Faz muito tempo, a erudição bíblica tem estado interessada nos assim chamados “catálogos de vicissitudes” em Paulo. Seu estudo tem contribuído principalmente para uma melhor compreensão da segunda epístola escrita aos Coríntios. O Dr. John T. Fitzgerald, professor de Teologia na Universidade de Yale, nos Estados Unidos, e autor de um comentário sobre II Coríntios, afirmou recentemente que se trata de uma epístola tão difícil de ser compreendida que “só mesmo um tolo escreveria um comentário sobre ela”.

Segundo ele, depois de Paulo ter inicialmente escrito duas cartas aos Coríntios, uma delas não preservada na Bíblia. Timóteo retorna daquela comunidade trazendo um relatório bastante negativo da situação ali encontrada. Paulo altera seu itinerário e vai até Corinto, naquela que tem sido tradicionalmente considerada “a visita dolorosa” (II Cor. 2:1). Partindo para a Macedônia, o apóstolo toma, então, a decisão de não retornar a Corinto de imediato (1:12-2:4), mas decide escrever-lhe a chamada “carta das lágrimas”, também não conservada na Bíblia, conforme 2:3, 4. 9: 7:8, e que teria, pelo menos temporariamente, resolvido as dificuldades daquela igreja, de acordo com um relatório que lhe foi apresentado por Tito (2:13; 7:5-16). Nesse ínterim, Paulo aparentemente recebe um outro relatório de Corinto, indicando que Tito havia sido excessivamente otimista em sua avaliação e isso o faz escrever a segunda carta aos Coríntios. Paulo lida com o relatório de Tito nos capítulos 1-9, e com o outro relatório nos capítulos 10-13.

Descrição

De modo geral, Paulo está muito interessado no assunto do sofrimento humano. Ele fala acerca do sofrimento de Jesus, dos padecimentos dos cristãos, da angústia da criação como um todo e, finalmente, de seus próprios sofrimentos, os quais ele apresenta sob duas formas: ou como narrativas ou como listas. Essas listas, chamadas de catálogos de vicissitudes paulinas, contribuem para um esclarecimento da situação em Corinto. Paulo inclui pelo menos sete desses catálogos em sua correspondência com a Igreja primitiva (Rom. 8:35: I Cor. 4:9-13; II Cor. 4:8 e 9: 6:4-10; 11:23-28; 12:10 e Fil. 4:12), com a possibilidade de serem incluídos mais três: II Cor. 11:19 e 20; II Tim. 2:4-6 e, mais remotamente, Heb. 10:32-34. Duas características sobressaem-se numa avaliação das listas paulinas de sofrimento: sua distribuição é heterogênea, e elas apresentam grande diversidade.

No tocante à sua heterogeneidade, como os catálogos se concentram principalmente em II Coríntios, essa disposição é bastante significativa. Quanto à sua diversidade, ela se manifesta principalmente no que diz respeito aos seguintes elementos: número gramatical, a condição de Paulo, sua estrutura e seu conteúdo. É interessante que o apóstolo ora fala na primeira pessoa do singular (II Cor. 11:23-28; 12:10; Fil.4:12), ora na primeira pessoa do plural (Rom. 8:35; I Cor. 4:9-13; II Cor.4:8 e 9: 6:4-10); ora se apresenta como apóstolo (I Cor. 4:9-13), ora como ministro (II Cor. 6:4-10; 11:23-28) e, às vezes, não identifica sua própria condição.

A estrutura dos catálogos é, às vezes, simples; isto é, constituída unicamente de vicissitudes. Outras vezes é antitética, apresentando proezas e infortúnios. O conteúdo é também um elemento de importância. Há repetições de vicissitudes, mas nenhum item ocorre em todos os catálogos, o que nos leva a crer que, de fato, o apóstolo não estava preocupado em salientar os sofrimentos específicos que havia padecido, mas estabelecer o fato inegável de que os havia padecido.

O primeiro estudioso de que se tem notícia a demonstrar interesse por esses catálogos foi Abraham Scultetus, por volta de 1620, fazendo uma comparação entre os catálogos de vicissitudes de Pseudo-Heráclides e II Cor. 11. No final do século 19. Bauer tentou provar que Paulo havia usado Sêneca como fonte de seus escritos, e tratou de estabelecer uma comparação entre ambos, com base em seus catálogos de vicissitudes.

