Os adventistas do sétimo dia estão experimentando uma crise de identidade. Ironicamente a presente confusão está em direto contraste com a fé dos seus pioneiros”1, escreveu Kenneth R. Samples em um artigo na revista Christianity Today. Ele associa essa tal crise de identidade a uma ‘‘controvérsia doutrinária” a qual ‘‘pode ser traçada por sua interação com evangélicos nos anos 50.”

A interação aqui mencionada é uma referência às ‘‘reuniões extensivas” de líderes adventistas com Walter Martin, que posteriormente escreveu The Truth About Seventh-Day Adventisms (A Verdade Sobre o Adventismo do Sétimo Dia), e Donald Grey Barnhouse, então editor da revista Eternity. Esse diálogo “estabeleceu uma abertura sem precedentes entre adventistas e evangélicos”.

Samples crê que essa conversa conduziu a um movimento evangélico dentro da Igreja Adventista do Sétimo Dia. O maior fator, característico dessa tendência é a crença que a justificação pela fé consiste de justificação propriamente dita, seguindo-se como fruto a santificação. A implicação é óbvia: uma visão dessa natureza não conteve dentro do adventismo antigo a influência de Martin e Barnhouse.

O artigo continua sugerindo que a “crise” no adventismo emergiu nos anos 80, com o surgimento dos “adventistas evangélicos” dentre os quais o mais proeminente foi Desmond Ford. Dessa forma, ele cria a impressão que o adventismo nos anos 80 purgou-se daqueles que mantinham um intransigente padrão de “justificação pela fé somente”.

Voltando a história

Os fatos, no entanto, são diferentes. Os adventistas do sétimo dia, desde há muito, crêem e pregam a mensagem de justificação pela fé. Um primeiro exemplo é a publicação de Christ Our Righteousness (Cristo Nossa Justiça), em 1929, por Arthur Daniells, ex-presidente da Associação Geral. Numa simples e descomplicada linguagem, Daniells articula a doutrina da justificação pela fé somente: “É o evangelho que revela ao homem a perfeita justiça de Deus. O evangelho também revela que a maneira pela qual essa justiça deve ser obtida pelo homem pecador, é pela fé.”2 O pecador, “rendido, arrependido, confessa seus pecados, e pela fé clama a Cristo como seu Salvador. No momento em que isso é feito, ele é aceito como um filho de Deus. Seus pecados todos são perdoados, sua dívida cancelada; e ele é considerado justo, aprovado e justificado diante da lei divina. … Isto é justificação pela fé.”3 Daniells torna claro que “o conhecimento do pecado, não a libertação do pecado vem pela lei.“Essa maravilhosa verdade pode ser perfeitamente clara para cada crente; e deve tornar-se uma experiência pessoal.”5

Muito antes de Daniells, Ellen White já dizia que a mensagem da justificação pela fé: 1) foi enviada pelo Senhor especificamente ao povo adventista em 1888, num tempo em que muitos deles tinham perdido a visão cristocêntrica; 2) é a mensagem para ser dada a todo o mundo; 3) é a mensagem do terceiro anjo a qual deve ser transmitida com grande voz, resultando no derramamento do Espírito Santo; e 4) guiará à obediência a todos os mandamentos de Deus.6

A pressão crítica exercida pelos evangélicos tem sido uma tentação para alguns adventistas abandonarem parte da mensagem de justificação pela fé, defendida por esta Igreja há mais de cem anos. O ponto de atrito é justamente o quarto item relacionado acima por Ellen White: a evidência que a justificação pela fé foi recebida é a obediência a todos os mandamentos.

A questão a ser colocada agora é se alguns adventistas têm ouvido tão atenta e confiantemente o criticismo evangélico, ao ponto de correrem o perigo de perder a visão do que aconteceu historicamente em 1888, e de nossa missão.

Crise evangélica

Um dos perigos para o adventismo hoje vem da crise de identidade e controvérsia doutrinária que parece estar minando a própria comunidade evangélica contemporânea. Essa crise é revelada nos escritos de dois de seus principais teólogos.

