Este artigo, na verdade, constitui uma reunião de idéias esparsas, sem nenhuma pretensão de ser um trabalho científico rigorosamente acadêmico. São algumas reflexões fragmentárias, escritas como contribuição ao diálogo sobre o verdadeiro papel do teólogo no movimento adventista e onde estaria, de modo mais exato, sua esfera de ação. Onde e por quem deve ser formulada a teologia? Nos centros universitários, pelos acadêmicos pós-graduados? Ou nos escritórios, pelos departamentais e administradores?
E quanto ao membro leigo, ou o pastor distrital? Têm eles algum papel na caminhada teológica da Igreja? São perguntas delicadas, e nossas reflexões deverão valer para o leitor apenas uma contribuição meditativa.
A despeito de qualquer má compreensão, as palavras método e metodologia não são sinônimas. Por esta última entenda-se o conjunto de técnicas de trabalho utilizadas nas pesquisas científicas de qualquer área acadêmica. Já o método reflete o modo de pensar a fé, quer seja nos moldes acadêmicos ou não. A eurística, que é o aprendizado e desenvolvimento sobre como se apresenta uma pesquisa, é o que faz a diferença; pois, embora o rigor científico esteja obrigatoriamente na metodologia, pode estar ou não vinculado ao método. Sendo assim, podemos seguramente falar de método teológico no mais leigo estágio da fé, ainda que esse não possua sequer uma quantidade mínima de metodologia de pesquisa.
Dentro do contexto adventista brasileiro, percebe-se que a teologia ainda é superestimada a toda e qualquer área acadêmica. Fora, porém, desse ambiente religioso, ela se sente até mesmo inferiorizada diante de outras ciências mais respeitadas e divulgadas no chamado mundo secular. O cerne da tensão talvez esteja em que a teologia, diferente de outras ciências, constitui um saber irredutível, onde uma nova luz nunca deve desmerecer ou negar a luz anterior. É um saber progressivo, mas não necessariamente “experimental” como exigem as normas do moderno método científico.
Mas, racionalmente falando, também podemos questionar esta pretensa “unicidade” do saber científico que julga tudo fora de seus contornos como sendo destituído de lógica racional. Tendo uma outra maneira de representar a realidade, o método teológico deve basear-se numa fé doutrinária que tem sua própria lógica refletida na ótica universal de Deus e nem sempre nas reflexões locais e situacionistas do ser humano. Vê-se, portanto, que o mais delicado trabalho a fazer é encontrar a linha tênue que ora une, ora separa o saber teológico da fé do saber intelectual da razão e, uma vez encontrando-a, usá-la com a sabedoria do Céu.
Após a produção dos últimos livros inspirados da Bíblia, a Igreja patrística que daí se seguiu caracterizava-se basicamente pelo que se chama em latim lectio divina. Ou seja, todos refletiam de modo doutrinário e contemplativo sobre a Palavra de Deus, para dali tirar os conceitos de verdade, ética, salvação e vida comunitária. Para eles, a história era um contínuo salvífico de Deus rumo à grande vinda de Cristo, em vista da qual todos viviam e trabalhavam. Eles eram pobres e perseguidos. Não possuíam propriedades e nem mesmo cogitavam o que seria uma faculdade de teologia. Sua reflexão, portanto, centrava-se nas igrejas reunidas em casa de irmãos ou em pequenos cômodos doados por membros. A ciência secular era pensada a partir da fé, e se estavam em confronto sobre determinado ponto, a Palavra revelada deveria ter a primazia.
Mas os encontros com a filosofia grega, a crise do movimento montanista e a falsa conversão de Constantino modificaram a paisagem. Assim, a teologia que adentra os limites da Idade Média já não é tanto bíblica e eclesial, mas escolástica e aristotélica. Troca-se lectio divina pela ratio theologica. Seu local básico de reflexão deixa de ser as humildes igrejas domésticas para transferir-se às famosas escolas universais. Estabelecidas ao lado de grandes catedrais de ouro, essas escolas marcaram em definitivo o rompimento entre esse cristianismo medieval e aquele fundado por Cristo.
A Bíblia nesse tempo tornara-se quase um livro morto de conteúdo desconhecido. O estudo dominante eram as famosas Sumas Teológicas e os Comentários sobre as sentenças de outros autores. Nas universidades de Paris e Oxford, a teologia começava a desenvolver seus primeiros programas doutorais marcados por produções e defesas de teses. Seu peso, contudo, já não estava na Palavra revelada de Deus, mas nos autores que julgavam mostrar a coerência da fé de modo mais claro que a Bíblia, cujo conteúdo somente eles arvoraram poder compreender sem cair nos laços da loucura.
O resultado dessa visão racional da Idade Média foi um desastroso rompimento entre a ciência e a fé, culminando na quase aniquilação da primeira, uma vez que os governantes dominados pelo poder papal condenavam como bruxaria qualquer avanço que se pretendesse dar em sua direção. O que encontramos na Idade Média é uma profunda e compreensível revolta contra a Igreja e o poder monárquico. Abafado desde longo tempo, o grito populacional explodiu finalmente, golpeando o catolicismo com a Reforma Protestante, e na Revolução Francesa no fim do século 18.
