos como fazendo parte das profecias cujo cumprimento é incondicional, analisaremos particularmente. Estas profecias têm sido classificadas em dois grupos principais: as que tratam do Messias como Servo Sofredor, e as que tratam a respeito do Messias Triunfante, isto é, da glória messiânica. Quanto à Sua missão como Servo Sofredor, a Bíblia descreve os Seus sofrimentos e a Sua morte como o cumprimento do “determinado desígnio e presciência de Deus” (Atos 2:23). Neste caso, por que a Bíblia não fala apenas em desígnio, mas acrescenta também o cumprimento da presciência divina? — Porque ambas não são a mesma coisa, nem o poderiam ser; pois a Bíblia não descreve apenas a atuação divina em relação à morte de Cristo (desígnio), como também o papel que os poderes do mal iriam desempenhar (presciência), o qual não foi predestinado por Deus, pois neste caso Ele estaria predestinando o mal, o que não é compatível com o Seu caráter. Os detalhes das profecias messiânicas que descrevem a atuação dos poderes do mal, através de instrumentalidades humanas, só podem ser explicados a contento como tendo sido fruto da presciência divina absoluta e não causativa.
Será que no tempo de Davi já existiam fatores pelos quais podia ser predito que um “amigo íntimo” do Messias, que com Ele comia do Seu pão, O trairia? (Sal. 41:9; 55:12-14; cf. S. Mat. 26:20-25.) Baseado em que Cristo pôde declarar antecipadamente que Pedro O havia de negar “três vezes” antes que o galo cantasse? (S. Mat. 26:33; cf. S. Mat. 26:69-75.) E quanto às “trinta moedas de prata” que o traidor iria arrojar “ao oleiro na casa do Senhor”? (Zac. 11:12 e 13; cf. S. Mat. 27:3-10.) Será que cerca de um milênio antes de ocorrer, já existiam fatores que possibilitavam predizer que as vestes de Cristo seriam repartidas pelos soldados, e que sobre a Sua túnica lançariam sortes? (Sal. 22:18; cf. S. Mat. 27:35.) O Salmo 22, que tem sido considerado “o Salmo da Cruz”, apresenta detalhes surpreendentes. A origem da crucifixão como modo de execução não é clara. Mas sabemos que “já os persas e certas tribos bárbaras, como os citas, durante a segunda metade do último milênio antes de Cristo, podem ter introduzido esta forma cruel de dar morte a uma pessoa”.49 Também para os judeus a crucifixão era desconhecida antes do cativeiro babilônico. “Os judeus executavam seus criminosos por apedrejamento. A crucifixão era um costume romano e grego; porém os impérios grego e romano não existiam no tempo de Davi. Não obstante, encontramos aqui uma profecia escrita 1.000 anos antes do nascimento de Cristo, por um homem que jamais viu ou ouviu falar de tal método de punição capital como a crucifixão.”50 (Sal. 22:16 — “traspassaram-Me as mãos e os pés”.) Mas já na própria serpente que Moisés erigiu no deserto, encontramos um tipo da morte do Messias (Núm. 21:8 e 9; cf. S. João 3:14). E o próprio capítulo 53 de Isaías parece ter sido escrito ao pé da cruz de Cristo.51
Quanto às profecias que falam do triunfo do Messias sobre a morte, a Bíblia não fala em termos de possibilidades, mas de realidades. O próprio Cristo declarou que Ele ressuscitaria ao terceiro dia (S. Mat. 16:21; 17:23; 20:19; etc.). É certo que Cristo poderia ter fracassado em Sua missão; mas Deus em Sua presciência viu que isto não ocorreria, daí a forma enfática como são enunciadas essas profecias.
