“Bem -aventurados aqueles que leem e aqueles que ouvem as palavras da profecia e guardam as coisas nela escritas…”

Ao descrever Jesus como “semelhante a Filho de homem” (Apoc. 1:13), ministrando como nosso Sacerdote no Céu, e, ao descrevê-Lo posteriormente como tendo uma coroa de ouro e uma foice na mão, como o divino Rei-Juiz (Apoc. 14:14:20; 19:11-15), João distingue dois ofícios do “Filho do homem” celestial: Seu ministério sacerdotal de intercessão em favor da igreja e a conclusão de Sua obra como Juiz de todos os homens, na segunda vinda. Essa aplicação dupla da expressão “Filho do homem”, usada por Daniel, à obra de Cristo como Sacerdote e Juiz une as cartas e as visões apocalípticas.

Como vimos no artigo publicado na edição anterior, João foi orientado a enviar todo o Apocalipse, as sete cartas junto com as visões, às igrejas que em sua condição espiritual representam a igreja universal. Cada carta contém o conselho pastoral de Jesus para que a igreja conserve o que tem, até que Ele venha, até o fim (Apoc. 2:10, 11, 13, 25 e 26;3:11). O próprio João testifica que foi banido a Patmos “por causa da Palavra de Deus e do testemunho de Jesus” (Apoc. 1:9).

Recentes estudos mostram que as duas seções do Apocalipse iluminam-se e interpretam-se mutuamente. “Uma comparação das cartas às sete igrejas (Apoc. 2:1-3:22) e a visão da Nova Jerusalém (Apoc. 21:1-22:5) demonstra que os elos entre as duas passagens são muitos…. O que as cartas prometeram aos membros das igrejas é cumprido nos cidadãos da Nova Jerusalém.”1

Junto com isso, Beale observa que as sete cartas estão relacionadas integralmente ao corpo visionário do livro: “As promessas das cartas antecipam o fim do livro e a visão final do paraíso.”2 Isso significa que as visões simbólicas dos capítulos 4-22 funcionam como descrições interpretativas das advertências e promessas contidas nas cartas.

Essa correlação substancial entre as cartas e as visões demonstra que o evangelho apostólico permanece do início ao fim como teste imutável para o período da igreja. A última geração está explicitamente comissionada a reviver o “evangelho eterno” como a última mensagem de advertência ao mundo (Apoc. 14:6 e 7: 18:1). Essa mesma geração do povo de Deus deve expressar sua lealdade ao evangelho apostólico, justamente como a primeira geração de cristãos fez como fiel testemunha de Cristo e Sua Palavra.

O “Filho do homem” e o juízo

O prólogo do Apocalipse de João é concluído com o tema culminante do seu livro: “Eis que vem com as nuvens, e todo olho O verá, até quantos O traspassaram. E todas as tribos da Terra se lamentarão sobre Ele” (Apoc. 1:7). Aqui, João alude, evidentemente, à visão do julgamento relatada em Daniel 7, na qual o profeta viu “com as nuvens do céu, um como o Filho do homem, e dirigiu-Se ao Ancião de dias”, no tribunal celestial, onde recebeu autoridade para executar o julgamento final da humanidade (Dan. 7:13, 14 e 27).

Apocalipse 1:7 coloca o cumprimento dessa visão na segunda vinda de Jesus. Essa identificação de Cristo com a figura mencionada por Daniel já foi introduzida por Ele durante Seu ministério terrestre, quando testemunhou sob juramento diante de Caifás: “… desde agora vereis o Filho do homem assentado à direita do Todo-poderoso e vindo sobre as nuvens do céu” (Mat. 26:64). A futura vinda, mencionada por João, expande a visão de Daniel, porque esse profeta viu o Filho do homem vindo apenas ao Ancião de dias no Céu. Agora, João O vê vindo como Rei-Juiz da Terra, ocasião em que todo ser vivo testemunhará o esplendor de Sua presença como Rei dos reis e Senhor dos senhores (Apoc. 6:12-17; 19:11-21).

