“O pecado é uma condição maligna do coração, e mesmo um só pecado não é meramente um pecadinho, e, sim, uma ação que resulta da pecaminosa condição da natureza humana.”

No Novo Testamento há vários termos gregos que em castelhano e português comumente são traduzidos por “pecado”. A maior parte dessas palavras gregas apenas tem relevância, pois sua freqüência no léxico grego do Novo Testamento é muito escassa. No entanto, o substantivo hamartia (“pecado”), o verbo hamartano (“pecar”) e alguns outros vocábulos gregos derivados ou compostos dessas palavras aparecem mais de 250 vezes no Novo Testamento.1

Significado de “Hamartia” no Grego Clássico

A palavra hamartia, que em nossas Bíblias foi invariavelmente traduzida por “pecado”, não tinha no grego clássico esta mesma significação. No grego clássico, o significado básico de hamartia expressa sempre a idéia de “erro” ou “falta”. Nas competições atléticas, mui freqüentes e mui apreciadas pelos gregos antigos, quando um atleta lançava sua lança ou dardo e não acertava no alvo, o juiz encarregado de vigiar a prova erguia uma pequena bandeira branca e pronunciava a palavra hamartia, isto é, “erro”, e, portanto, a conseqüente desqualificação do atleta. A palavra hamartia também era empregada para expressar a idéia de errar o caminho, de falhar num plano que alguém se havia proposto, de frustrar uma esperança ou um propósito por qualquer motivo.2 Mais tarde, associou-se-lhe a idéia do bem e do mal, de maneira que no Novo Testamento hamartia significa não fazer o bem que é o alvo e, por conseguinte, fazer o mal, pecar. Raras vezes significa, no Novo Testamento, um simples erro ou falta. No Novo Testamento, o significado fundamental de hamartia não é o de um ato cometido, e, sim, o estado de pecado, do qual dimanam todas as tendências pecaminosas. Com efeito, é a palavra empregada em passagens onde não há referência a determinado pecado, como por exemplo: “Como viveremos ainda no pecado, nós os que para ele morremos?” Rom. 6:2. “Sem lei está morto o pecado.” Rom. 7:8. E muitas outras passagens.3 

Usos de “Hamartia” no Novo Testamento

A palavra hamartia tem diversos usos e aplicações no Novo Testamento. Os mais importantes são os seguintes:

1. Hamartia, pecado, é universal (Rom. 3:23; 7:14; Gál. 3:22; I S. João 1:8). O pecado não é algo que afeta a alguns homens, e não a outros. É alguma coisa que envolve a todo ser humano e de que todo ser humano é culpável. Também não é algo temporal ou esporádico, mas o estado, a condição universal do homem.

2, Hamartia, pecado, é um poder que submete o homem. No grego há várias expressões e palavras que expressam muito bem esta idéia. A preposição hippos, quando acompanha uma palavra no acusativo, significa “sob o domínio de”, “dependente de”. Em Romanos 3:9 e Gálatas 3:22 é dito que estamos debaixo do pecado (hyfhamartian,) isto é, em poder do pecado, controlados pelo pecado. O pecado reina (basileuo) no homem (Rom. 5:21). Ele governa os homens e tem domínio (kyreuo) sobre nós (Rom. 6:14). O substantivo grego kyrios, que significa senhor, encerra a idéia de “dono”, isto é, de alguém que tem domínio e poder absoluto. Numa expressão similar, o apóstolo Paulo disse que o pecado nos mantém cativos (aichmalotidso): (Rom. 7:23). Esta palavra era utilizada pelos gregos para designar os prisioneiros de guerra que, como tais, não tinham absolutamente nenhum direito e estavam à mercê do que os vencedores quisessem fazer com eles. Paulo também disse que o pecado habita (oikéo) no homem (Rom. 7:17 e 20). O pecado não é, pois, um agente externo que opera de vez em quando no homem, mas algo que habita permanentemente no coração humano e nos induz continuamente ao mal.

