No dia 21 de janeiro de 1524, sábado, na cada de Félix Mantz, em Zurique, Suíça, Georg Blauroch, um antigo sacerdote, confessou seus pecados e depois foi batizado por Conrad Grebel, um leigo. Na semana seguinte, 35 pessoas foram batizadas na vizinha vila de Zollikon. Logo após, Wilhelm Reublin foi a Waldshut, 48 quilômetros ao norte de Zurique, e ali batizou Balthasar Hubmaier e outras 60 pessoas. Por sua vez, Hubmaier batizou 300 novos conversos na época da Páscoa do mesmo ano. Esses acontecimentos assinalaram o início do movimento Anabatista.1
Muitas igrejas cristãs independentes encontram neste movimento alguns dos seus antepassados espirituais.
A igreja do século XVI necessitava desesperadamente de reforma. Mesmo antes, os movimentos da reforma já haviam surgido — os valdenses nas regiões alpinas da Itália e da França, os wiclifenses na Inglaterra e os hussitas na Boêmia, entre outros. Os homens que trouxeram a Reforma faziam parte dessa longa tradição de movimentos de reforma. Ao mesmo tempo que eles eram contra o mundanismo da igreja papal, também queriam a reforma das doutrinas da igreja, que séculos de tradição haviam desfigurado. Desejavam substituir todo o reino da justificação pelas obras, pela justificação pela fé; da tradição, pelas Escrituras; e o clero especial e a hierarquia papal, pelo sacerdócio dos fiéis. Quando, na controvérsia de Leipzig (1519), Martinho Lutero convenceu-se de que o papa e os concílios não eram infalíveis, mas podiam errar, tornou-se herético aos olhos da igreja.2 Zurique presenciou desenvolvimento parecido. Huldreich Zwínglio, que pôs em dúvida a palavra e a obra da Igreja Romana e pregou contra ela, foi estigmatizado como herético.
Contudo, não se passaram muitos anos sem que encontremos alguns dos seguidores de Lutero e Zwínglio sendo considerados heréticos por seus companheiros de reforma, porque divergiam em questões fundamentais. Alguns desses homens tinham idéias completamente revolucionárias. Thomas Müntzer, por exemplo, queria mudar radicalmente a igreja e a sociedade, e estava querendo usar a força para isso.3 Os müntzeritas, um grupo anabatista radical, batalhavam para assegurar e defender sua ‘‘Nova Jerusalém”, a cidade de Munster na Westfália, que eles criam deveria tornar-se o centro dos 1000 anos de paz aqui na Terra.
A maioria dos anabatistas não tinha este espírito revolucionário. Na verdade, muitos deles eram pacíficos, rejeitando mesmo toda participação no conflito. Alguns eram pacifistas e criam na não-resistência.4 Um movimento não deveria ser julgado pelos excessos de alguns. Antes, deveria ser avaliado pelos ensinamentos e práticas dos melhores dos seus defensores.
Infelizmente, porém, principalmente por causa dos excessos, os grandes reformadores rejeitaram como radicais ou fanáticos, todos aqueles que não concordavam com eles.5 Lutero, Zwínglio e Calvino não faziam distinção entre os vários outros grupos e movimentos que existiam lado a lado com o seus.
O movimento anabatista verdadeiro e pacífico começou quando certos seguidores de Zwínglio concluíram que ele não havia reformado totalmente a igreja. Eles queriam uma igreja pura, que consistisse de pessoas que se tivessem arrependido de sua antiga maneira de viver e que estivessem desejosas de se unir voluntariamente a uma congregação. Apenas os crentes podiam unir-se a uma igreja assim. Por isso os anabatistas rejeitavam o batismo de criança. Zwínglio, por outro lado, estava trabalhando no sentido de reformar toda a nação. Ele desejava estabelecer uma espécie de ‘‘Israel Alpino” que incluiria todos aqueles que aí vivessem. Dentre os seguidores de Zwínglio, os que desejavam uma reforma mais voluntária e completa mantiveram discussões com o reformador durante 1523 e 1524, mas essas discussões não terminaram em acordo. O rompimento foi inevitável. Os batismos em Zurique e arredores continuaram em 1525, e a partir daí o movimento se espalhou em todas as direções.
