Jesus, o sábado e João 5:18

Algumas versões da Bíblia traduzem João 5:18 da seguinte maneira: “Por isso, pois, os judeus ainda mais procuravam matá-Lo, porque não somente violava o sábado, mas também dizia que Deus era Seu próprio Pai, fazendo-Se igual a Deus” (ARA). O verbo violar, presente também na Nova Versão Internacional e Nova Versão Transformadora, naturalmente leva a uma pergunta: Jesus realmente violou o sábado?

Uma tradução mais sensível ao contexto do verbo luō nesse versículo apresenta uma mensagem muito diferente sobre o relacionamento de Jesus com o sábado. A tradução é a seguinte: “É por isso que os judeus procuravam matá-Lo; Ele não estava somente libertando o sábado…”1 Essa tradução, que tem sido ignorada por tradutores e comentaristas, pode ser justificada? Se ela for válida, não resolveria um problema teológico que retrata Jesus, nosso sacrifício sem pecado, como tendo pecado?

Libertação

O léxico padrão grego-inglês do Novo Testamento2 oferece cinco definições do verbo luō. As quatro primeiras são as mais relevantes para compreender João 5:18:

1. “desfazer algo que é usado para amarrar ou apertar, soltar, desatar”;

2. “libertar algo amarrado ou apertado, soltar, libertar, desatar”;

3. “reduzir algo pela violência em seus componentes, destruir”;

4. “eliminar, destruir, pôr fim, abolir”.3

As seis ocorrências de luō no evangelho de João são mais bem distribuídas entre essas quatro definições:

1. “Não sou digno de desamarrar as correias das Suas sandálias” (Jo 1:27); 
“Desamarrem-no [Lázaro] e deixem que ele vá” (Jo 11:44).

2. “Os judeus ainda mais procuravam matá-Lo, porque não somente violava o sábado” (Jo 5:18, ARA).

3. “Destruam este santuário, e em três dias Eu o levantarei” (Jo 2:19).

4. “E a Escritura não pode ser anulada” (Jo 10:35, ARC).

Há, então, justificativa linguística para traduzir luō em João 5:18 como “libertar”. O passo seguinte será localizar a passagem em seu cenário cultural e religioso.

Cura

João 5 relata a visita de Jesus ao tanque de Betesda enquanto estava em Jerusalém para uma grande celebração religiosa.4 Como se acreditava que o tanque fosse um lugar em que curas divinas aconteciam, muitos doentes da cidade esperavam sob os cinco pórticos que o cercavam na esperança de receber a cura. Entre eles estava um homem enfermo havia 38 anos (Jo 5:5), um número significativo para o povo judeu. A peregrinação de seus ancestrais israelitas pelo deserto – desde a recusa para entrar até a entrada na Terra Prometida – durou 38 anos (Dt 2:14).

Jesus, vendo o homem doente, perguntou: “Você quer ser curado?” (Jo 5:6). Que pergunta estranha… Claro que ele queria ser curado! Caso contrário, por que passaria tanto tempo perto dessa “água milagrosa”?

No entanto, em vez de responder à pergunta de Jesus, ele começou a explicar por que ainda não havia sido curado: “Não tenho ninguém que me ponha no tanque quando a água é agitada. Quando tento entrar, outro enfermo chega antes de mim” (v. 7). Sua declaração poderia ser entendida não apenas como um resumo de sua experiência pessoal, mas também como um eco dos 38 anos que seus ancestrais israelitas passaram no deserto, “esperando” para entrar nas águas do rio Jordão para chegar à Terra Prometida?

Se esse for o caso, Jesus poderia estar perguntando ao homem doente se ele, diferentemente de seus ancestrais hebreus, estava pronto para se render totalmente à vontade de Deus, a fim de experimentar a tão desejada cura? Enfim, Cristo não abordou a tentativa do homem de explicar sua situação. Em vez disso, Ele ordenou: “Levante-se, pegue o seu leito e ande” (v. 8).

Levante-se e ande

A ordem “Levante-se, pegue o seu leito e ande” tem uma história sagrada. Jesus estava citando e adaptando a ordem divina para “levantar-se e começar a andar” proferida em momentos cruciais da história do povo hebreu.

Por exemplo, Deus ordenou duas vezes a Abrão que “se levantasse e começasse a andar” em direção à terra que havia prometido a ele e a seus descendentes como parte da formação de um novo povo 
(Gn 12:1; 13:17). O Senhor ordenou que Elias “se levantasse e começasse a andar” para Sarepta, perto de Sidom, enquanto a fome devastava Israel (1Rs 17:9, 10). Ele ordenou duas vezes a Jeremias que “levantasse e começasse a andar” para cumprir seu ministério profético (Jr 13:6; 18:2). Ezequiel foi ordenado para que “se levantasse e começasse a andar” enquanto Deus o preparava para falar com seus companheiros hebreus no exílio babilônico (Ez 3:22). O Senhor orientou Jonas duas vezes a 
“levantar-se e começar a andar” para Nínive, tanto antes como depois do desvio da rota, quando ele esteve na barriga do grande peixe (Jn 1:2; 3:2).

Cerca de proteção

Esse contexto bíblico rico da ordem de Jesus ao homem doente teria sido familiar a ele e às pessoas próximas que O ouviram. Por conta disso, a ordem de Cristo teria sido entendida como uma dupla mensagem: Primeira, seja curado! Segunda, cumpra a missão designada por Deus, testificando a genuinidade de sua cura e de sua Fonte – Jesus. A cura do paralítico e sua obediência à ordem do Mestre foram prontas: “Imediatamente o homem se viu curado e, pegando o leito, começou a andar” (v. 9a). Ele viveu com saúde desde então? Não sabemos. A narrativa desvia nossa atenção para outro elemento – o calendário: “E aquele dia era sábado” (v. 9).

