Daniel 12:13 e as primeiras interpretações adventistas

“Bendito é aquele que espera e chega aos mil trezentos e cinco, e trinta dias. Porém segue tu o teu caminho até o final; pois tu descansarás e estarás na tua porção ao final dos dias” (Dn 12:12, 13, King James 1611).

A história da interpretação de Daniel 12:13 no início do adventismo não é apenas fascinante, mas também tem implicações fundamentais para a hermenêutica bíblica, bem como para a missão adventista. As interpretações realizadas antes do grande desapontamento1 diferiram um pouco das realizadas depois. Faremos um levantamento dessas interpretações e, em seguida, tiraremos algumas conclusões.

Antes do desapontamento

Guilherme Miller, pregador batista e líder do movimento milerita, afirmava que a ressurreição física do profeta está em vista2 em Daniel 12:12 e 13 e que a ressurreição geral deveria acontecer no final dos 1335 dias. Miller esperava o cumprimento da bênção prometida àqueles que alcançassem a profecia dos 1335 dias em 1843. Ele entendia que a segunda vinda de Cristo ocorreria no fim desse período, que também seria o término dos 2300 dias.3

Em carta, ele declarou: “Você não vê que, ao final de 1335 dias, Daniel estará em 
sua porção? E você não vê que estar em sua porção significa a ressurreição?”4

O The Second Advent Manual, publicado em 1843, apresenta uma interpretação clara de Daniel 12:13 que se refere à ressurreição do profeta: “Porém segue tu o teu caminho até o final (o fim dessas maravilhas), pois tu descansarás (a condição dos justos mortos desde sua morte até a ressurreição, Ap 6:11; 14:13) e estarás na tua porção (ou, literalmente, levantarás, ou seja, será ressuscitado dentre os mortos para receber tua parte na herança) ao final dos dias.’”5

Consequentemente, torna-se evidente que os mileritas proclamaram que o texto se refere à ressurreição física de Daniel.

Depois do desapontamento

Tendo conectado esses dois eventos – o cumprimento da bênção dos 1335 dias pronunciada em Daniel 12:12 com a ressurreição do profeta no verso 13 – os primeiros adventistas agora tinham que explicar essa interpretação, obviamente errada, à luz do grande desapontamento.

Alguns continuaram insistindo que a bênção dos 1335 dias não havia sido cumprida em 1843 e que seu cumprimento ainda era iminente, sugerindo até novas datas.

Tiago White não ligou os 1335 dias com a ressurreição de Daniel. Ele escreveu: “Não endossamos a visão de que os 1335 dias se estendem até a ressurreição.”6 No entanto, isso não significa que ele tenha separado os eventos de Daniel 12:13 daqueles apresentados no versículo 12.

O pioneiro também escreveu: “O dia e a hora do segundo advento de Cristo não são revelados nas Escrituras. Tampouco é indicado o ano em que esse glorioso evento ocorrerá. Nenhum dos períodos proféticos chega à segunda vinda de Cristo. O santuário deve ser purificado no fim dos 2300 dias, e Daniel deve estar em sua porção no final dos 1335 dias. Que esses eventos ocorram antes da segunda vinda de Cristo é suscetível da prova mais clara. Ambos os períodos proféticos terminaram em 1844.”7

Ele ainda viu a profecia de Daniel 12:13 sendo cumprida no fim dos 1335 dias. No entanto, não interpretou o texto como uma referência à ressurreição do profeta, mas à vindicação dele no julgamento. Ele disse: “No grande dia da expiação para o apagamento dos pecados de todos os tempos, os casos dos patriarcas e profetas e dos santos adormecidos de todas as eras passadas surgirão em julgamento, os livros serão abertos, e eles serão julgados de acordo com as coisas escritas nos livros. É assim, no final dos 1335 dias, [Dn 12:13] que Daniel estará em sua porção.”8

Embora compartilhasse com Tiago White o entendimento de que a “porção” de Daniel se referisse à sua vindicação no juízo, Urias Smith diferenciava isso dos 1335 dias do verso 12. Falando das profecias de tempo de Daniel 12, ele declarou: “Mas como podem ter terminado, pode-se perguntar, visto que no fim desses dias Daniel estará em sua porção, que alguns supõem se referir à sua ressurreição dos mortos? Essa questão se baseia em um equívoco em dois aspectos: primeiro, que os dias no final dos quais Daniel estará em sua porção são os 1335 dias; e em segundo lugar, que a posição de Daniel em sua porção é sua ressurreição, que também não pode ser sustentada. A única coisa prometida no fim dos 1335 dias é uma bênção para aqueles que esperam e chegam a esse tempo; isto é, àqueles que estiverem então vivendo.”9