De tudo isto se depreende que o homem é escravo (doulos) do pecado (S. João 8:34; Rom. 6:6, 17 e 20). Importa recordar que os direitos dos escravos na antiguidade eram nulos. O escravo não tinha direito a nada e não podia dispor de coisa alguma. Os senhores podiam fazer o que quisessem com os escravos, desde obrigá-los a trabalhar despiedosamente até maltratá-los e mesmo matá-los. Assim também, o homem está totalmente sob o domínio do pecado.

3. Hamartia, pecado, tem graves conseqüências:

a) O pecado produz endurecimento (skleryno) do coração (Heb. 3:13). Em sua forma mais simples, o adjetivo skleros pode aplicar-se a certas pedras ou madeiras que são muito duras e, por conseguinte, muito difíceis de trabalhar ou de lavrar. Também pode aplicar-se a certas pessoas que têm um caráter duro e áspero. Paulo orava para que os filipenses tivessem aisthesis, isto é, boa sensibilidade, e não um endurecimento de coração (Filip. 1:9). Se for cometido freqüentemente, o pecado tem a funesta qualidade de endurecer nossa consciência e tornar-nos insensíveis aos apelos do Espírito Santo.

b) O pecado produz uma morte (Rom. 5:12 e 21; 6:16; S. Tia. 1:15) a que todos estamos sujeitos, pois, como dissemos anteriormente, o alcance do pecado é universal.

c) Hamartia, pecado, se relaciona com blasfemia (S. Mat. 12:31). A palavra blasfemia significa basicamente “insulto”. O pecado é um insulto a Deus, visto que aquele que o comete está zombando dEle ao violar os Seus mandamentos.

d) Hamartia, pecado, se relaciona com apate (Heb. 3:12). A palavra apate significa “engano”. O pecado é sempre enganoso, pois as pessoas que o praticam na maior parte das vezes o fazem pensando que assim serão mais felizes. No entanto, tal como aconteceu pela primeira vez com Adão e Eva, os resultados são bem distintos.

e) Hamartia se relaciona com epithymia. Esta palavra significa “concupiscência”, “cobiça”, “desejo”, etc. Em qualquer caso expressa a noção de desejar o que não se deve. Com efeito, esta é a palavra empregada na Septuaginta para designar o décimo mandamento: “Não cobiçarás.”

f) Hamartia se relaciona também com anomia. Em I S. João 3:4 anomia significa “desobediência à lei”. Os escritores gregos clássicos consideravam a palavra anomia como sinônimo de ilegalidade, anarquia e desordem. No sentido religioso anomia é o espírito que induz o homem a desobedecer à lei de Deus e fazer o que bem entende.

g) Hamartia se relaciona com adikia (I S. João 5:17). O significado básico de adikia é o de injustiça, iniqüidade, mal. Em Romanos 3:5 o apóstolo Paulo disse que nossa injustiça adikia realça a justiça dikaiosyne de Deus.

h) Por último, hamartia se relaciona também com a palavra prosopolepsia. No segundo capítulo da Epístola de S. Tiago é usado várias vezes o vocábulo prosopolepsia, cujo significado fundamental é o de “acepção de pessoas”. No versículo 9 o apóstolo disse que quem faz acepção de pessoas (prosopolepsia) comete pecado (hamartia).

O que Deus Faz com os Nossos Pecados?

Até agora temos examinado o aspecto negativo do pecado. Embora o pecado não contenha nenhum aspecto positivo, Deus assume tal atitude de amor para com o pecador que nos torna mais positivos e otimistas.

Em primeiro lugar, Jesus nos salva (sodso) do pecado. Como dissemos a princípio, todos temos pecado, e o salário do pecado é a morte. Necessitamos, portanto, que alguém nos resgate. Esse resgate Jesus o pagou com Sua vida. Nossos pecados são apagados (eksaleifo) através da obra redentora de Cristo (Atos 3:19; ver também Colos. 2:14 e Apoc. 3:5).