Afirmamos anteriormente que a presciência divina absoluta não é causativa; e isto transparece claramente nas predições concernentes à segunda vinda de Cristo. A Bíblia faz o tempo em que esse evento ocorrerá depender da atuação humana com respeito à proclamação do evangelho (S. Mat. 24:14) e à aceitação prática do evangelho na vida dos crentes (II S. Ped. 3:9); e o aspecto condicional do tempo para que esse evento ocorra é mais do que reforçado em II S. Ped. 3:12, ao declarar que pela atuação humana positiva, esse dia pode ser apressado. E a Sra. White já afirmou em 1903 que, ‘“se o povo de Deus houvesse mantido viva ligação com Ele, se Lhe houvessem obedecido à Palavra, estariam hoje na Canaã celestial”.52 Mas, por outro lado, o próprio Cristo declarou que Deus, o Pai, sabe o dia e a hora em que esse evento ocorrerá (S. Mat. 24:36). Se adotarmos a posição da presciência divina relativa, isto é, que Deus não conhece absolutamente os
atos livres dos homens antes que realmente ocorram, nós encontraremos aqui, não apenas uma tensão, como uma contradição; e para solucionarmos esse problema, teremos de ofuscar uma das partes — ou teremos de declarar que esse evento é um ato divino cujo tempo independe da atuação humana, ou teremos de negar que Deus realmente o saiba. E a questão torna-se ainda mais difícil ao considerarmos que a declaração de Cristo, afirmando que Deus sabe o tempo exato para esse evento, antecede a afirmação de II S. Pedro 3:12, sobre a possibilidade humana de apressar esse evento. Aceitarmos que a presciência divina é absoluta e não causativa, não é apenas uma possibilidade para solucionarmos o problema, mas é a única solução satisfatória para essa tensão. Caso contrário, teremos de encarar este aspecto da tensão sobre a segunda vinda de Cristo da mesma maneira como a doutrina da “onisciência aberta’’ considera a tensão que aparece no Espírito de Profecia, sobre o fato de Deus saber anteriormente da apostasia de Lúcifer e da queda do homem, como uma contradição, cuja parte que mais lhe convém e que melhor se adapte ao esquema teológico estabelecido é afirmada, negando-se a veracidade absoluta do conceito que a outra apresenta. Da perspectiva do livre-arbítrio humano é dito que “se o homem fosse desleal a Deus …’’;53 e da perspectiva da presciência divina é declarado que “desde o princípio (isto é, antes que ocorresse) Deus e Cristo sabiam da apostasia de Satanás, e da queda do homem… Previu-a. …”54 Para uma fiel exegese, tanto do texto bíblico, como do Espírito de Profecia, não podemos estabelecer um conceito negando o outro. Para aqueles que não conseguem conviver com uma tensão teológica, esse pode parecer o caminho mais fácil, mas não é o mais fiel e seguro.
Afirmar que “a própria visão de Ellen White da relação de Deus com o tempo pode não ser precisamente o que a linguagem empregada” em certas partes dos seus escritos dê a entender, e que ela apenas usou “a linguagem e os conceitos da teologia convencional para fazer um ponto de apoio”, mas que esta não expressava claramente a sua ideia geral,55 é negar a inspiração dos escritos de Ellen G. White, surgindo assim a necessidade de uma espécie de demitologização do Espírito de Profecia.
A Presciência Divina e as Visões Proféticas
Ainda dentro do contexto profético, podemos destacar um aspecto muito importante, que são as revelações divinas quanto ao futuro, sob a forma de visões proféticas. Este talvez seja o aspecto no qual transparece mais claramente a extensão e abrangência da presciência divina. Segundo Gerhard von Rad, numa visão o profeta “vê toda a história do mundo desfilar como um filme diante de seu espírito”.56 Em outras palavras, numa visão imediata o profeta antevê eventos longínquos, tanto da ação divina, como da atuação humana e da influência dos poderes do mal na História. Se analisarmos detidamente as visões proféticas, não poderemos chegar a outra conclusão senão que, ou todas as coisas, tanto o bem como o mal, estão predestinadas por Deus, ou Deus conhece todas as coisas futuras absolutamente, sem que isto implique em predestinação e determinismo. E, pelas razões anteriormente apresentadas, não podemos crer numa predestinação absoluta, mas apenas numa presciência divina absoluta e não causativa.