Smith continuou ressaltando que, sob a bênção de Daniel 12:12, deve-se presumir o aumento do conhecimento e o correto entendimento das profecias. “Vemos um notável cumprimento da profecia na grande proclamação da segunda vinda de Cristo. Quarenta e cinco anos antes disso, o tempo do fim começou, o livro foi aberto e a luz passou a aumentar. Por volta de 1843, houve uma grande culminação de toda a luz que havia sido derramada sobre assuntos proféticos até aquele momento. A proclamação foi feita com poder.”10

O pioneiro interpretou o “estarás na tua porção” de Daniel como quando o nome do profeta surgir no juízo investigativo e ele for vindicado. Outros escritores seguiram sua interpretação dessa promessa final dada a Daniel.11 Um dos principais argumentos contra a ressurreição prometida ao profeta foi baseado em um estudo muito restrito da palavra hebraica traduzida como “porção” em Daniel 12:13.12

Contribuição de Ellen White

Ellen White13 não se envolveu no debate sobre a ressurreição física de Daniel apresentada no verso final do livro. Em vez disso, usando a linguagem do versículo, ela o aplicou ao fato de que as profecias seriam claramente compreendidas.

“Aqueles que ficam confusos em sua compreensão da Palavra, que não conseguem ver o significado do anticristo, certamente se colocarão do lado do anticristo. Não há tempo para nos misturarmos com o mundo. Daniel está em sua porção e seu lugar. As profecias de Daniel e de João devem ser entendidas; elas interpretam uma a outra. Elas dão ao mundo verdades que todos deveriam entender. Essas profecias devem ser testemunhas no mundo. Pelo seu cumprimento nestes últimos dias elas se explicarão.”14

“Chegou a hora de Daniel estar na sua porção. Chegou a hora de a luz que lhe foi dada ir ao mundo como nunca antes. Se aqueles por quem o Senhor fez tanto andarem na luz, seu conhecimento de Cristo e das profecias relacionadas a Ele aumentará grandemente, à medida que se aproximarem do fim da história da Terra.”15

Essas raras declarações de Ellen White sobre a fraseologia usada em Daniel 12:13 não implicam uma interpretação completa da passagem. Em vez disso, usando a linguagem do texto, ela o aplica ao tempo em que a compreensão de Daniel e Apocalipse aumentaria.

Conclusão

Ellen White nunca se opôs à ideia de que Daniel 12:13 se referisse à ressurreição física do profeta nem endossou as interpretações apresentadas por Tiago White, Urias Smith ou John Loughborough. Ela simplesmente aplicou a linguagem do verso ao fato de que, em seus dias, as profecias dos livros de Daniel e Apocalipse eram mais claramente compreendidas do que antes. Em outras palavras, ela forneceu uma aplicação adicional ao cumprimento da promessa feita a Daniel.16 Assim, a questão permanece: o texto fornece alguma dica de uma possível aplicação adicional?

Embora não encontremos nenhuma justificativa textual para o duplo cumprimento do período profético mencionado em Daniel 12:12, a redação do verso 13 parece apontar para uma possível aplicação adicional além da promessa de ressurreição dada ao profeta.

O indicador encontra-se na última palavra da passagem.17 Para esse último termo, traduzido como “dias”, Daniel usa dois idiomas. Ele começa em hebraico, mas termina em aramaico.18 Embora essas duas línguas tenham a mesma raiz para a palavra “dias”, o início da palavra em hebraico não pode ser confundido por causa do artigo definido. Em hebraico, o artigo definido vem como prefixo da palavra, mas, em aramaico, o artigo definido vem como sufixo. Além disso, os artigos definidos nesses dois idiomas são inequivocamente diferentes.

