A identificação de um personagem indispensável no relacionamento entre Deus e Seu povo

A referência ao “anjo de Jeová” no Antigo Testamento não é casual nem passageira. As 86 vezes1 em que Ele aparece, em 27 ocasiões distintas,mostram a Sua importância crucial no relato bíblico. Esse mensageiro divino possui uma natureza singular, uma obra ampla, e desempenha um importante papel no plano da salvação.

A primeira vez em que o “anjo de Jeová” aparece nas Escrituras é em Gênesis 16, quando Hagar, fugindo de Sara, encontra-se com o mensageiro celestial no deserto. E o anjo disse, referindo-Se ao Senhor na terceira pessoa: “porque o Senhor te acudiu na tua aflição” (Gên. 16:11), ao que Hagar respondeu: “Tu és Deus que vê” (v. 13). Segundo essas afirmações, o anjo de Jeová tem uma identidade ligada à Divindade.

Foi o anjo de Jeová que impediu Abraão de sacrificar Isaque, declarando ao patriarca: “… agora sei que temes a Deus, porquanto não Me negaste o filho, o teu único filho” (Gên. 22:12). Aqui Ele toma o lugar da Divindade, para depois assumir uma identidade distinta (v. 16).

No sonho de Jacó, o “anjo do Senhor” apresentou-Se como “o Deus de Betei, onde… Me fizeste um voto” (Gên. 31:13). Alude à experiência da fuga de Jacó, anos atrás, na qual Deus apresentou-Se como “o Senhor, Deus de Abraão, teu pai, e Deus de Isaque” (Gên. 28:13).

Na experiência da angústia de Jacó, em sua luta contra um homem, durante toda a noite, o enviado celestial declarou: “… pois como príncipe lutaste com Deus e com os homens e prevaleceste” (Gên. 32:28). E Jacó deu àquele lugar o nome de Peniel, acrescentando: “… vi a Deus face a face, e a minha vida foi salva” (v. 30). Nesse texto não é dito que o homem seja o “anjo do Senhor”, mas Oséias 12:3 e 4 o identifica com o anjo. E o final do verso 4 assinala: “… e ali falou Deus conosco.” Um detalhe interessante em Gênesis 32 é a pergunta que o patriarca faz ao anjo: “Dize, rogo-Te, como Te chamas?”, ao que o homem responde: “Por que perguntas pelo Meu nome?” (v. 29) Tais questionamento e resposta são muito semelhantes aos da experiência de Manoá com o anjo do Senhor.

Quando Jacó abençoou os filhos de José, fez uma tríplice3 menção de seu Deus e, em uma delas, referiu-se ao anjo divino. Notemos os três elementos naquela bênção (Gên. 48:15 e 16): “O Deus em cuja presença andaram meus pais Abraão e Isaque, o Deus que me sustentou durante a minha vida até este dia, o Anjo que me tem livrado de todo mal…” Esse paralelismo4 coloca o “anjo” na mesma condição de Deus. Alguém poderia sugerir que não se trata do anjo do Senhor, mas apenas um título dado a Ele. A luz da Bíblia, no entanto, esse é um texto significativo.

Distinção e igualdade

Êxodo 3 é uma passagem clara na apresentação da diferença de personalidade de Jeová e Seu anjo, e que também revela uma íntima unidade entre ambos. O segundo verso menciona que foi “o anjo do Senhor” quem apareceu a Moisés na sarça ardente. Mas, quando Moisés se aproxima para observar a sarça que não se queimava, é dito: “Vendo o Senhor que ele se voltava para ver…” (v. 4). E depois: “Eu sou o Deus de teu pai, o Deus de Abraão, o Deus de Isaque, e o Deus de Jacó. Moisés escondeu o rosto, porque temeu olhar para Deus” (v. 6). Aqui observamos a idéia de que o anjo do Senhor é um Ser diferente e ao mesmo tempo é Deus. Ele convida Moisés a descalçar as sandálias em Sua presença,5 porque aquele lugar era terra santa (v. 5). Só o Criador é digno de adoração e reverência.