John F. MacArthur Júnior, um proeminente pastor e expositor bíblico, fala da erosão do evangelho entre evangélicos: “Pecadores hoje ouvem não apenas que Cristo os recebe como estão, mas também que Ele os deixa como estão! ”7 “Multidões se aproximam de Cristo naqueles termos. … Decidem-se por um evangelho corrompido.”8 O que está ausente na popular compreensão evangélica de fé é a “determinação para obedecer a verdade”.9

Evidentemente há pregadores evangélicos afirmando que tudo o que seus ouvintes devem fazer é crer nos fatos a respeito de Cristo, independentemente de obedecerem ou não. E mais, salvação não resulta necessariamente em mudança de comportamento. “O ensinamento predominante no mundo evangélico hoje é que os cristãos estão livres da observância de qualquer lei moral.”10

Donald G. Bloesch, professor de Teologia Sistemática no Seminário Teológico de Dubuque, reconhece que “a igreja contemporânea se encontra em um estado de fermentação teológica”.11 Ele propõe uma “teologia de devoção evangélica” a Cristo. O contraste dessa devoção é duplo: 1) o crente tornando-se justo; e 2) vida vitoriosa. “Devoção a Jesus Cristo separa-nos do mundo em seus pecados ao tempo em que nos identifica com o mundo em seus sofrimentos.”12 “Santificação deve seguir-se à justificação, desde que Deus torna justo aqueles aos quais Ele declara justos.”13 E, “não é tanto à cruz de Cristo, mas ao poder do Cristo ressurreto, o Espírito de Cristo, que necessitamos dar especial atenção hoje”.14 Ele também fala do reino de Deus, como um “remanescente de fiéis”,15 e diz que “justificação deve ser completada em santificação, para nosso benefício”.16

O preço do discipulado

Assim a minimização da santificação é um problema entre os evangélicos hoje, com seu inevitável impacto sobre a ética e a moralidade. Dietrich Bonhoeffer falou desse problema a uma igreja que pregara sobre justificação pela fé durante 400 anos: “Graça barata significa justificação do pecado sem a justificação do pecador.”17 Escrevendo sobre a famosa descoberta de Lutero, Bonhoeffer disse: “É um fatal desconhecimento da ação de Lutero supor que sua redescoberta do evangelho da pura graça, oferece uma dispensação geral da obediência aos mandamentos de Jesus, ou que a grande descoberta da Reforma foi que a graça perdoadora de Deus automaticamente confere ao pecador justificação e santificação. … Não foi a justificação do pecado, mas a justificação do pecador que tirou Lutero de seu claustro para o mundo…. Na profundidade de sua miséria, Lutero agarrou-se pela fé ao incondicional perdão para todos os seus pecados. Essa experiência ensinou-lhe que a graça havia lhe custado a própria vida, e deveria ser assim dia a dia. Longe de dispensá-lo do discipulado, essa graça somente tornou-o um mais zeloso discípulo. Quando falava de graça, Lutero sempre deixava implícito, como um corolário, o custo de sua própria vida, a vida que a princípio não estava submissa à absoluta obediência a Cristo. Somente assim ele poderia falar de graça. Lutero disse que somente a graça pode salvar; seus seguidores tomaram sua doutrina e a repetem palavra por palavra. Mas esquecem-se do invariável corolário, a obrigação do discipulado. … Lutero sempre falava como alguém que fora levado a seguir irrestritamente a Cristo, pela graça.”19

Notemos o relacionamento entre graça e obediência, na compreensão de Lutero, segundo Bonhoeffer. A ortodoxia dos seguidores de Lutero relativa à justificação, ‘‘representa o fim e a destruição da Reforma como a revelação da magnificente graça de Deus sobre a Terra. A justificação do pecador no mundo, degenerou-se em justificação do pecado e o mundo. A magnificente graça tornou-se uma graça barata sem obediência”.19

Em outras palavras, há um abandono da essência da Reforma, manifestado hoje pela artificiosa focalização de tal interesse como ecumenicidade, resolução de problemas sociais, e uma interpretação social e política do Reino de Deus sobre a Terra. Esqueceram-se, porventura, os seguidores de Lutero, dos objetivos da Reforma? Se esse é o caso, minha firme convicção é — e a história confirma —, que a Igreja Adventista do Sétimo Dia foi chamada para recuperar e restaurar a ênfase da Reforma à qual Bonhoeffer se refere como a magnificente graça. Isso não é arrogância ou exclusivismo. Simplesmente é o reconhecimento da realidade.

Graça barata e crença fácil

O cristianismo evangélico contemporâneo, crítico da Igreja Adventista do Sétimo Dia, uniu em sua pregação graça barata e facilidade de crença. Trata-se de um tipo de evangelho que não vê a obediência cristã como parte da fé e salvação. Segundo essa visão, qualquer consideração em torno da santificação e santidade é legalismo.