Se Daniel tivesse usado apenas hebraico, isso remeteria à palavra “dias” usada para se referir aos 1335 dias. Se ele tivesse usado apenas a palavra aramaica, ela diferenciaria clara e totalmente a palavra “dias” nos versos 12 e 13. No entanto, o fato de o profeta combinar dois idiomas na palavra final pode sugerir que, embora haja uma clara distinção entre as duas passagens, ainda há alguma conexão possível entre elas.

Ellen White, sem proficiência em línguas antigas, viu indicadores que lhe permitiram dar uma contribuição notável, além do cumprimento da promessa de uma ressurreição física para o próprio Daniel. Ela se referiu à “ressurreição” da mensagem do livro do profeta. Podemos crer que o mesmo Espírito Santo que guiou Daniel ao escrever seu livro levou Ellen White a compreendê-lo.  

Referências

1 Ver Eugene Zaitsev, “The Mission of Adventism”, Ministry, dezembro de 2012, p. 17.

2 Charles Fitch também apoiou as opiniões de Miller sobre Daniel 12:13. Por exemplo, ver Letter to Rev. J. Litch, on the Second Coming of Christ, p. 43.

3 William Miller, William Miller’s Apology and Defense, August 1 (Boston, MA: J. V. Himes, 1845), p. 10.

4 William Miller, Miller’s Reply to Stuart’s “Hints on the Interpretation of Prophecy” (Boston, MA: Joshua V. Himes, 1842), p. 48.

5 Apollos Hale, The Second Advent Manual (Boston, MA: Joshua V. Himes, 1843), p. 61.

6 James White, nota do editor inserida em “William Miller: His Treatment of Opponents – Specimens of His Preaching”, Advent Review and Sabbath Herald 7, n. 18, 31/1/1856, p. 137.

7 James White, The Second Coming of Christ (Battle Creek, MI: Steam Press, 1871), p. 62.

8 James White, “The Judgment”, Advent Review and Sabbath Herald 9, n. 13, 29/1/1857, p. 100.

9 Uriah Smith, Daniel and the Revelation (Nashville, TN: Southern Publishing Assn., 1897), p. 343.

10 Smith, Daniel and the Revelation, p. 343.

11 Ver, por exemplo, J. N. Loughborough, “The Hour of His Judgment Come”, Advent Review and Sabbath Herald 5, n. 4, 14/2/1854, p. 30.

12 Loughborough, “The Hour of His Judgment Come”, p. 30. Para argumentos favoráveis à ressurreição física, ver Artur A. Stele, Resurrection in Daniel 12 and its Contribution to the Theology of the Book of Daniel” (Universidade Andrews, tese de doutorado, 1996), p. 150-191.

13 Ellen White acreditava que a profecia dos 1335 dias havia se cumprido. Ver, por exemplo, Primeiros Escritos (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2014), p. 75; Mensagens Escolhidas (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2016), v. 1, p. 188. Para mais informações sobre essas citações de Ellen White, ver Alberto R. Timm, “Os 1290 e 1335 dias de Daniel 12”, Kerygma, v. 1, n. 1, 2005, p. 3-7.

14 Ellen G. White, The Relief of the Schools (1900), p. 11.

15 Ellen G. White, Manuscrito 176, 1899.

16 O cumprimento final foi visto na ressurreição. Esse pensamento foi apresentado em um sermão pregado por L. R. Conradi enquanto Ellen White estava viva. Ver L. R. Conradi, “God’s Opening Providences”, General Conference Bulletin, 4/6/1913, p. 267.

17 Ver Artur Stele, “The Last Word of the Book of Daniel: A Grammatical Mistake or a Conscious Choice”, Ministry, fevereiro de 2021, p. 6-9.

18 Alguns estudiosos veem aqui apenas um aramaísmo sem qualquer significado para interpretação. No entanto, o fato de Daniel usar a palavra “dias” em ambos os idiomas em seu livro muitas vezes, mas apenas uma vez, e no final dele, misturar o começo em hebraico e o final em aramaico sugere intencionalidade. Além disso, deve-se ter em mente que apenas um verso antes o profeta usa a palavra hebraica para “dias” com um final hebraico e não aramaico. Se fosse um simples aramaísmo, esperaríamos em ambos os lugares. É interessante notar que o uso da palavra hebraica para “dias” com um artigo definido hebraico e uma terminação de plural aramaica é visto apenas uma vez em todo o Antigo Testamento: em Daniel 12:13.