O QUE CRÊEM OS ANABATISTAS?
Anabatista era a pessoa que havia sido batizada de novo, como crente. Os que praticavam o batismo dos crentes não chamavam a si mesmos de anabatistas. Antes, eram os Católicos Romanos, os Luteranos, os Zwinglianos e os Calvinistas quem lhes davam este nome. Os anabatistas se chamavam cristãos ou irmãos. Para eles, o batismo dos crentes não era um rebatismo, mas o batismo apropriado.
Os anabatistas não eram um grupo homogêneo; muitas vezes cada líder tinha sua própria compreensão e se mantinha em suas convicções particulares. Contudo, um certo grau de fé comum os mantinha unidos.
Em 1527 alguns dos anabatistas se reuniram em Schleitheim, no cantão suíço de Schaffhausen, e concordaram em sete pontos básicos.6 Esses pontos indicam não só as crenças que eles defendiam em comum, como também, em certo grau, pontos nos quais eles divergiam dos outros reformadores.
O primeiro artigo referia-se ao batismo. Os anabatistas concordavam em que apenas aqueles que cressem, que se tivessem arrependido e estivessem desejosos de viver uma vida de discipulado ativa, deviam ser batizados. Isto excluía todo batismo de criança.
O segundo artigo dizia respeito à condenação. Os anabatistas criam que as pessoas não eram perfeitas após decidirem seguir a Jesus, e que um crente por certo poderia cair em pecado. Criam que nesse caso, como Jesus Cristo mesmo salientou (S. Mat. 18), a igreja devia administrar a disciplina.
O terceiro artigo descrevia sua compreensão da Ceia do Senhor. Eles criam que se celebrava a Ceia do Senhor em memória do corpo partido de Cristo. Discordavam da idéia Católica Romana da Missa: que a Missa é um sacrifício, que a liturgia latina deve ser usada em conexão com a Missa e que a Missa envolve a transubstanciação — a ministração sacerdotal que transforma o pão e o vinho no corpo e sangue reais de Cristo. Criam também que Lutero errou ao realçar demais a presença corpórea de Cristo nesses elementos.
O quarto artigo expunha seu entendimento de que o crente deve separar-se do mal e da maldade deste mundo. Para eles isto significava um afastamento de “Babilônia” e “Egito terreno”, sob cuja designação incluíam: “todas as obras papistas e antipapistas e os serviços da igreja, reuniões e freqüência à igreja, à tabernas, assuntos cívicos”, e assim por diante.
O artigo cinco indicava que os pastores devem ser homens de boa reputação. Deviam admoestar e ensinar, advertir e disciplinar, administrar a Ceia do Senhor e cuidar dos membros da igreja. Cada pastor de-via ser sustentado pela igreja que o havia escolhido.
O sexto artigo revelava que esses primeiros anabatistas criam que, ao disciplinarem, os cristãos não deviam ir além da aplicação da pena — em outras palavras, excomungar pessoas de sua congregação. Opunham-se ao uso da espada contra os membros errantes. Opunham-se à punição capital, também, mesmo em assuntos cíveis. O artigo mostrava também quão difícil é para o cristão servir como magistrado.
O artigo sete tinha que ver com o juramento. Os anabatistas criam que Cristo proibiu todo juramento ou exigência de juramento. A palavra do cristão, sim ou não, deve ser suficiente.
