Rodolfo Hein

Diretor do Departamento de Teologia do Colégio Adventista de Costa Rica

É evidente que nosso mundo está se debatendo numa infinidade de crises de praticamente toda índole, de tal modo que se pode dizer que as crises estão ameaçando sepultar nossa civilização num holocausto sem paralelo na história humana.

Entre as muitas crises há uma que se destaca e que indubitavelmente está na própria raiz de todas as outras. Refiro-me à crise de autoridade, que chegou a um ponto no qual o observador pergunta a si mesmo se ainda é possível chegar a extremos mais perigosos e destrutivos.

Esta situação afeta a Igreja, que não está num campo estéril, mas no mundo. Deus permita que seja guardada deste mal tão destrutivo! Precisamos reconhecer, porém, que isto só se dará se estiver plenamente consciente de qual é sua autoridade suprema e se achar disposta a aceitar essa autoridade até suas últimas implicações.

Qual é essa autoridade suprema? Está na consciência ou na razão de cada indivíduo, sendo portanto subjetiva ou interna? Falando deste perigoso conceito religioso da atualidade, o Prof. R. A. Finlayson disse:

“O subjetivismo que não pode ser provado pela realidade das verdades da Escritura abre assim a porta a muitos perigos espirituais, e o menor não é a possibilidade de que o espírito humano seja invadido por influências do mundo espiritual que não são de Deus. Por esta razão, se não houvesse outra, seria necessário que nós, do mesmo modo que os primeiros discípulos de Cristo, nos volvêssemos para as experiências mais elevadas, para a ‘segura palavra profética’ (II S. Ped. 1:19). A invocação à autoridade do Espírito para contradizer a autoridade das Escrituras de fato ameaça tornar-se a blasfêmia particular de nossa época.”1

Sabemos que a autoridade do cristão é objetiva, que está fora dele, que se baseia em Deus. Mas, como essa autoridade se expressa em forma concreta e prática? Como chega ao homem de maneira autoritativa e normativa? De que modo e segundo que cadeia de autoridade ela chega à Igreja e ao indivíduo?

Santo Agostinho já se preocupava com este problema, e chegou corretamente à conclusão de que Deus expressa Sua autoridade através da auto-revelação, sendo, portanto, o princípio da autoridade o Deus Trino e Uno Se auto-revelando. Este conceito é livre de subjetivismos, pois não admite tantas autoridades como indivíduos, mas uma só autoridade: Deus; e uma só verdade, a auto-revelação que Deus, em Sua condescendência, faz de Si mesmo. Forsyth o expressa desta maneira:

“Na religião, o movimento principal do conhecimento é no sentido contrário ao da ciência. Na ciência nós nos movemos em direção ao objeto do conhecimento. Na religião o objeto do conhecimento se move em nossa direção…. A religião só é possível pela revelação.”2

Ao falar da auto-revelação de Deus ao homem, devemos considerar sempre que Ele não o faz individual ou subjetivamente a cada crente, e, sim, a pessoas específicas, escolhidas e chamadas por Ele a uma relação e a um ministério especial. Estas pessoas são conhecidas como profetas. Falam-nos com autoridade, porque nos apresentam as palavras de Deus, que lhes foram reveladas. Desobedecer-lhes é desobedecer a Deus, desprezá-los é desprezar a Deus. Foi por isso que Deus pôde dizer a Samuel, quando Israel pediu um rei: “Não te rejeitaram a ti, mas a Mim.”3 A palavra dos profetas é palavra de Jeová, como declara Isaías: “Ouvi, ó céus, e dá ouvidos, ó Terra, porque o Senhor é quem fala.”4 Expressões semelhantes a esta se encontram, segundo o Dr. Gerhard F. Hasel, 1.356 vezes no Antigo Testamento.5

Bem cedo em sua história, a Igreja cristã perdeu este conceito e começou a pôr a autoridade humana no lugar em que deveria ter estado a autoridade divina. Em meados do terceiro século, ouvimos Cipriano, bispo de Cartago, dizer: “O bispo está na igreja e a igreja no bispo.” E o Papa Bonifácio VIII, na bula Unam Sanctam, declara no ano 1302: “Nós, portanto, proclamamos, declaramos e pronunciamos que é completamente necessário à salvação de todo ser humano estar sujeito ao pontífice romano.”6

A Reforma do Século XVI retornou ao conceito sustentado por Cristo e os apóstolos, colocando a Palavra de Deus como a suprema autoridade do cristão. Isto é expresso no princípio fundamental de “Sola Scriptura”, formando assim a trilogia das “solas” da Reforma: “Sola Fide”, “Sola Gratia” e “Sola Scriptura”.