No escopo das sete cartas profético-apocalípticas de Cristo às sete igrejas da Ásia Menor, não cabe a ideia de que Deus não conhece o futuro nos seus mínimos detalhes. Pelo contrário, na frequente expressão “conheço as tuas obras” (Apoc. 2:2, 19, etc.) transparece claramente o aspecto absoluto da presciência divina não causativa, pois nelas aparecem igualmente reprovações a essas obras previamente conhecidas, dos vários períodos proféticos da história da Igreja cristã através dos séculos. Não apenas os aspectos simbólicos do Apocalipse confirmam este aspecto, mas também as visões concretas da “grande multidão” (cap. 7:9 ss.), e quando o apóstolo João antevê “os vencedores” (cap. 15:2), bem como “os mortos” ímpios diante do juízo divino (cap. 20:12).
Também nas visões dadas à Sra. White sobre as glórias da era vindoura, ela viu os 144.000 receberem “os amigos que deles tinham sido separados pela morte”,57 e ainda mais, ela declara que no lar celestial teve o privilégio de ver “mesas de pedra, em que estavam gravados com letras de ouro os nomes dos 144.000”.58 Tais visões, tanto as do apóstolo João como as de Ellen G. White, apresentam aspectos futuros da salvação que ainda não estavam definidos no tempo em que foram concedidas, como é o caso dos 144.000, que é um grupo cuja definição ainda está no futuro, pois depende do livre-arbítrio humano.
E o Espírito de Profecia declara também que a Adão foi concedida uma visão panorâmica do futuro, na qual ele pôde ver vários aspectos que tomariam lugar na história humana.59 Igualmente Cristo, antes de Sua encarnação, viu todos os acontecimentos que marcariam o Seu ministério terrestre, “toda angústia…, todo insulto…, toda privação” que Lhe caberia suportar.60 E a presciência divina absoluta transparece também na descrição do conhecimento prévio que Deus tinha de Jacó e Esaú, os dois irmãos gêmeos. “Deus conhece o fim desde o princípio. Sabia, antes do nascimento de Jacó e Esaú, que caracteres iriam desenvol-ver. Sabia que Esaú não teria um coração obediente a Ele.”61
Para termos, porém, melhor compreensão da onisciência e da presciência divinas, não podemos deixar de considerar algumas visões de Ellen G. White, que são descritas no livro Crede em Seus Profetas. Pouco depois de sua chegada à Austrália, em dezembro de 1891, a Sra. White teve uma visão, na qual via o Sr. N. D. Faulk-head, um comerciante de muito êxito, que era também líder em cinco ou mais sociedades secretas. Depois dessa visão a respeito dele e outro, ela se sentou e escreveu o caso do irmão Faulkhead em cerca de 50 páginas, com muitos pormenores. Quando ela quis colocar a mensagem no correio, isto lhe foi impedido. Cerca de doze meses mais tarde, quando ela voltou a Melburne, no dia 13 de dezembro de 1892, teve uma entrevista com o irmão Faulkhead, na qual ela lhe apresentou a mensagem contida no manuscrito que descrevia a visão recebida a seu respeito um ano antes. Entre outras coisas, a Sra. White havia descrito exatamente a atitude das pessoas presentes naquelas reuniões secretas a que ele vinha assistindo, o que dissera nessas reuniões, onde se sentava, a espécie de assento em que se sentara, e outros pormenores, os quais, confessou ele, só podiam ser descritos com tanta exatidão por Deus, através de Sua fiel mensageira.62
Talvez a visão mais impressionante a esse respeito seja a que a Sra. White teve no dia 3 de novembro de 1890, em Salamanca, Nova Iorque, na qual ela viu uma reunião de um pequeno grupo de homens que havia de se realizar a uns quatro meses mais tarde, na noite de 7 de março de 1891. Nesta visão ela viu um homem erguer-se e levantar um exemplar do American Sentinel, bem alto no ar, e apontar a vários artigos, declarando que assuntos tais como o sábado e a segunda vinda de Cristo não deviam achar lugar num jornal que servia de porta-voz à Associação de Liberdade Religiosa. Por várias vezes a Sra. White começou a contar o que vira na visão, mas cada vez ela vacilava, e não podia lembrar um único pormenor a respeito; até que no domingo pela manhã, 8 de março de 1891, ela descreveu nos seus mínimos detalhes a visão que tivera quatro meses atrás, e que era uma descrição fiel dessa reunião estritamente secreta, que um pequeno grupo de homens fizera na noite anterior, no escritório da Review and Herald.63 Isto nos pode levar apenas a uma única conclusão: Deus sabe todos os detalhes do futuro, com tal precisão, porque a presciência divina é absoluta, e não causativa.