Em segundo lugar, Deus, por Seu grande amor, não nos “imputa pecado” (loguidsomai). O significado básico de loguidsomai é o de contar, lançar na conta. Nossos livros de registro estão com números vermelhos e continuamente aparecemos como devedores. Jesus ensinou a Seus discípulos que eles deviam orar a Deus pedindo que lhes perdoasse as dívidas. Segundo o apóstolo Paulo, Deus não nos imputa os nossos pecados (Rom. 4:8) porque os cobriu (epikalypto) antes disso (Rom. 4:7). A palavra epicalypto é utilizada para indicar que um caminho foi coberto pela neve, o pano que cobre o cenário ou parte dele, etc. É como se Deus, por Seu infinito amor, puxasse o véu sobre nossos seres pecaminosos e não os visse nunca mais.

Em terceiro lugar, Deus nos liberta (eleytheroo) do pecado (Rom. 6:18 e 22; 8:2) e nos desata (lyo) as ataduras do pecado (Apoc. 1:5). Indicamos anteriormente que éramos escravos do pecado e que estávamos sob o domínio do pecado; no entanto, Jesus, ao morrer por nós, nos libertou do pecado e nos dá poder para continuar sendo livres.

Por último, Jesus nos perdoa (afiemi) todos os nossos pecados (S. Mat. 9:2; S. Mar. 2:10; S. Luc. 7:47; Atos 2:38; Colos. 1:14, etc.). O verbo afiemi tem várias acepções. Entre outras, pode significar indultar, perdoar uma dívida, eximir de um cargo, etc. De modo definitivo, significa o perdão ou indulto imerecido de uma pessoa à qual se poderia haver exigido o que reclama a justiça. Por meio de Cristo o homem é libertado de um castigo que Deus nos poderia haver aplicado com toda a razão. Deus não age somente com justiça, mas também com misericórdia.

Conclusão

Depois de haver estudado os significados e os usos de hamartia no Novo Testamento, podemos tirar uma conclusão que “muitos cristãos parecem não querer compreender: que o pecado é uma condição maligna do coração e que mesmo um só pecado não é meramente um pecadinho, e, sim, uma ação que resulta da pecaminosa condição da natureza humana”.4

Não há nenhum livro como o Novo Testamento para indicar que o pecado tem um sentido tão funesto, e para nos mostrar ao mesmo tempo como podemos ficar livres dele.

O evangelista João, que compreendeu muito bem esta lição, nos diz em sua primeira Epístola: “Se dissermos que não temos pecado nenhum, a nós mesmos nos enganamos, e a verdade não está em nós. Se confessarmos os nossos pecados, Ele é fiel e justo para nos perdoar os pecados e nos purificar de toda injustiça. Se dissermos que não temos cometido pecado, fazemo-Lo 

mentiroso e a Sua palavra não está em nós…. Filhinhos meus, estas coisas vos escrevo para que não pequeis. Se, todavia, alguém pecar, temos Advogado junto ao Pai, Jesus Cristo, o justo; e Ele é a propiciação pelos nossos pecados, e não somente pelos nossos próprios, mas ainda pelos do mundo inteiro.” I S. João 1:8-10; 2:1 e 2.

Miguel Angel Roig, licenciado em Filologia Clássica pela Universidade Autônoma de Madri. Professor de Latim e de Grego do Novo Testamento

Notas e Referências

1. Petter, Hugo M., La nueva concordancia greco-española del Nuevo Testamento. 2′. edição. Mundo Hispano. Barcelona. 1980, pág. 643.

2. Bailly, Antonine, Dictionnaire greco-français, 36ª ed., Hachette, Paris. 1980, pág. 93.

3. Greenle. J. Harold. Secretos claves de términos bíblicos, Casa Nazarena de Publicaciones. Kansas City, s. f„ págs. 7 e 8.

4. Idem, pág. 8.

* Na elaboração deste trabalho levamos muito em conta a obra de William Barclay. Palavras griegas del Nuevo Testamento, Casa Bautista de Publicaciones. Barcelona, 1977, págs. 91-96.

A edição do Novo Testamento grego que utilizamos em toda a série, é a de José Maria Bover e José O’Callaghan, El Nuevo Testamento trilingüe, BAC, Madri, 1977.

O texto da Septuaginta que empregamos é o de Alfred Ralhfs, 9ª ed., Editorial Wurttembergische Bibelanstalt. Stuttgart. 1972.