Quando o monge de Wittenberg compareceu perante o jovem Imperador Carlos V, em Worms, no dia 17 de abril de 1521, para dar razão de seus escritos, declarou ousadamente diante dos grandes da Igreja e do Império, que ah se haviam reunido para julgá-lo, que não alteraria sua posição bíblica, “a menos que seja convencido pela Escritura ou pela razão evidente…. Minha consciência é prisioneira da Palavra de Deus…. Esta é minha posição; não posso fazer outra coisa. Deus me ajude. Amém”.7

Para os reformadores, “a Igreja é a criação da Bíblia, e não vice-versa…. O Espírito governa a Igreja através da Escritura”.8 Ou como dizia Calvino: “Devemos à Escritura a mesma reverência que a Deus, porque ela procedeu dEle.”9

Como reação à posição da Reforma, o Concilio de Trento, em sua quarta sessão, a 8 de abril de 1546, declarou que as Escrituras canônicas, incluindo os apócrifos e a tradição, deviam ser recebidas e veneradas “com igual afeto, piedade e reverência”. Se analisarmos, porém, o conceito católico romano sobre a autoridade até suas últimas implicações, verificaremos que para eles a autoridade reside, não nas Escrituras, ou nas Escrituras e na Tradição, mas na Igreja, ou melhor, em seu Magistério Docente. Esse Magistério se compõe de todos os bispos em comunhão com o de Roma. Isto realmente coloca toda a autoridade em mãos do papa.

Escrevendo a este respeito, um teólogo católico contemporâneo disse o seguinte: “O católico não pergunta em primeiro lugar: Que diz o Livro? Antes, sua pergunta é: Que diz a Igreja docente?… Acima do Livro está a Igreja, ao passo que o conceito da Reforma põe o Livro acima da Igreja.”10

Sempre devemos ter em conta que para a mente católica a Igreja é a criadora da Palavra, o que faz com que ela sempre se considere superior. O conceito protestante, porém, é que está certo. Chilling-worth expressou-o desta maneira: “A Bíblia, digo, só a Bíblia, é a religião dos protestantes.”11

A religião da Bíblia é uma religião da Palavra. A Palavra falada por Deus e a Palavra ouvida, aceita e praticada pelos homens em sua vida diária. O homem deve ouvir com atenção humilde, tranquila e reverente. Deve deixar de lado suas ideias e conceitos preconcebidos e escutar com um espírito suscetível e disposto a ser ensinado como viver de “toda palavra que procede da boca de Deus”.12 Os filhos de Deus estão conscientes de que, quando erram, o fazem “não conhecendo as Escrituras”.13 Portanto, perguntam constantemente: “Que está escrito na lei?”14 Sabem sem a menor dúvida que “quem é de Deus ouve as palavras de Deus”.15 “Temos de receber esta Palavra como autoridade suprema”16, visto que, “em Sua Palavra, Deus conferiu aos homens o conhecimento necessário à salvação”.17 Ela é “nossa regra de fé e disciplina”.18 E quando chegar o fim — e hoje estamos vivendo nesse tempo — “Deus terá sobre a Terra um povo que mantenha a Bíblia, e a Bíblia só, como norma de todas as doutrinas e base de todas as reformas”.19

Um dos fatos mais tristes é que “há em nosso tempo um vasto afastamento das doutrinas e preceitos bíblicos, e há necessidade de uma volta ao grande princípio protestante — a Bíblia, e a Bíblia só, como regra de fé e prática”.20 Falando de sua posição, a mensageira do Senhor nos diz:

“Tomo a Bíblia tal como ela é, como a Palavra Inspirada. Creio nas declarações de uma Bíblia inteira…. Irmãos, apegai-vos à Bíblia, tal como reza,… e obedecei à Palavra, e nenhum de vós se perderá.”21

“Em vez de pôr meu juízo sobre a Palavra de Deus, ou declarar o que dela é inspirado e o que não é, preferiria que me cortassem ambos os braços à altura dos ombros.”22

H. C. G. Moule, bispo anglicano, dá testemunho de sua fé nas Escrituras da maneira que segue: “[Cristo] confiou inteiramente na Bíblia. E embora ela contenha coisas inexplicáveis e complicadas que muito me têm intrigado, confiarei… reverentemente no Livro, por Sua causa.”23