Considerações Adicionais
A doutrina da presciência divina relativa se propõe a solver algumas tensões teológicas com as quais a teologia tradicional tem convivido por séculos; porém, nessa tentativa, surgem tensões ainda maiores e incompatíveis com certos aspectos da revelação divina.
A transcendência de Deus é um fato absoluto, e, para conhecê-Lo, a filosofia e a lógica humana não são suficientes; porque as limitações da natureza humana, não apenas limitam a nossa capacidade de compreensão, mas limitam o próprio grau da revelação divina (S. João 16:12). E Deus não pode ser limitado dentro de um esquema teológico; porque Ele é aquilo que revela a respeito de Si mesmo, e muito mais. “O homem como homem não tem acesso à vida interior de Deus, nenhum conhecimento do ser essencial de Deus. Teologia não é um estudo de ‘Deus em Si mesmo’, mas de ‘Deus como Se tem revelado’.”64 E neste ponto cabe a clássica diferenciação entre o Deus absconditus e o Deus revelatus; entre aquilo que Ele é em essência, e aquilo que Ele pode revelar a respeito de Si mesmo, devido às limitações que nos são impostas pela nossa natureza humana pecaminosa. E Deus revela aos homens certos aspectos de Sua própria natureza e com respeito ao futuro em proporções limitadas àquilo que interessa à salvação histórica e individual dos pecadores. A respeito daquilo que transcende essa revelação divina, não nos compete especular (Deut. 29:29).
Na verdade, a doutrina da “onisciência aberta” confunde o interesse divino do futuro com a ignorância divina em relação ao futuro; ou seja, para que Deus Se interesse no futuro de Suas criaturas livres, é necessário que este esteja indefinido aos Seus olhos.65 Tal dedução pode ser considerada simplesmente como uma visão antropomórfica de Deus; pois o fato de um professor prever que um de seus alunos não será aprovado no final do ano letivo, não é sinônimo de que ele perca o interesse e passe a
negligenciar tal aluno, salvo se for um mau professor; pelo contrário, na maioria das vezes maior atenção lhe é ainda dispensada. Assim Deus, apesar de conhecer previamente todas as coisas, não perde o Seu interesse com os seres humanos, mas continua a fazer com que o Seu Sol nasça “sobre maus e bons’’ e com que a chuva venha “sobre justos e injustos’’ (S. Mat. 5:45). Não! Ele não apenas pode nos socorrer após havermos sofrido um acidente automobilístico, mas Ele já nos prepara antecipadamente para as crises que sobre nós poderão abater-se, de forma que as provações da vida não ultrapassem as nossas forças (I Cor. 10:13).
A presciência divina relativa cria também um problema existencial — não podemos confiar plenamente em Deus, pois Ele pode ser surpreendido em alguns aspectos, como é o caso de um acidente automobilístico, para o qual não existem fatores que possam determinar previamente, na maioria dos casos, o que é resultante de atitudes e reflexos momentâneos. E neste caso, Deus seria injusto ao permitir que os pecadores impenitentes morressem perdidos, ainda em tenra idade, sendo que eles poderiam arrepender-se posteriormente, o que, segundo a doutrina da “onisciência aberta”, Deus não pode saber com segurança, mas apenas as possibilidades. Mas para que Ele soubesse todas as possibilidades que tal indivíduo teria, seria necessário que conhecesse absolutamente as ações e atitudes dos outros seres livres que com ele viessem a se relacionar, e que seriam os instrumentos para lhe estenderem o chamado à salvação, o que por sua vez também são ações livres.
