O que os eruditos dizem a respeito do estilo da epístola que Paulo escreveu a Tito
As assim chamadas epístolas pastorais, isto é, as cartas endereçadas a Tito e Timóteo, são, às vezes, negligenciadas pelos estudiosos da Bíblia, já que são curtas e de caráter mais pessoal do que geral. Contudo, elas têm recebido cada vez mais atenção da erudição bíblica desde que Martin Dibelius e Hans Conzelmann provaram que especialmente a epístola a Tito apresenta um estilo muito semelhante àquele empregado pelos filósofos pagãos mais ou menos contemporâneos a Cristo e ao período de escritura do Novo Testamento.
Os estudiosos do mundo grego clássico denominam este tipo de discurso persuasivo, destinado a motivar as pessoas à ação, de parênese, que é uma palavra derivada do verbo grego parainéo, cujo significado é “aconselhar” ou “exortar”. O termo aparece, por exemplo, em Atos 27:22.
Com base no estudo desses chamados “filósofos morais”, tais eruditos chegaram à conclusão de que o gênero parenético apresenta certas características definidas. Dibelius e Conzelmann também perceberam essas características na epístola a Tito, a qual consideraram um exemplo típico de parênese. Tais características incluem o uso de modalidades da linguagem de amizade, geralmente marcada pela presença de chichês, um tom filofronético, isto é, como se fosse o tom que um pai usa quando aconselha o filho (cf. Tito 1:4), uma enunciação vigorosa que procura impor um ponto de vista; veja-se por exemplo, Tito 2:15, uma enunciação marcadamente distinta do tom conciliador de uma exposição filosófica, como se vê em autores como Luciano de Samosata e Sêneca.
Verifica-se também a presença de listas de vícios e virtudes, semelhantes às que aparecem em Musônio Rufo e Dio Crisóstomo e também em Tito 1:7-11; 2:2-5. Há o emprego de uma linguagem que contrasta a saúde e a enfermidade da alma, implícita na expressão “sã doutrina” de Tito 2:1 e 8, encontrada também em I Tim. 1:10; II Tim. 4:3 e no filósofo judaico Filo de Alexandria, e “sadio na fé”, de Tito 1:13; 2:2. Observa-se ainda o uso de declarações gnômicas (o autor afirma seu ponto de vista como se esse fosse uma verdade universal, daí sua fala enfática: “conforme já te mandei”, em Tito 1:5). Finalmente, verifica-se abuso do estilo antitético e justaposição de blocos de assuntos, o que explica a preferência do autor por períodos compostos por coordenação.
Sermão enlatado
O cerne da proposição de Dibelius quanto ao caráter parenético de Tito reside em sua contumaz ênfase no fato de que seria impossível compreender o contexto da epístola porque, segundo ele, a parênese é, em última instância, um “sermão enlatado”. Assim sendo, o autor teria à mão um discurso de caráter geral que ele enviaria a qualquer destinatário que necessitasse de uma mensagem exortativa. Dessa forma, seria inútil qualquer tentativa de compreender, com base no conteúdo da epístola, a situação da igreja de Creta, na qual o destinatário se encontrava, pois a carta não seria uma resposta à necessidade da igreja local, mas uma mensagem, de caráter pouco específico, que serviria à necessidade de qualquer igreja daquele período.
Essa concepção de uma epístola a Tito, formada por sentenças curtas e desconexas e sem uma moldura conceituai definida, está sendo rejeitada atualmente por Abraão Malherbe, professor de teologia da Universidade de Yale, nos Estados Unidos. Malherbe apresentou, meses atrás, uma palestra na Universidade do Texas, na qual mostrou elementos que contrariam a tese tradicional de Dibelius. Segundo o erudito, ainda que a parênese tenha mesmo alguns elementos comuns ao “sermão enlatado”, há uma diferença ao ela levar em atenta consideração a visão de mundo do destinatário ou ouvinte.