Sempre devemos ter em mente que a Escritura não é meramente escrita, mas também falada. “A Palavra do Deus vivo não é somente escrita, mas também falada. A Bíblia é a voz de Deus falando a nós tão certamente como se a pudéssemos ouvir com nossos próprios ouvidos.”24 Isto significa que devemos escutar, prestar atenção obediente, e não apenas ouvir. O antigo Israel ouvia, mas não estava disposto a aceitar a Palavra divina como tendo valor normativo para sua vida. Deus os admoestou reiteradas vezes com palavras semelhantes a estas: “Eu vos falei, começando de madrugada, e não Me ouvistes, chamei-vos e não Me respondestes.”25 Devemos aceitar humildemente a vontade de Deus, como nos é declarada em Sua Palavra, e cumpri-la. “Não procureis esquadrinhar as Escrituras a menos que estejais dispostos a escutar, a menos que estejais dispostos a ser ensinados, a menos que estejais dispostos a prestar atenção à Palavra de Deus como se a Sua voz vos estivesse falando diretamente dos oráculos vivos.”26

“Toda Escritura é inspirada por Deus”,27 e não somente procede de Deus, “mas os homens santos de Deus falaram inspirados pelo Espírito Santo”.28 Desta ação divina procede a Bíblia, que é o resultado da Palavra de Deus e da inspiração do Espírito Santo. Este, falando nas Escrituras, que constituem o produto da ação reveladora e inspiradora de Deus, é a autoridade para a Igreja. Não são duas autoridades, como alguns parecem dar a entender, e, sim, tuna, e uma só. “No que diz respeito à autoridade religiosa, o Espírito e a Palavra estão indissoluvelmente unidos. As Escrituras funcionam no ministério do Espírito, e o Espírito funciona no instrumento da Palavra.”29

Disse Calvino: “Assim como Deus só pode atestar apropriadamente Suas próprias palavras, estas palavras não obterão inteiro crédito no coração do homem até que sejam seladas pelo testemunho interno do Espírito. Portanto, o mesmo Espírito que falou por boca dos profetas deve penetrar em nosso coração para convencer-nos de que eles transmitiram fielmente a mensagem que lhes foi divinamente confiada.”30

A Srª White apoia esta posição ao dizer: “Só nos é possível chegar a compreender a Palavra de Deus mediante a iluminação do Espírito pelo qual ela foi dada”,31 e “a pregação da Palavra não será de nenhum proveito sem a contínua presença e ajuda do Espírito Santo. Este é o único Mestre eficaz da verdade divina. Unicamente quando a verdade chega ao coração acompanhada pelo Espírito, vivificará a consciência e transformará a vida.”32 Por conseguinte, “o princípio formal da reforma não baseia a autoridade só na Escritura, nem só no Espírito, e, sim, na Escritura abonada pelo Espírito. Nesta relação recíproca o Espírito não constitui a autoridade, antes testifica da autoridade”.33

Devemos ter o cuidado de evitar dois perigos:

1. Buscar o ministério do Espírito separado da Escritura; ou

2. Apelar para a Escritura separada do ministério do Espírito.

“Aquele que crê que o Espírito verdadeiramente deu a Escritura, mas agora deixa sua apropriação a cargo de nossa razão natural, está dolorosamente errado. Pelo contrário, o Espírito Santo que deu a Escritura é Ele mesmo o Autor perfeito de toda apropriação de seu conteúdo pelo indivíduo, e de toda aplicação dela a sua pessoa. Por si mesma, a Bíblia não é mais que um meio e um veículo, ou, se o preferirem, o instrumento preparado por Deus para a obtenção de Seu propósito espiritual, mas sempre através da própria presença do Espírito Santo.”34 A Inspiração nos diz: “O Espírito não foi dado — nem nunca o poderia ser — a fim de sobrepor-Se à Escritura; pois esta explicitamente declara ser ela mesma a norma pela qual todo ensino e experiência devem ser aferidos.”35 Nunca devemos olvidar que “a espada do Espírito… é a Palavra de Deus”.36

Podemos dizer, portanto:

1. Nossa autoridade é o Espírito Santo falando nas Escrituras, ou

2. Nossa autoridade é a Escritura selada em nós pelo Espírito.

No centro da autoridade de Deus o Espírito Santo focaliza a pessoa e a obra de Cristo, e só quando o Espírito levou o crente a este centro da revelação divina é que o crente percebe toda a revelação e aceita a autoridade de Deus como sendo normativa para ele. É levado “cativo todo pensamento à obediência de Cristo”.37 O próprio eu se submete à autoridade de Deus.