Através das profecias bíblicas não podemos conceber a ideia de um Deus que adivinhou a atuação futura do mal em seus mínimos detalhes, e acertou; pois Deus não trata com possibilidades apenas, mas com realidades. A Bíblia não afirma que Deus anuncia desde o princípio “o que pode acontecer”, mas “o que há de acontecer” (Isa.46:10). Se Deus não conhece os detalhes das livres ações futuras, teremos que admitir necessariamente que os detalhes que foram profeticamente apontados, são frutos da predestinação divina, tanto para a perdição (como o papel que Judas desempenharia), como para salvação; o que não é compatível com o caráter divino.
Será que o Deus que teve poder para criar seres livres “do nada” (ex-nihilo), não teria poder para conhecer antecipadamente as suas ações? A resposta para esta pergunta encontramos no Salmo 139, onde lemos: “Senhor, Tu me sondas e me conheces…. De longe penetras os meus pensamentos.” “Ainda a palavra me não chegou à língua, e Tu, Senhor, já a conheces toda.” “Os Teus olhos me viram a substância ainda informe, e no Teu livro foram escritos todos os meus dias, cada um deles escrito e determinado (aos olhos de Deus), quando nem um deles havia ainda.” Versos 1,4 e 16. Na verdade, se a minha perspectiva futura é limitada, isto não implica em que a de Deus também o seja; porque Deus não está limitado pelo tempo (II S. Ped. 3:8), e Ele “não vê como vê o homem” (I Sam. 16:7).
A doutrina da “onisciência aberta” não apenas supervalorize o livre-arbítrio humano, em detrimento da presciência divina, como ainda faz uma interpretação parcial do conceito bíblico. Assim como não é correto indagarmos: “Jesus Cristo é divino ou humano?”, porque Ele é ambas as coisas; não é correto perguntarmos: “A presciência divina é absoluta ou o homem possui livre-arbítrio?”, porque ambos os conceitos são firmemente estabelecidos biblicamente, e não podemos ser parciais. A pergunta que deve ser feita ao tratarmos da presciência divina é se ela é causativa, ou não.
“Os falsos profetas discursam somente em termos gerais e em linguagem ambígua. Suas declarações podem ter os mais contraditórios significados…. A clareza e plenitude das declarações proféticas podem ser consideradas unicamente como uma revelação do Deus onisciente…. As predições divinas são claras em suas anunciações. Não há ambiguidade, nem duplo significado…. Ninguém é deixado em dúvida, quer o evento a ocorrer seja favorável, quer desfavorável. Ninguém é deixado em dúvida sobre qual o lugar ou o povo que é o objetivo principal da profecia. Neste caso (Ezeq. 26:7-14) cada circunstância é narrada com tantos e minuciosos detalhes como se fosse uma parte de história ocorrida diante dos olhos do narrador…. As predições de Deus sempre se cumprem. Pois para Deus não existe futuro. Ele vê coisas distantes como se estivessem próximas. Olhando através da perspectiva dos séculos, Ele percebe como cada evento desponta do evento que o precede.”66 Mas a “Sua presciência … não envolve qualquer força posta sobre a vontade humana”.67 “A presciência não é causativa em si mesma. Ela não pode ser confundida com a vontade predeterminante de Deus. As ações livres não ocorrem porque são previstas, mas elas são previstas porque irão ocorrer.”68 E Deus “não somente conhece antecipadamente os motivos que irão ocasionar os atos dos homens, mas prevê diretamente os próprios atos”.69