Mas os dois movimentos, protestantismo e revolução, também eram antagônicos entre si de modo que a teologia nascida dos reformadores precisou duelar com o humanismo que então começava a dominar o mundo. Temendo o comportamento dogmático-apologético do qual ela mesma se libertara ao sair do catolicismo, a Reforma optou por ser absorvida pela modernidade sem crivar nenhum de seus novos arrazoados intelectuais. Em virtude disso, surgiu, então, o famoso lluminismo alemão, erguendo eruditos como Reimarus, Harnack e Bultmann, cuja principal contribuição foi criar uma frustrada “jesulogia” liberal que nada mais era do que o advento daqueles exercícios racionais do escolasticismo, vistos agora sob o manto de uma roupagem modernizada e mais sofisticada.
Nesse novo quadro, como ciência, a teologia se portava como pouco mais que mera teodicéia, e a fé era dominada pela especulação da filosofia hegeliana que então determinava os modos de compreensão da Palavra de Deus. Resultado: os milagres deixaram de ser milagres, a ressurreição deixou de ser histórica e o Pentateuco deixou de ser mosaico. Enfim, o trabalho de Lutero e seus companheiros estava interrompido.
A essa altura, percebe-se a necessidade histórica de um movimento teológico que retomasse as rédeas do ideal protestante, há tempos interrompido. Usando um pregador batista e as implicações de um desapontamento em massa, a providência divina faz surgir na história da teologia o movimento denominado posteriormente Igreja Adventista do Sétimo Dia. Seu objetivo era continuar a Reforma, a partir do ponto em que foi estagnada.
A problemática sobre “como não cometer os mesmos erros do passado” é por demais ampla, pelo que nos resta definir bem nossa inquirição nos moldes da ciência teológica. Nossa pergunta, portanto, seria: onde nossa teologia deve cuidar para não se tornar friamente medieval como ocorrera à teologia protestante alemã?
Eis algumas idéias:
1. Devemos cuidarem nossos programas teológicos para que nossas faculdades não se tornem um esfacelado conjunto de matérias e especializações sem nenhuma correlação entre si. O teólogo não pode se deixar confundir com um médico especialista que cuida só de ouvidos, negando-se a fazer uma cirurgia do pulmão. Não faz sentido falar-se em teólogo biblista ou teólogo sistemático, quando esses títulos se tornam uma clausura em torno de determinado tema com o total desvinculo dos demais ramos. Afinal, qual o interesse de se fazer teologia sistemática, se não for a partir da Palavra de Deus? E qual o sentido da exegese, se não objetivar a aplicabilidade pastoral?
2. Crença sem uma medida de razão é devaneio e fanatismo. Porém a razão, destituída da experiência real com o Sagrado não passa de pura especulação sem nenhum sentido. Sendo assim, o teólogo diplomado deve respeitar até a mais simples demonstração sincera de fé. E deve buscar participar da mesma experiência para que suas palavras dirigidas aos leigos sejam possuidoras de eficácia espiritual.
3. Antes de se lançar ao estudo sistemático, o teólogo adventista deve ter claro diante de si em função do que ele está pesquisando. Ou mantemos a convicção de que existe uma verdade para a qual caminhamos ou cairemos na idéia de que tudo é relativo e já não existem valores absolutos. Para se refletir teologicamente hoje, deve-se antes refletir criticamente o modo como a teologia evoluiu, observando atentamente seus encontros e desencontros com a verdade, para não se repetir em nós a apostasia que muitas vezes se seguiu. Após isso, nossa convicção máxima deve ser, como um povo, “restaurar as verdades” que a história dos homens deturpou.
4. Nossa teologia não pode ser “genitiva” como propõem certos segmentos criando temas como “teologia dos pobres”, “teologia dos negros”, “teologia da mulher”, etc. Só existe uma teologia, e essa tem de ser a partir de Cristo. Sob essa ótica podemos então falar do pobre, do negro, da mulher, observando como Jesus tratava as pessoas e imitando-Lhe o exemplo. Dentro dessa perspectiva, é preciso que se evangelize o homem de hoje com os seus problemas, mas sem perder de vista que a fé – embora não ignore os problemas existenciais – deve refletir primeiramente sobre Deus e não sobre as coisas do mundo.
5. O melhor lugar para a teologia é a igreja local, com seus problemas, dúvidas e desafios. Mas onde entrariam a faculdade e os escritórios? Esses devem ser, em conjunto, catalizadores que trazem a teologia da comunidade e a devolvem numa sistematização melhor. Nisso, as funções não devem ser vistas como estabelecidos cargos de primazia ou inferioridade em relação uns aos outros. Todos devem ser servos uns dos outros. E a teologia adventista, para ser eficaz, tem de ser construída por todos (leigos e pastores) alicerçados, evidentemente, na Palavra de Deus. Grande erro cometeu o catolicismo, por fechar o saber da fé nas mãos dos sacerdotes doutores em divindade. Igualmente a teologia liberal protestante, por demarcar sua espiritualidade nos moldes do racionalismo humanista.
É nosso entendimento que todo membro da Igreja Adventista, independente de sua formação acadêmica, deveria ser um teólogo. Afinal, o que é um teólogo senão um cristão refletindo sobre sua fé? Como um povo, é hora de refletirmos teologicamente juntos, deixando de lado o partidarismo e as tendências de ser independente da Organização escolhida por Deus. ☆
RODRIGO P. SILVA, professor na Faculdade de Pedagogia do Instituto Adventista de Ensino, Engenheiro Coelho, SP