Genuína fé, entretanto, sempre inclui a necessidade de obedecer. Sem obediência, a mensagem de salvação é incompleta e corrompida. De acordo com Paulo, o evangelho é para ser obedecido (Rom. 6:1; I Tess. 1:8). João Batista ensinou obediência a Jesus; (para ele fé e obediência são sinônimos — S. João 3:36). A igreja primitiva viu claramente uma harmoniosa combinação de fé e obediência (Atos 6:7). O capítulo 11 de Hebreus não faz separação entre fé e obediência. Toda a Bíblia mostra a obediência como prova de fé, e

a desobediência como prova de descrença. Um dos professores que tive, costumava dizer que “boas obras não salvam mas sua ausência condena”.

MacArthur disse: “Jesus caracteriza a verdadeira justificação — aquela que provém da fé (Rom. 10:6) — como obediência não exatamente à letra da lei, mas ao espírito da lei (S. Mat. 5:21-48). … No Sermão da Montanha, Ele resumiu a real medida da justiça: ‘Portanto, sede vós perfeitos, como perfeito é vosso Pai que está no Céu’” (S. Mat. 5:48).20

Em virtude de que os padrões de Deus estão sempre muito além daquilo que o ser humano pode alcançar, Ele provê fé para crer, assim como os recursos do Céu para habilitar o crente a segui-Lo estritamente em fé e obediência. Enquanto indivíduos querem conhecer as bênçãos da salvação, não querem necessariamente conhecer ou submeter-se à autoridade e ao domínio de Cristo. Jesus como Salvador, sim. Jesus como Senhor, não. Mas é próprio da natureza filial obedecer. Jesus foi obediente à vontade de Seu Pai, e os cristãos não podem ser diferentes.

Alguns evangélicos hoje poderiam dizer que enquanto cada crente é justificado, nem todo crente será santificado; que justificação não resulta necessariamente em mudança de comportamento. Mas essa é uma incorreta separação entre justificação e santificação. É uma falsa dicotomia. A verdade é que cada pecador a

quem Deus justifica, Ele também santifica. Isso quer dizer que verdadeira salvação resulta em vida de obediência.

Aqueles a quem Deus declara justos (justiça imputada), Ele torna justos (justiça repartida). Enquanto justificação e santificação são apresentadas como conceitos teológicos diferentes, são, na realidade, uma experiência unida. Uma pessoa não pode ter uma sem a outra. Somente os que são justificados podem ser santificados; somente os que estão sendo santificados podem corretamente clamar pela justificação. O crente certamente não é justificado porque está sendo santificado, mas ninguém pode ser justificado sem estar sendo santificado. “Nem todo o que Me diz: Senhor, Senhor! entrará no reino do Céu, mas só o que faz a vontade de Meu Pai que está no Céu’’ (S. Mat. 7:21).

Voltando a Daniells, entendemos que sua compreensão da justiça de Deus é clara. Ele cria que a justiça através da fé resulta em obediência na qual o novo crente “guarda os mandamentos de Deus. Experimenta a maravilhosa transformação de transgressor da lei para guardador de seus retos preceitos. Essa maravilhosa mudança pode ser operada somente através da graça e do poder de Deus na vida daqueles que fazem de Cristo seu substituto, seu redentor. Portanto, deles se diz que ‘têm a fé de Jesus”’.21

Conhecendo e experimentando as bênçãos da justificação — regeneração, novo nascimento, perdão, etc. —, “eles devem conhecer por sua vitoriosa experiência, que estão sendo guardados pela ‘fé de Jesus’, e que por essa fé, estão capacitados a observar os mandamentos de Deus”.22

Esta é a mensagem de 1888: justificação pela fé torna possível, pela graça de Deus, a observância dos mandamentos. O que alguns evangélicos desejam que os adventistas abandonem é sua crença no poder da graça para transformar o pecador em um fiel e obediente filho de Deus (Efés. 1:18-23; 3:14-21). É essa parte da compreensão adventista a respeito da justificação pela fé que transtorna alguns evangélicos. Ironicamente, no entanto, é justamente esse conceito que tem motivado outros pensadores evangélicos e pregadores como MacArthur e Bloesch a reafirmarem a mensagem completa da Reforma.

Alguns evangélicos são preparados para relegarem os adventistas do sétimo dia a um plano inferior, se nós persistimos na manutenção do equilíbrio entre justificação e santificação. Samples menciona: “nos anos setenta o adventismo estava em uma encruzilhada: deveria tornar-se completamente evangélico? Ou deveria retornar ao tradicionalismo sectário?” A implicação é óbvia. Para o adventismo, tornar-se “completamente” evangélico requer o abandono de sua compreensão da interdependência entre justificação e santificação e a opção pela visão evangélica contemporânea. A recusa pode levar ao risco de ser classificado como sectário.