A Bíblia apresenta o anjo do Senhor como uma pessoa distinta de Deus. Não é apenas de um título divino. Em Êxodo 23:20-23, Deus fala na primeira pessoa e Se refere ao anjo na terceira pessoa. Ele promete a Israel que enviará Seu anjo diante dele em sua peregrinação pelo deserto. Fala dEle como “Meu anjo” e o faz também na terceira pessoa do singular: “diante dEle”; “ouve a Sua voz”; Ele “não perdoará” (v. 21). A mesma promessa é repetida em Êxodo 32:34 e 33:2. Números 20:16 assinala que Deus enviou “um anjo” para Seu povo do Egito. Juizes 2:1 atribui essa obra ao anjo do Senhor.

Na travessia do Mar Vermelho (Êxo. 14:19 e 20), o anjo do Senhor estava na nuvem que guiava o povo. Isso é surpreendente à luz de Êxodo 13:21 que reconhece que “O Senhor ia adiante deles, durante o dia, numa coluna de nuvem, para os guiar pelo caminho; durante a noite, numa coluna de fogo, para os alumiar”. Novamente, esse anjo é identificado com o próprio Deus.

A experiência de Balaão, quando se dirigia a Moabe, menciona o anjo do Senhor em relação com o próprio Deus (Núm. 22:22-35). Foi ele quem parou diante do profeta e seu animal; porém, foi Deus quem interferiu para abrir a boca da mula (v. 28) e os olhos do profeta (v. 31). Duas menções são feitas pelo anjo ao profeta: recrimina seu caminho “perverso diante de Mim” (v. 32), e ordena que vá, “mas somente aquilo que Eu te disser, isso falarás” (v. 35). Essas expressões são próprias de Deus (Êxo. 23:33; Ezeq. 3:10).

Em Boquim (Juí. 2:1-5), o anjo do Senhor fala com o povo hebreu posterior a Josué. Em Seu breve discurso, faz várias declarações facilmente ligadas a Deus: “Do Egito vos fiz subir” – uma declaração típica de Deus – e lembra o início da proclamação dos Dez Mandamentos (Êxo. 20:1). “Eu disse: nunca invalidarei a Minha aliança convosco. Vós, porém, não fareis aliança com os moradores desta terra; antes, derrubareis os seus altares; contudo, não obedecestes à Minha voz. Que é isso que fizestes?” Essa é uma advertência dada por Deus ao povo, através de Moisés (Deut. 7:2-5). “Pelo que também Eu disse: Não os expulsarei de diante de vós; antes vos serão por adversários, e os seus deuses vos serão laços” (Juí. 2:3). Essa é uma clara alusão à advertência que Moisés recebeu de Deus, conforme Números 33:50-56.

Dirigindo-se a Gedão, disse o anjo do Senhor: “O Senhor é contigo, homem valente” (Juí. 6:12), mas durante a conversação é o próprio Jeová quem fala (vs. 14-19), embora quem conclua a entrevista com Gedeão seja novamente o anjo (vs. 20-22). Gedeão usa duas vezes a expressão “Senhor meu”;uma dirigida ao anjo (v. 13) e outra a Deus (v. 15), denotando o uso alternado entre Deus e o anjo do Senhor, tão comum nas escrituras hebraicas. A oferta de Gedeão é oferecida diante do anjo que a consome pelo fogo. Há uma aceitação de oferta, adoração que somente o Deus verdadeiro deve receber.

Depois desse encontro tão singular, Gedeão declara: “Ai de mim, Senhor Deus! Pois vi o Anjo do Senhor face a face” (v. 22). Mas Deus lhe promete que não morrerá. Aqui, Gedeão expressa uma clara consciência da solenidade que é ver o rosto divino (Êxo. 33:20).

No caso de Manoá e sua esposa, a declaração é direta: “Certamente, morreremos, porque vimos a Deus” (Juí. 13:22). Nesse capítulo, o anjo do Senhor é uma pessoa distinta de Deus (vs. 1-23). A tal ponto que o anjo diz a Manoá, quando este Lhe oferece pão e um cabrito: “ainda que me detenhas, não comerei de teu pão; e, se preparares holocausto, ao Senhor o oferecerás” (v. 16). Aqui o anjo e Deus são distintos. Ao mesmo tempo, há um desafio encoberto para o ancião, convidando-o a descobrir quem é Ele.7 O anjo repete o milagre feito diante de Gedeão, subindo sobre a chama da oferta, levando os dois anciãos a prostrarem-se em reverência diante dEle (v. 20). A esposa de Manoá reconhece que o anjo aceitou a oferta, o que confirma Sua divindade e o temor de terem visto a face de Deus (v. 23).