Verificamos, então, que a autoridade religiosa, para nós, é:

1. Cristo, que é a Palavra viva e pessoal de Deus; Sua suprema revelação e o supremo depósito do conhecimento de Deus. Colos. 2:3.

2. O Espírito Santo que transmite a revelação, delegando nela Sua autoridade, e que testifica de Sua divindade.

3. As Escrituras Sagradas, inspiradas pelo Espírito Santo, e que, portanto, são o documento da revelação, testificam supremamente de Jesus Cristo e constituem o instrumento do Espírito Santo para efetuar a iluminação.38

Tudo isto se une para formar a cadeia da autoridade para o obediente filho de Deus. As autoridades não são três, mas elas formam uma unidade indivisa:

“O único Cristo conhecido é o Cristo da Escritura, e o único Espírito conhecido é o Espírito de Jesus Cristo. Não se pode introduzir nenhuma cunha entre o Espírito e a Bíblia, entre a Bíblia e Cristo, e entre Cristo e o Espírito. Eles formam um mosaico indivisível de autoridade divina. O ministério do Espírito é dar testemunho de Cristo. Para que Cristo possa ser um conceito real e prático, uma pessoa captável pela imaginação, deve estar intimamente associado a uma existência histórica, e esta existência histórica deve estar registrada para ser usada instrumentalmente pelo Espírito Santo.”39

O princípio primário de autoridade, Deus, tem produzido em Sua auto-revelação o princípio imediato ou material da autoridade: O Espírito Santo falando nas Escrituras e por meio delas. “Por intermédio das Escrituras o Espírito Santo fala à mente, e grava a verdade no coração…. É pelo Espírito de verdade, operando pela Palavra de Deus, que Cristo submete a Si Seu povo escolhido.”40

Bibliografia:

1. Carl F. H. Henry, ed., Revelation and the Bible, pág. 130.

2. P. T. Forsyth, The Principie of Authority, págs. 150 e 151.

3. I Samuel 8:7.

4. Isaías 1:2 e 10.

5. Gerhard Hasel. General Principies of Biblical Interpretation, North American Division Bible Conferences, 1974, pág. 3.

6. The New Schaff-Herzog Encyclopedia of Religious Knowledge, vol. XII, artigo Unam Sanctam.

7. Roland Bainton, Here I Stand, págs. 185-187.

8. Luther’s Works, ed. Jaroslav J. Pelikan e Helmut T. Lehmann, XXIV, pág. 362.

9. Carl F. H. Henry, ed., Revelation and the Bible, pág. 231.

10. Weigle, em Fremantle, The Papal Encyclicais, pág. 11.

11. The Religion of Protestants, pág. 463.

12. S. Mateus 4:4.

13. S. Mateus 22:29.

14. S Lucas 10:26.

15. S. João 8:47.

16. Ellen G. White, Obreiros Evangélicos, pág. 404.

17. Ellen G. White, O Grande Conflito, Introdução, pág. 8.

18. Ellen G. White, Mensagens Escolhidas, Livro 1, pág. 416.

19. Ellen G. White, O Grande Conflito, pág. 601.

20. Idem, págs. 202 e 203.

21. Ellen G. White, Mensagens Escolhidas, Livro 1, págs. 17 e 18.

22. Ellen G. White, Manuscrito 13, 1888.

23. John Battersby Harford e Frederick Charles Mac Donald, The Life of Bishop Moule, pág. 138.

24. Ellen G. White. Testimonies, vol. 6. pág. 393.

25. Jeremias 7:13.

26. Ellen G. White, Manuscrito 13. 1888; SDABC, vol. 7, pág. 919.

27. II Timóteo 3:16.

28. II S. Pedro 1:21.

29. Bernard Ramm, The Pattern of Religious Authority, pág. 29.

30. Calvino, Institutes, 1, VII, 4.

31. Ellen G. White, Caminho Para Cristo, pág. 94.

32. Ellen G. White, O Desejado de Todas as Nações, pág. 647.

33. J. N. Thomas, citado por Bernard Ramm, em The Pattern of Religious Authority, pág. 32.

34. Kuyper, Principies of Sacred Theology, págs. 402 e 398.

35. Ellen G. White, O Grande Conflito, Introdução, pág. 9.

36. Efésios 6:17.

37. II Coríntios 10:5.

38. Bernard Ramm. The Pattern of Religious Authority, pág. 36.

39. Idem, pág. 46.

40. Ellen G. White, O Desejado de Todas as Nações, ed. popular, pág. 646.