Talvez poderíamos desafiar os evangélicos com algumas poucas questões. Têm eles se afastado tanto do cristianismo básico que já se tornaram incapazes de reconhecer a exatidão bíblica da compreensão adventista sobre justificação pela fé? Não seria um caso de deformação teológica o fato de que eles não possam ver o equilíbrio entre justificação e santificação? Sobre qual base bíblica pode alguém conceber que um chamado para santificação seja legalismo?

A vocação adventista

George Knight corretamente afirmou que em 1888 a Igreja Adventista tomou a doutrina da justificação pela fé e colocou-a dentro da moldura de outras verdades. A doutrina da justificação pela fé com seus dois pilares — fé salvadora em Cristo, e os mandamentos de Deus —, está entre as grandes verdades do cristianismo evangélico.”23 Assim Ellen White pôde dizer que a mensagem recebida em 1888 “não era uma nova luz, mas uma antiga luz colocada onde deveria estar no contexto da mensagem do terceiro anjo”.24 ,

Essa é a mensagem que eu ouvi pregar, ser ensinada e confessada desde há vinte anos, quando ingressei em um seminário teológico adventista. Tendo servido como pastor numa igreja evangélica, eu estava ansioso para descobrir se Cristo vivia ou não no adventismo. Para minha surpresa, praticamente cada pessoa com quem eu me deparava era um evangélico adventista. Eu não conheci outro tipo.

O fundamental para o adventismo sempre foi e continua sendo a justificação pela fé. Muito da crítica ao adventismo como legalístico baseia-se na ignorância, no prejulgamento, alterando a compreensão bíblica da justificação pela fé, e demonstrando má vontade em ver o Senhorio de Cristo e a obediência cristã como essenciais componentes da salvação e do discipulado.

O desenvolvimento da crise de Apocalipse 13 é o pano de fundo para o alto clamor do terceiro anjo do capítulo 14. Por conseguinte, a mensagem enviada em 1888 não pode ser considerada limitada. Deus usou a Igreja Adventista para restaurar essa preciosa mensagem e enviá-la no contexto de outras importantes verdades como o Sábado, o Santuário, o retorno de Cristo, o Juízo, conforme Daniel 8 e Apocalipse 14. Outrossim, Deus encarregou a Igreja Adventista para anunciar esse ‘‘evangelho eterno” em sua inteireza a todo o mundo. Destarte, a missão do adventismo é mais do que identificar-se com a cristandade básica. É proclamar a todo o mundo uma equilibrada visão de lei e do evangelho, como parte da justificação pela fé.

Se porventura estamos, como Igreja, enfrentando alguma crise de identidade, isso se deve ao fato de havermos prestado tanta atenção às críticas evangélicas que parece estarmos começando a acreditar nelas. O que é necessário para a restauração de nossa identidade, é um reestudo e um reavivamento da mensagem bíblica que através dos tempos sempre fez deste movimento uma força espiritual no mundo.

1. Kenneth R. Samples, “The Recent Truth About Seventh-Day Adventism”, Christianity Today, 5 de fevereiro, 1990, pág. 19.

2. A. G. Daniells, Christ Our Righteousness, Washington D. C., R&H Publishing Association, 1929, pág. 21.

3. Ibid., pág. 23.

4. Ibid., pág. 22.

5. Ibid., pág. 29.

6. Ellen G. White, Testemunhos Para Ministros, págs. 91 e 92.

7. John F. MacArthur, The Gospel According To Jesus, Grand Rapids, Zondervan, 1988, pág. 169.

8. Ibid., pág. 170.

9. Ibid., pág. 173.

10. Ibid., pág. 190.

11. Donald G. Bloesch, The Crisis of Piety, Colorado Springs, Helmers and Howard, 1988, pág. 7.

12. Ibid., pág. 19.

13. Ibid., pág. 16.

14. Ibid., pág. 17.

15. Ibid.

16. Ibid., pág. 19.

17. Dietrich Bonhoeffer, The Cost of Discipleship, Nova Iorque, The Macmillan Co., 1957, pág. 37.

18. Ibid., pág. 42.

19. Ibid., págs. 43 e 44.

20. MacArthur, pág. 177.

21. Daniells, pág. 83.

22. Ibid., pág. 85.

23. George Knight, Angry Saints, Hagerstown, Md R&H, 1989, pág. 128.

24. Ellen G. White, Mensagens Escolhidas, vol. 3, pág. 168.

C. RAYMOND HOLMES, Professor na Andrews University