Desse início, o anabatismo se espalhou pela Europa Ocidental. Seus adeptos estavam concentrados especialmente na parte norte da Suíça, sul da Alemanha, em torno de Strassburg, da Holanda, Morávia e Silésia (Polônia atual). Surgem, porém, cada vez mais evidências de que o anabatismo possuía seguidores também em outros lugares, como a Alemanha central, especialmente Hesse e Turíngia. E encontramos evidência de congregações no norte da Alemanha (em Emden, Hamburgo, Glückstadt) e ao longo do mar Báltico (em Lübeck, Vismar, Danzig, Elbing, Kõnigsberg, e outros lugares). Após a Reforma, os anabatistas espalharam-se pela Romênia e Rússia; e finalmente, por causa de perseguição constante, muitos emigraram para a América.
OS REFORMADORES TORNAM-SE PERSEGUIDORES
Após a persuasão particular de Zwínglio e a controvérsia de 1525 não terem produzido nenhum resultado, a magistratura de Zurique saiu a campo contra os anabatistas. Eles expediram uma ordem para que os bebês fossem batizados como no passado, e que os pais que se recusassem a permitir que seus filhos fossem batizados deixassem a cidade e o cantão. Mas os anabatistas não estavam querendo deixar. Logo o primeiro foi preso. Um lema do dia expressou sua sorte com vampiresco humor: “Aquele que mergulha será mergulhado — por afogamento.”
Félix Mantz, o erudito hebreu em cuja casa se realizara o primeiro batismo, foi a primeira vítima. Em 1527 foi ele amarrado, levado em um barco até o rio Limmat, perto do lago Zurique, e nele lançado. Conrad Grebel escapou de uma sorte semelhante por ter morrido de morte natural em 1526. Balthasar Hubmaier, o primeiro anabatista líder que efetuou o batismo de 300 outras pessoas logo após seu próprio batismo, foi queimado no poste em Viena em 1528. Três dias depois sua fiel esposa foi afogada no Danúbio. Georg Blaurock, o antigo sacerdote e o primeiro a batizar-se, morreu no poste em 1529.
Incontáveis outros na Alemanha e Áustria, tiveram sorte semelhante. A Dieta de Spira (1529) tornou claro que todo anabatista, ou pessoa rebatizada, devia morrer.7 Muitos arquivos atestam o terrível tratamento dispensado a pessoas que não queriam seguir nem a tradição romana, nem líderes como Lutero, Zwínglio e Calvino, mas apenas Cristo e sua consciência, instruídos pela Palavra de Deus.
A princípio Lutero queria enfrentar os heréticos apenas com a Palavra; todavia, depois de 1528, e princípalmente depois de 1530, ele achava que os heréticos deviam ser punidos pelas autoridades civis.8 Melanchton, o mais chegado dos colaboradores de Lutero, concordava até com a pena de morte para os heréticos. Numa carta a Micônio (1530), escreveu: “Com respeito àqueles que realmente não agitam, mas ainda representam, ‘artigos’ blasfemos (e o anabatismo seria um tal artigo blasfemo), minha opinião é que as autoridades são obrigadas a executá-los.”9
Muitos outros reformadores tomaram também essa atitude. Os poderes civis, que antes estavam interessados na pacificação interna e que estavam receosos de qualquer novo movimento, tinham o respaldo dos líderes temporais e teológicos em favor de seus esforços para estigmatizar os anabatistas.
Como movimento, o anabatismo era mais ou menos frustrado pela perseguição severa. Seus membros eram dispersados, mortos os seus líderes. Mas o sangue dos mártires jamais é derramado em vão. Embora quase banido, não foi totalmente destruído. O movimento anabatista reviveu mais tarde sob a liderança capacitada de Menno Simons, derivado de quem os Menonitas Anabatistas receberam o nome. Os menonitas, que ainda têm congregações em muitas partes do mundo, continuam a testificar das convicções que os primeiros anabatistas defendiam como verdades preciosas.10
Mais importante ainda, no começo do século XVII (1607-1608) um grupo de não-conformistas inglês teve que abandonar a Inglaterra por causa de perseguição ali. Eles foram para Amsterdã e apoiaram os menonitas. Indubitavelmente, através da influência desses menonitas holandeses, esse grupo inglês aceitou o batismo dos crentes como um ensinamento bíblico. Em 1611 ou 1612, sob a liderança de Thomas Helwys, alguns desse grupo de refugiados retornou à Inglaterra. Eles podem ser considerados como a primeira igreja batista em solo inglês.11 E desse pequeno início o movimento batista se espalhou para todo o mundo, levando com ele a crença de que apenas os que crêem devem ser batizados. A igreja adventista do sétimo dia permanece nessa longa linha de tradição referente ao batismo, uma tradição que encontra sua autoridade máxima na palavra e exemplo da igreja apostólica.
