No livro do Apocalipse, na tradução bíblica de João Ferreira de Almeida e segundo a edição Revista e Atualizada, está escrito: “Vi novo céu e nova Terra, pois o primeiro céu e a primeira Terra passaram, e o mar já não existe. Vi também a cidade santa, a nova Jerusalém, que descia do Céu, da parte de Deus, ataviada como noiva adornada para o seu esposo” (Apoc. 21:1 e 2).
Esse texto é uma das mais lindas declarações que encontramos na Palavra de Deus, e fala de uma das mais doces esperanças do cristão. Entretanto, ela apresenta um problema que pode confundir alguns estudantes das Escrituras. Viu João, realmente, a cidade no momento em que ela estava descendo do Céu? Como adventistas do sétimo dia, nossa posição doutrinária é a de que, no tocante ao milênio e eventos a ele relacionados, devemos seguir a ordem cronológica delineada em Apocalipse 19, 20 e 21.
Assim, temos, como eventos que marcam o início do milênio, a volta de Jesus e a morte dos ímpios encontrados vivos nessa ocasião (19:11:21), a prisão de Satanás (20:1 e 2) e a primeira ressurreição (vs. 4-6). Durante o milênio, os ímpios mortos permanecem nos sepulcros (v. 5), Satanás continua preso (v. 2), os santos julgam e reinam com Cristo, no Céu (v. 4).
No final do milênio, os ímpios ressuscitam (v. 5), Satanás é solto de sua prisão e sai a enganar as nações (vs. 7 e 8). A Nova Jerusalém já terá descido do Céu, pois os santos estão dentro dela e os ímpios tentam atacá-la (v. 9). Porém desce fogo do Céu e os consome, episódio este que é descrito também como o lago de fogo (vs. 9 e 10). Entretanto, antes que os ímpios sejam consumidos, enfrentam o julgamento, detalhado nos versos 11-15 de Apocalipse 20.
Após o lago de fogo vem a descrição, em Apocalipse 21, do novo céu e da nova Terra. E aqui tem início o problema de interpretação relacionado com a descida da nova Jerusalém. Depois de João ter visto o no-vo céu e a nova Terra, o texto declara que o apóstolo vê descer a cidade santa. Ora, se essa cidade desce depois de terem sido criados o novo céu e a nova Terra, como pode ter descido antes do lago de fogo e ter sofrido um ataque por parte dos ímpios?
Não faz muito tempo, ao discutir o assunto do milênio com alguém que defende uma posição doutrinária diferente, fiquei pensando em como iria apresentar-lhe esse ponto referente à Nova Jerusalém. Voltei-me então para o idioma grego, em que o verso foi escrito originalmente, a fim de verificar se a tradução em apreço é realmente a mais correta ou se existe margem para outra interpretação. Devo dizer que o assunto também foi submetido à avaliação de vários professores do idioma grego.
A questão fundamental é a seguinte: João viu a cidade justamente no momento em que ela estava descendo? A expressão grega usada em Apocalipse 21:2 é Tem hagian lerousalem kainen eidon katabainousan ek tou Ouranou apo tou Theou. É usada três vezes no livro do Apocalipse. relacionada à Nova Jerusalém: Apoc. 3:12; 21:2 e 21:10.
É importante notar que, nas três passagens, a forma verbal usada é exatamente a mesma, ou seja, um particípio presente feminino: Katabainousa(n), do verbo Katabainw (descer). Porém, em Apocalipse 3:12, a expressão é traduzida como “a Nova Jerusalém que desce do Céu”, enquanto que no capítulo 21:2 e 10 é traduzida como “a (Nova) Jerusalém que descia do Céu”. E isso dá a idéia de um evento que estava em processo, naquele momento.
Embora em todas as passagens nas quais é usada essa forma verbal no Apocalipse seja possível (mas não imperioso) que a cidade seja vista descendo, isso definitivamente é impossível na passagem de Apocalipse 3:12: “Ao vencedor, ..: gravarei também sobre ele o nome do Meu Deus, e a nova Jerusalém que desce do Céu, vinda da parte do Meu Deus, e o Meu novo nome.” Trata-se aqui de uma promessa de Jesus para o futuro, e não de um evento que João esteja presenciando em visão. Ou seja, em Apocalipse 3:12, João nem mesmo está vendo a cidade, muito menos vendo-a descer. Aqui, a expressão katabainousa ek tou Ouranou está funcionando adjetivamente, limitando kaines lerousalem. Em outras palavras, katabainousa ek tou Ouranou é uma qualidade que a cidade possui: ela é uma cidade do tipo que desce do Céu. Portanto, o significado desse particípio adjetival é simplesmente “a nova Jerusalém vinda (descida) do Céu, da parte de Deus”. Essa seria a tradução mais correta e mais fiel ao original.
Assim, vemos que, uma vez que a forma verbal é exatamente a mesma em Apocalipse 3:12; 21:2 e 21:10, não há base nenhuma para traduzir essas passagens de maneira diferente. O que ocorreu foi uma inferência da parte dos tradutores, no sentido de que João, no capítulo 21:2 e 10, estivesse vendo a cidade descer o que absolutamente não pode ser comprovado. Ao contrário, o texto dá margem para entendermos que, quando o apóstolo viu a cidade, ela já estava no local. Por isso foi necessário que o anjo o levasse a “uma grande e elevada montanha” (v. 10), a fim de que ele tivesse uma visão panorâmica da cidade e pudesse enxergar dentro dos seus muros.
Notemos que, quando o Novo Testamento fala da cidade santa, há um esforço deliberado para distingui-la da Jerusalém terrestre. Paulo tem suas próprias expressões para descrever a cidade: “a Jerusalém lá de cima” (Gál. 4:26), “a cidade do Deus vivo, a Jerusalém celestial” (Heb. 12:22).
Em minha opinião, katabainousa(n) ek Ouranou apo tou Theou é simplesmente a expressão que João cunhou para descrever a cidade como a nova Jerusalém “vinda do Céu, da parte de Deus”.
ROSÂNGELA LIRA, formada em Teologia, esposa de pastor, reside em Vitória, Associação Espírito-Santense, Brasil