À pergunta sobre qual é o nome do Anjo, este responde: “Por que perguntas assim pelo Meu nome, que é maravilhoso?” (v. 18). O termo hebraico utilizado aqui é o mesmo título conferido ao menino-Messias em Isaías 9:6. A ligação com Cristo, portanto, é muito evidente nessa passagem.

A experiência de Davi ao ver o castigo aplicado a Israel, por ter ele realizado o censo, novamente revela que o anjo do Senhor é um personagem diferente de Deus (II Sam. 24:16-18). É Deus quem impede a destruição feita pelo anjo (v. 16). O texto paralelo (I Crôn. 21:12-30) é mais detalhado. Registra que o anjo do Senhor envia o profeta Gade para dizer a Davi que levante um altar (v. 18) e Davi age conforme a ordem recebida “em nome do Senhor” (v. 19). Esse personagem fala com autoridade divina, não só porque é um mensageiro, mas também porque é divino.

Em Zacarias 1, o anjo do Senhor serve de mediador entre o profeta e quem explica as visões (Zac. 1:7-17).8 Nessa seção, o anjo é uma pessoa distinta de Jeová. Ele diz: “Ó Senhor dos exércitos, até quando não terás compaixão de Jerusalém e das cidades de Judá, contra as quais estás indignado faz já setenta anos? Respondeu o Senhor com palavras boas, palavras consoladoras, ao Anjo que falava comigo” (vs. 12 e 13).

Em outra visão de Zacarias, o anjo do Senhor está diante do sumo sacerdote Josué. Embora o próprio Deus repreenda Satanás – “O Senhor te repreende” (Zac. 3:2)9 – é relevante que Ele não diz “Eu te repreendo”. Esse é um detalhe semelhante ao relato da destruição de Sodoma, quando “fez o Senhor chover enxofre e fogo, da parte do Senhor” (Gên. 19:24). Aí aparecem duas pessoas no próprio Jeová.

Esses textos não deixam dúvidas quanto à natureza do “anjo do Senhor”. É Deus, mas, ao mesmo tempo, é uma pessoa distinta. O Antigo Testamento não tem uma declaração trinitária direta, mas a pessoa do anjo do Senhor sugere um Deus manifestado em pessoas distintas. A conexão com Cristo é notável. Malaquias liga o Senhor, “a quem vós buscais”, com “o Anjo da aliança, a quem vós desejais” (Mal. 3:1) A profecia é messiânica.

As funções do Anjo

A palavra “anjo” significa “mensageiro”. Isso sugere a principal função exercida pelo anjo do Senhor no Antigo Testamento. É o porta-voz divino, o meio pelo qual Deus Se revela e comunica com Seu povo, o que pode ser visto nas experiências anteriormente assinaladas. Contudo, Sua obra vai além de simplesmente transmitir mensagens. E o texto bíblico mostra uma área de maior influência.

Consolo. Seu encontro com Hagar (Gên. 16:7), suas palavras ao angustiado Gedeão (Juí. 6:12), o fortalecimento e nutrição providenciados a Elias (I Reis 19:5-8) e o ânimo transmitido ao sumo sacerdote Josué (Zac. 3:2-8) apontam para o ministério de consolação exercido pelo anjo do Senhor.

Guia. Suas mensagens são para orientar os que as recebem (Gên. 16:9; 31:13; Êxo. 14:19 e 20; 23:23; 33:2; Juí. 13:3-5; Zac. 12:8).

Profecia. As mensagens dadas também possuem caráter profético. Foi assim quando anunciou o futuro de Ismael (Gên. 16:11 e 12) e o nascimento de Sansão (Juí. 13:3).

Avaliação. O anjo do Senhor emite juízos sobre o trabalho dos servos de Deus. Elogiou Abraão por sua fé (Gên. 22:12); animou a Jacó diante dos abusos de Labão (Gên. 31:12) e repreendeu Israel (Juí. 2:1-3).

Proteção. Uma função chave do anjo do Senhor é resguardar os filhos de Deus (Gên. 48:16; Êxo. 23:20; Sal. 34:7; Dan. 3:28;10 6:22).

Salvação. Isaías percebe a obra do anjo do Senhor sobre Israel como redenção (Isa. 63:9). A experiência do sumo sacerdote Josué e a mudança de suas vestimentas elevam a salvação do anjo do Senhor a um plano espiritual mais alto (Zac. 3:1-8).