Em primeiro lugar, a parênese tem uma dimensão de irrefutabilidade para aquele que a lê em uma carta ou a ouve em um discurso. Assim sendo, é possível, por um lado, apresentar um discurso parenético que estimule a fé, a cidadania e o patriotismo; mas não é possível, por outro lado, apresentar um discurso semelhante promovendo a guerra. O princípio fundamental implícito no gênero é o conceito romano de auctoritas, autoridade inapelável (cf. Tito 2:15). A mensagem contida na parênese é considerada uma verdade indiscutível, daí as afirmações presentes em Tito como, por exemplo, as de que “Deus não pode mentir” (1:2), e de que “este testemunho é verdadeiro” (1:13).
Uma forma de garantir tal irrefutabilidade provém do uso de ditos sapienciais (provérbios) e poesia. A poesia era, de fato, a mais elevada forma de apresentar uma verdade irrefutável no mundo greco-romano, para o qual os poemas épicos de Homero, Hesíodo e Virgílio mereciam o respeito que hoje dedicamos à Bíblia. É interessante, portanto, que em Tito 1:12 encontramos uma das pouquíssimas referências explícitas aos poetas pagãos em toda a Bíblia (uma outra referência ocorre no sermão de Paulo em Atenas, em Atos 17). É precisamente a irrefutabilidade da parênese que toma os hereges tão perigosos, cf. Tito 3:9-11.
Aprendizado pela repetição
Em segundo lugar, a parênese é marcada pela repetição constante das verdades que defende a fim de impressionar a mente do leitor ou ouvinte. A comunidade representada pela igreja de Creta era uma sociedade em que a oralidade prevalecia. Ouvir era muito mais comum do que ler; daí a ênfase dos autores greco-romanos na importância da repetição como parte do ensinamento dos filósofos morais. Assim, Sêneca advogava que os preceitos parenéticos tinham a função de refrescar a memória e trazer à lembrança o procedimento justo e correto em determinadas situações. Destarte, seria inútil repetir preceitos uma vez que esses seriam parte de uma verdade universal pertencente a todos os homens.
Contudo, como tais verdades seriam passíveis de ser esquecidas, era necessário seu reforço através da repetição. Da mesma forma, Luciano de Samosata declarava seu prazer em memorizar os textos dos filósofos. Epicuro e Lucrécio também defendiam a memorização como o melhor caminho para a assimilação dos preceitos do epicurianismo. Foi essa preocupação, inclusive, que levou Lucrécio a escrever toda a doutrina dos epicureus sob a forma de um longo poema épico, De Rerum Natura, a ser memorizado pelos discípulos. Não devemos nos admirar, portanto, que em Tito 3:1 encontremos a injunção: “lembra-lhes”.
Mensagem relevante
Finalmente, a parênese difere do “sermão enlatado” porque, conforme foi dito anteriormente, ela respeita a visão de mundo do ouvinte ou leitor. Apesar de Paulo ser o escritor do Novo Testamento que mais faz uso desse gênero, os estóicos foram aqueles que popularizaram a parênese no mundo greco-romano. Tito é supostamente uma carta escrita um indivíduo, mas, sem dúvida alguma, destinada a toda a igreja. Ela é geral, mas também aborda problemas específicos. Conforme afirma Plutarco, um sacerdote do paganismo grego, mais ou menos contemporâneo à escritura da epístola a Tito, “a consciência humana está enferma quando perde a razão”. De fato, se a doutrina não for sã, pouca esperança resta para uma vida pautada pela moralidade.
O Antigo Testamento foi traduzido para o grego, dois séculos antes de Cristo, por cerca de setenta sábios, em Alexandria, e a versão foi, por isso, chamada de Septuaginta. Durante as comemorações do feito, encomendado pela dinastia grega, então reinante no Egito, os sábios foram convidados a discursar perante o rei. Seus discursos provocaram satisfação geral e, de acordo com a antiga lenda, o monarca exclamou, admirado, que não importava a escolha dos diferentes estilos de oratória; todos os discursos versaram sobre o mesmo tema: a grandeza de Deus.
No caso da epístola a Tito, por mais significativo e apaixonante que seja o gênero parenético, tampouco parece ser o estilo a coisa mais importante nessa carta. O fundamental é a relevância de sua mensagem para o tempo presente: a necessidade de uma igreja organizada sob a direção divina e composta por pessoas de vida virtuosa.
Milton L. Torres, Ph.D., diretor acadêmico do Instituto Adventista de Ensino do Nordeste, Cachoeira, BA, Brasil