Contra a doutrina da presciência divina relativa, ‘‘nós incitamos não apenas a nossa convicção fundamental da perfeição de Deus, mas também o constante testemunho das Escrituras. Em Isaías 41:21 e 22, Deus faz de Sua presciência a prova de Sua divindade na controvérsia com os ídolos. Se Deus não pode prever os atos humanos livres, então ‘o Cordeiro que foi morto, desde a fundação do mundo’ (Apoc. 13:8) era apenas um sacrifício a ser oferecido caso Adão fosse cair, não sabendo Deus se ele iria ou não cair; e caso Judas viesse a trair a Cristo, não sabendo Deus se ele iria ou não fazê-lo. Sem dúvida, visto que o curso da Natureza é mudado pela vontade do homem quando ele queima cidades e derruba florestas, Deus não pode nesta teoria predizer mesmo o curso da Natureza. Todas as profecias são, portanto, um protesto contra essa visão”.70
Na verdade, a Bíblia diz que Deus é “perfeito em conhecimento” (Jó 37:16) e “conhece todas as coisas” (I S. João 3:20), inclusive “o que há de acontecer” (Isa. 46:10). E neste ponto a razão humana deve prostrar-se ante a onisciência divina e declarar: “Ó profundidade da riqueza, tanto da sabedoria, como do conhecimento de Deus! Quão insondáveis são os Seus juízos e quão inescrutáveis os Seus caminhos!” Rom. 11:33.
Referências
1. A posição de Pelágio “é bem expressa na frase: ‘Se eu devo, eu posso.’ Sua atitude era a de ética estóica popular”. — Williston Walker, História da Igreja Cristã (Rio de Janeiro. JUERP-ASTE, 1980), pág. 240.
2. Livro de Concórdia — As Confissões da Igreja Evangélica Luterana (São Leopoldo. Ed. Sinodal. Ed. Concórdia. 1980), págs. 497 e 660-678.
3. Williston Walker, op. cit., pág. 236.
4. Este aspecto é muito enfatizado por A. W. Pink, em seu livro Deus é Soberano (Atibaia, Ed. Fiel, 1977).
5. Williston Walker, op. cit., pág. 236.
6. Herman Bavinck, The Doctrine of God (Edimburgo, The Banner of Truth Trust, 1979), pág. 189.
7. Ibidem. Ver também Louis Berkhof, Systematic Theology (Edimburgo, The Banner of Truth Trust, 1976), págs. 66-68.
8. Richard Rice, The Openness of God (Washington, D. C„ Review and Herald Publ. Ass., 1980), págs. 47 e 48.
9. Herman Bavinck, op. cit., pág. 189.
10. Sanday. Citado por Russell Norman Champlin, em O Novo Testamento Interpretado Versículo por Versículo (Guaratinguetá, A Voz da Bíblia, s. d.), vol. 3, pág. 727.
11. Russell Norman Champlin, op. cit., vol. 3, pág. 753.
12. Louis Berkhof, op. cit., pág. 118.
13. Russell Norman Champlin, op. cit., vol. 3, pág. 753.
14. Philip Chaff. Citado por Modesto Marques de Oliveira, em História das Religiões Contemporâneas (São Paulo, IAE, s. d.), pág. 9.
15. J. Ivan Crawford, Buscando a Glória de Deus — Lição da Escola Sabatina, abril-junho de 1982, ed. do professor, pág. 60.
16. Pedro Apolinário. Análise de Textos Bíblicos de Difícil Interpretação (São Paulo, IAE, 1980), vol. 1, pág. 19.
17. G. C. Berkouwer, Faith and Justification (Grand Rapids, Wm. B. Eerdmans Publ. Comp., 1979), pág. 164.
18. A. W. Tozer, Mais Perto de Deus (São Paulo, Ed. Mundo Cristão, 1980), pág. 132.
19. Martinho Lutero, Da Liberdade Cristã (São Leopoldo. Ed. Sinodal, 1979), pág. 9.
20. Idem, pág. 48.
21. Ellen G. White, Caminho Para Cristo, pág. 17.
22. Idem, pág. 42.
23. Ellen G. White, O Desejado de Todas as Nações, págs. 17 e 18.
24. Ellen G. White, SDA Bible Commentary, vol. 6, pág. 1.082.
25. Norman R. Gulley, O Sacrifício Expiatório de Cristo — Lição da Escola Sabatina, janeiro-março de 1983, ed. do professor, pág. 5.