RICHARD MÜLLER, doutor em Teologia e pastor na Associação Dinamarquesa Ocidental dos Adventistas
Referências:
1. Nos últimos 30 anos, um bom número de livros foi escrito sobre os anabatistas. Ver, por exemplo, C. Henry Smith, The Story of the Mennotites, 4 * edição, revista e aumentada por C Krahn (Newton, Kans.: Faith & Life Press. 1957); H. Penner, Weltweite Bruderschaft: Em Mennotitisches Geschichtsbuch, 2 Aufl. (Karrlsruhe, 1960); William R Estep, The Anabaptist Story (Grand Rapids: Wm. B. Eerdmans Pub. Co., 1963).
2. J. Schwutak, Grosskirche und Sekte: Eine Studie zum Selbstverstandnis der Sekete (Hamburgo. 1962), págs. 68 em diante.
3. Ver, e.g., Walter Elliger, Aussenseiter der Reformation: Thomas Müntzer (Gottingen, 1975)
4. Isto é claramente expresso em uma carta escrita em 1524 pelo último lider anabatista Conrad Grebel e amigos a Thomas Müntzer. Essa carta pode ser encontrada em G. H. Williams, ed., “Spiritual and Anabaptist Writers”, Documents lllustrative of the Radical Reformation, in The Library of Christian Classic, (London, 1947), vol. XXV, págs. 73 em diante.
5. Uma demorada consideração desse problema pode ser encontrada em John S. Oyer, Lutheran Reformers Against Anabaptism: Luther, Melanchthon, and Menius and the Anabaptists in Central Germany (The Hague, 1964).
6. John H. Leith, ed.. Creeds of the Churches: A Reader in Christian Doctrine From the Bible to the Present (Atlanta: John Knox Press. 1973), págs. 28 em diante.
7. Philip Schaff, vol. VIII, History of the Christian Church Modern Christianity: The Swiss Reformation. (Grand Rapids Wm. B. Eerdmans Pub. Co., 1910), pág. 84 Ver também H. Boehmer, ed., Urkunder zur Geschichte des Bauernkrieges und der Wiedrtäufer (Bonn, 1921); G Bossert, Quellen zur Geschichte der Wiedertaufer I, Herzogtum Wurthemberg (Leipzig. 1930); G. Franz ed., Wiedertauferakten, 1527-1626 (Marburg, 1951); Sedwestdeutschland und Hessen, 1525-1618 Tübingen. 1957); R. Wolkan, Geschichtsbuch der Hutterischen Burder (Vienna. 1923).
8. Schwitel, pág. 75. Ele se refere a Lutero, Weimarer Ausgabe, vol. 31, sec. 1, págs 208 em diante.
9 Corpus Reformatorum, vol. II, págs 17 e 18. Citado de Schwital, pág. 78
10. Sobre a vida de obra de Menno Simons, ver The Mennonite Encyclopedia, (Scottdale, Pa.: Herlad Press, 1959) vol. III, págs. 577 em diante.
11. R. G. Torbet, A History of the Baptists, rev. ed, (London, 1966), págs 24 e 25. Os anabatistas continentais já se encontravam na Inglaterra antes de meados do século XVI, mas nunca tiveram muitos seguidores ali, possivelmente por serem considerados co