Comissionamento. Essa atitude é clara no chamado de Moisés (Êxo. 3); na advertência a Balaão (Núm. 22:35) e no trabalho designado a Gedeão (Juí. 6:14).

Disciplina. Um ser divino que ama Seu povo não deixa de repreendê-lo. Por isso o anjo do Senhor também é um portador de repreensão para os filhos de Deus (Êxo. 23:21 e 22; Núm. 22:22-35; Juí. 5:23; II Sam. 24:16 e 17; I Crôn. 21:12-30; II Reis 1:3 e 4; 19; Isa. 37:36; II Crôn. 32:21; Sal. 35:4’6).

Como se vê, segundo os escritos hebreus, o anjo do Senhor desempenha um papel de representante e mensageiro de Deus. É um Ser independente do Senhor, mas, ao mesmo tempo é divino. Não restam dúvidas de que esse personagem é o próprio Cristo, que Se manifestava aos seres humanos antes da encarnação. Revela o papel permanente de Cristo como mediador entre Deus e o homem, e o agente designado pela Divindade para ocupar o lugar de Seu representante visível diante da humanidade. E mostra, de forma bastante destacada, o profundo interesse que Deus tem por Seus filhos.

Referências:

1 Aparece 54 vezes como “Anjo do Senhor”, 17 vezes como “o Anjo”, cinco vezes “anjo de Deus” três vezes “Meu Anjo” e “um Anjo”. Em duas ocasiões, “Seu Anjo”. Apenas uma vez, “Anjo de Sua face” e “Anjo da aliança”. Em várias ocasiões essas expressões aparecem livremente no mesmo relato.

2 Algumas dessas ocasiões são relatadas mais de uma vez no Antigo Testamento: 1) No deserto (Êxo. 23:20-23; 32:34; 33:2); 2) no castigo sobre Jerusalém, por ocasião do censo (II Sam. 24: 1 Crôn. 21); e 3) a matança dos assírios (11 Reis 19:35; II Crôn. 32:21; Isa. 37:36).

3 Vê-se em outras passagens do Antigo Testamento uma tríplice menção ao nome divino, que não se pode afirmar ser um pano de fundo trinitariano evidente; mas são muito sugestivas. São elas a bênção sacerdotal (Núm. 6:24-26) e a visão do chamado de isaías (Isa. 6:1-5).

4 O parelelismo é a tendêndia da poesia hebraica de distribuir suas declarações em pares, onde a segunda e até a terceira frase ampliam a primeira; seja por repetição, contraste ou complementação.

5 A outra referência bíblica onde um personagem é solicitado a tirar os sapatos, por encontrar-se em terra santa é Josué 5:13-15. Embora o “Anjo do Senhor” não seja mencionado, a ligação é interessante. Trata-se de um Ser divino, porque Josué O adora e o reconhece como “Senhor” (v. 14). É chamado “príncipe do exército do Senhor” (vs. 14 e 15), ou seja, o líder das hostes celestiais.

6 A invocação “Senhor” tem um conteúdo divino determinante. E importante lembrar a experiência de Cristo com os fariseus (Mat. 22:21-46). Ele cita o Salmo 110:1, um salmo messiânico, e o emprega como argumento em favor de Sua divindade.

7 O mesmo tipo de pergunta sugestiva encontra-se em Mateus 19:17. Jesus confronta o jovem rico: “Por que Me chamas bom? Bom só existe um.” Em outras palavras, “Me chamas bom porque Me consideras Deus ou isso é apenas uma forma de falar?”

8 Na versão Rainha Valéria 60, o verso 11 é traduzido: “a aquele anjo do Senhor”, o que poderia sugerir que há outros “anjos” do Senhor. A mesma versão atualizada (1989) e a Bíblia das Américas traduzem corretamente “ao Anjo”.

9 Judas 9, comentando a disputa entre o Arcanjo Miguel e Satanás, pelo corpo de Moisés, assinala que Miguel fez a mesma repreensão: “O Senhor te repreenda.”

10 Foi o mesmo rei caldeu que declarou ter sido o Anjo de Deus que os livrara da fornalha ardente, e reconheceu o quarto personagem dentro dela como sendo “semelhante a um filho dos deuses” (Dan. 3:25). A ligação com Cristo outra vez é sugerida nesse relato.

Carlos Elias Mora, Professor de Antigo Testamento no Seminário Teológico da Universidade Adventista do Chile