Para o povo judeu dos dias de Jesus, especialmente em Jerusalém, a vida durante o sábado era controlada a um nível de detalhes muito além do que Deus especificou em Êxodo 20:8 a 11. Por que esse microgerenciamento, quando o quarto mandamento é relativamente breve? Esse processo começou cinco séculos antes, após o cativeiro babilônico, quando alguns dos cativos e seus descendentes retornaram à sua pátria. Muitos reconheceram que o cativeiro era devido à indiferença secular do povo hebreu à vontade de Deus, expressa nos Dez Mandamentos e na lei relacionada, incluindo o sábado.

Em um esforço para evitar que essa tragédia acontecesse novamente, os líderes religiosos judeus desenvolveram uma “cerca em torno da lei” para se proteger contra violações dos Dez Mandamentos. Se houvesse regulamentos detalhados suficientes, como uma cerca de proteção, eles ajudariam a garantir que as pessoas não violassem as leis. Essa cerca crescente de regulamentos foi transmitida oralmente de geração em geração e, finalmente, preservada na Mishná,5 cerca de um século depois de Cristo.

Cerca sabática?

Como essa “cerca em torno da lei” tentou proteger o quarto mandamento é visto em sua lista de 39 tipos de trabalhos proibidos no sábado. O 39º trata de transportar um objeto de ambiente particular para ambiente público e vice-versa.6 
O que uma pessoa tinha permissão para carregar em uma casa particular no sábado seria proibido em público. Em outras palavras, a lei da Mishná estava diretamente envolvida quando o homem recém-curado, por ordem de Jesus, pegou seu leito e o carregou do “domínio privado” do pórtico do tanque para o “domínio público” da rua.

As autoridades rabínicas discordavam sobre o que poderia ou não ser legalmente transportado no sábado. Por exemplo, de acordo com um rabino, um judeu ajudando um gentio a levantar uma carga em seu burro na tarde de sexta-feira seria culpado se o gentio não chegasse ao seu destino e removesse a carga antes do início do sábado. Mas outros declaravam que o judeu prestativo não seria culpado, mesmo que o gentio não descarregasse o burro antes do sábado.7

Dentro desse sistema de leis, o que dizer de um homem carregando seu leito? Carregar um leito no sábado era permitido, desde que fosse feito por duas pessoas, “porque nenhuma delas realizava um trabalho totalmente proibido”.8 Era permitido no sábado carregar uma pessoa doente no leito. Talvez fosse sábado quando os homens carregaram um paralítico em uma cama e o desceram pelo telhado diante de Jesus (Lc 5:18-20). Nesse caso, embora os homens não quebrassem as restrições rabínicas carregando o paralítico, certamente o fizeram quando o içaram para o telhado, arrancaram as telhas e o desceram pela abertura!

Se Jesus tivesse indicado um discípulo ou espectador para ajudar o homem curado a carregar o leito, não haveria motivos para acusá-Lo de violar o sábado. Mas Cristo o instruiu a carregá-lo sozinho, sem ajuda. Os adversários de Jesus estariam esperando ansiosamente que o homem curado, carregando seu leito, deixasse o “domínio” do tanque e entrasse no “domínio” da rua. O primeiro passo na rua, de acordo com a Mishná, violaria o sábado. Então, logo que o homem curado pisou na rua, eles o confrontaram: 
“É sábado, e neste dia você não tem permissão para carregar o seu leito” (Jo 5:10)!

Violando ou libertando o sábado?

Nesse contexto, chegamos à pergunta proposta na introdução: Quando Jesus ordenou ao homem curado que pegasse seu leito e andasse, Ele estava violando ou libertando o sábado?

Quando lido à luz de seu contexto linguístico, social e religioso, João 5:18 declara que ao curar o paralítico e ordenar que ele se levantasse e levasse seu leito, dando evidência do poder curador de Deus, Jesus não estava violando o sábado. Em vez disso, “fazendo essas coisas no sábado” (v. 16), Ele estava libertando o sábado de uma restrição antibíblica que produz ansiedade e foi criada pelos seres humanos. Além de libertar o sábado, Jesus também ecoou o antigo mandamento divino ao Seu povo para “levantar-se e começar a andar” a fim de cumprir a missão que Ele lhe designou.

Se esse argumento estiver correto, então as traduções comuns de João 5:18 que versam sobre Jesus “violar o sábado” (algo que, se fosse verdade, teria sérias consequências para a teologia cristã), infelizmente perdem completamente o sentido do texto.  

Referências

1 Tradução do autor.

2 Frederick W. Danker, Walter Bauer, William F. Arndt e F. Wilbur Gingrich, Greek-English Lexicon of the New Testament and Other Early Christian Literature (BDAG) (Chicago, IL: University of Chicago Press, 2000).

3 BDAG, verbete “luō”.

4 Em alguns manuscritos antigos, o tanque é chamado de Betesda, em outros, de Betsaida.

5 As citações e explicações da Mishná são do site Sefaria <link.cpb.com.br/372b6f>. 

6 Mishná Shabbat 7:2.

7 Mishná Shabbat 1:7.

8 Mishná Shabbat 10:5