Um pouco mais tarde, Heinrici e Weiss também se interessaram pelo problema, fazendo uma análise dos catálogos de Epicteto. A seguir, o renomado teólogo Rudolf Bultmann dedicou-se a demonstrar que o estilo de Paulo era a diatribe cínico-estóica. Para isso, ele procurou estabelecer a relação entre os catálogos de vicissitudes (Peristassen, como ele as denominou) de Paulo e a tradição segundo a qual o filósofo é aquele que superou as circunstâncias da vida, tornando-se um modelo para os outros homens. Ao comparar Paulo os escritos de Epicteto, Mussônio Rufo, Horácio e Sêneca, Bultmann pôde perceber as seguintes diferenças entres estes e aquele: os filósofos tendiam mais para o catálogo antitético. Por sua vez, Paulo inclinava-se mais para os catálogos simples; e, também, as vicissitudes paulinas eram bem diferentes das filosóficas.

Cinco teorias

A dissertação de Bultmann acabou sendo criticada por Bonhöffer, um especialista em Epicteto, que demonstrou que o catálogo de vicissitudes já era comum antes da diatribe, mesmo em Platão. Em 1983, Hodgson deu duas grandes contribuições aos estudos das vicissitudes, mostrando primeiro que “as listas de tribulações”, como ele denominou os catálogos, eram um fenômeno literário muito comum na antiguidade, e que transcendiam a limitação de um único gênero. Em segundo lugar, o principal antecedente desse fenômeno era o mito dos doze trabalhos de Hércules. Mais recentemente, Fitzgerald levantou cinco teses acerca desse tópico. Ei-las:

1. As vicissitudes são comuns em várias perspectivas antropológicas e, por isso, são um topos da literatura helenística como um todo.

2. As listas de vicissitudes eram amplamente difundidas na antiguidade, em geral entre gregos, romanos e mesmos judeus, sendo encontradas nas mais diferentes fontes: nos escritos gnósticos de Nag Hamadi, em Josefo, em Luciano, em Apicteto, Sêneca, filósofos estóicos, platonistas, etc., ou seja, é impossível hipotetizar acerca de sua origem.

3. Os catálogos de vicissitudes não são uniformes e não pertencem todos à mesma classe, podendo ser identificadas várias categorias: ocupacionais, como os catálogos de infortúnios dos gladiadores ou dos oficiais do correio romano: nacionalistas, como os catálogos de treinamento dos espartanos; passionais, como aqueles dos sofrimentos amorosos descritos pelos poetas; individuais, como a lista de sofrimentos de um determinado personagem histórico conforme apresentada por seus biógrafos; tipológicas, aquelas que se referem a um determinado perfil de indivíduo – prostitutas, parasitas, bajuladores; filosóficas, aquelas que dizem respeito à conquista dos sofrimentos por parte daqueles que assumem a condição de líderes morais e intelectuais de um grupo.

4. Os catálogos paulinos pertencem a esse último grupo e são diretamente influenciados pelo conhecimento que o apóstolo tinha dos filósofos.

5. Os catálogos paulinos são também influenciados por seu antecedente judaico e pela literatura pagã. Sua frase de II Cor. 6:9, por exemplo, “como desconhecidos, e, entretanto, bem conhecidos” deriva provavelmente de Marco Aurélio.

Objetivos

Mas, afinal de contas, por que os antigos usavam esses catálogos? Em primeiro lugar, eles se prestavam a um uso retórico e axiomático: mostrar o valor real de uma pessoa, pois qualquer um pode ser marinheiro na bonança, mas requer-se um homem de fibra para as noites de tempestades no mar. Em segundo lugar, para enfatizar a perseverança e o contentamento na adversidade: “porque aprendi a viver contente em toda e qualquer situação” (Fil. 4:11). Finalmente, para distinguir o verdadeiro filósofo, do falso, envergonhando assim seus opositores.

O Antigo Testamento não apresenta nenhuma instância do uso desses catálogos de vicissitudes. Pode-se dizer que seu emprego em II Coríntios deve-se ao objetivo imediato do apóstolo. Paulo usa as acusações que havia recebido dos assim chamados “superapóstolos” e as dirige contra eles, com a finalidade de envergonhá-los. O próprio apóstolo afirmou: “Porque suponho em nada ter sido inferior a esses tais apóstolos” (II Cor. 11:5).

MILTON L. TORRES, Professor de Línguas no Seminário de Teologia do Iaene, atualmente cursa o doutorado em Línguas Antigas na Universidade do Texas, Estados Unidos