26. Livro de Concórdia, pág. 532.
27. Augustus H. Strong, Systematic Theology (Valley Forge. PA„ Judson Press, 1979), pág. 286.
28. Citado por G. C. Berkouwer, em Doutrina Bíblica do Pecado (São Paulo, ASTE, 1970), pág. 79.
29. G. C. Berkouwer, Doutrina Bíblica do Pecado, pág. 50.
30. Idem, pág. 112.
31. Idem, pág. 44.
32. Idem, pág. 107.
33. Ellen G. White, Testemunhos Para Ministros e Obreiros Evangélicos, pág. 265.
34. Ellen G. White, O Grande Conflito, pág. 496.
35. Soren Kierkegaard. Citado por William E. Hulme, em Dinâmica da Santificação (São Leopoldo, Ed. Sinodal/C. P. Concórdia, 1976), pág. 21.
36. Ellen G. White, O Grande Conflito, pág. 498. Ver também Patriarcas e Profetas, capítulo “Por Que Foi Permitido o Pecado?”
37. Gerhard von Rad, Teologia do Antigo Testamento — Teologia das Tradições Históricas de Israel (São Paulo, ASTE. 1973), vol. 1, pág. 156.
38. G. C. Berkouwer, Doutrina Bíblica do Pecado, pág. 28.
39. Idem, pág. 48.
40. Idem, pág. 28.
41. Richard Rice. op. cit., pág. 54.
42. Ellen G. White, O Desejado de Todas as Nações, pág. 22.
43. Ellen G. White, SDA Bible Commentary, vol. 5, pág. 1.132.
44. Herbert Lockyer, All the Messianic Prophecies of the Bible (Grand Rapids, Zondervan Publ. House, 1980), pág. 16.
45. Idem, pág. 15.
46. O Ministério Adventista, março-junho de 1981, pág. 23.
47. Ibidem.
48. Richard Rice, op. cit., pág. 64.
49. Siegfried H. Horn, “Sentença: Morte de Cruz” — O Atalaia, abril de 1981, pág. 5. Ver também Martin Henger, Crucifixion (Filadélfia Fortress Press, 1977), págs. 22 ss.
50. Herbert Lockyer, op. cit., pág. 150.
51. Para um estudo mais detalhado sobre as profecias messiânicas a respeito da morte de Cristo, ver Herbert Lockyer, op. cit., cap. 8: “Prophecies of His Death.”
52. Ellen G. White, Evangelismo, pág. 694.
53. Ellen G. White, SDA Bible Commentary, vol. 6, pág. 1.070.
54. Ellen G. White, O Desejado de Todas as Nações, págs. 17 e 18.
55. Richard Rice, op. cit., pág. 92.
56. Gerhard von Rad, op. cit., vol. 2, pág. 315.
57. Ellen G. White, Primeiros Escritos, pág. 16.
58. Idem, pág. 19.
59. Ellen G. White, História da Redenção, págs. 48-50.
60. Ellen G. White, O Desejado de Todas as Nações, pág. 396.
61. Ellen G. White, História da Redenção, pág. 87.
62. Denton E. Rebok, Crede em Seus Profetas (Santo André. Casa Publicadora Brasileira, 1967), págs. 97-106.
63. Idem, págs. 73-76.
64. Leon Morris, I Believe in Revelation (Londres, Hodder and Stoughton, 1976), pág. 11.
65. Richard Rice, op. cit., pág. 80.
66. The Pulpit Commentary (Grand Rapids. Wm. B. Eerdmans Publ. C„ 1962), vol. 12 — Ezekiel II, pág. 77.
67. Idem, vol. 18 — Acts I. pág. 52.
68. Augustus H. Strong, op. cit., pág. 286.
69. Idem, pág. 284.
70. Idem, pág. 285.