João repete esse ‘cumprimento de Daniel 7, ao descrever: “Olhei, e eis uma nuvem branca, e sentado sobre a nuvem um semelhante a Filho de homem, tendo na cabeça uma coroa de ouro, e na mão uma foice afiada” (Apoc. 14:14). Essa visão pinta vividamente o retorno de Cristo como Rei e Juiz, ostentando a coroa e empunhando a foice, para ajuntar “os cachos da videira da Terra” (v. 18).

A menção de uma “foice afiada” parece ser uma referência à visão na qual Joel descreveu o julgamento do mundo, por Jeová, no vale de Josafá: “Lançai a foice, porque está madura a seara; vinde, pisai, porque o lagar está cheio, os seus compartimentos transbordam; porquanto a sua malícia é grande” (Joel 3:13).

Essa criativa combinação de diferentes visões do julgamento no Antigo Testamento, em uma nova consumação centralizada em Cristo, ilustra a abordagem interpretativa de João. Ele dá às visões de Daniel e Joel um cumprimento que exalta Cristo à glória divina e redefine o teste da verdade como fé em Je-sus, na qualidade do Messias enviado por Deus, e obediência ao Seu testemunho (Apoc. 1:2, 3, 9; 12:17; 14:12; 20:4). Desse modo, João reformula as profecias de julgamento de Israel, pelo significado de seu princípio cristológico.

Interpretação universal

Por seis vezes, João diz que a colheita final será uma colheita da Terra (Apoc. 14:14-19), ensinando, assim, um cumprimento universal dos quadros nacional e palestino no Antigo Testamento. Apocalipse 14:14-20 é a narração do exemplo da extensão mundial do julgamento de Deus, por causa do testemunho do evangelho dado pela igreja fiel (Mat. 24:14; Apoc. 14:6 e 7; 18:1).

Outro exemplo da chave interpretativa evangélica do Apocalipse, usada por João, é sua referência ao fato de que “todo olho O verá, até quantos O traspassaram”, junto com a lamentação universal. Aproximadamente 400 anos antes de Cristo, Zacarias predissera: “E sobre a casa de Davi e sobre os habitantes da Jerusalém derramarei o espírito da graça e de súplicas; olharão para Aquele a quem traspassaram; pranteá-Lo-ão como quem pranteia por um unigênito, e chorarão por Ele como se chora amargamente pelo primogênito. … A Terra pranteará, cada família à parte” (Zac. 12:10 e 12).

Zacarias anunciou um evento que abalaria o futuro de Jerusalém: ela rejeitaria e “traspassaria” o Messias, e depois prantearia “como quem pranteia por um unigênito”. João alude a essa predição messiânica: “todo olho O verá, … e todas as tribos da Terra se lamentarão sobre Ele”. Ou seja, o vidente de Patmos amplia o significado da profecia de Zacarias a uma extensão mundial. A rejeição do Messias e a conseqüente lamentação já não se limitam aos israelitas mas a todas as nações. Ele amplia o tradicional conceito de Israel.

A universalização sistemática de João quanto às promessas do concerto de Israel ensina um princípio de interpretação profética geralmente passado por alto. O apóstolo descobre que a consumação apocalíptica não será centralizada em Israel, mas em Cristo; não será centralizada na Palestina, mas no mundo em sua extensão para a igreja de Jesus Cristo. O próprio Jesus confirma que Sua igreja é o verdadeiro Israel de Deus: “os sete candeeiros são as sete igrejas” (Apoc. 1:20). O Israel literal, chamado para ser a luz do mundo, é agora ampliado para o Israel crente em Cristo, a Igreja cristã, o povo messiânico de Deus. Eles são chamados para testemunhar da luz salvadora do Seu evangelho “a todas as nações” (Mat. 24:14).

O propósito dos símbolos hebraicos no Apocalipse cristão é assegurar à igreja sua continuidade com o chamado de Israel (Isa. 49:6), de modo que o eterno plano de Deus para a humanidade seja gloriosamente cumprido. Cristo é a garantia dos concertos de Deus com Israel (Heb. 7:22).

Chaves complementares

Em suma, o Apocalipse afirma duas chaves indissolúveis para compreensão de suas descrições simbólicas: (1) Os símbolos recebem seu significado teológico da Bíblia hebraica (Antigo Testamento) e da história de salvação de Israel; (2) os termos e imagens hebraicos dessas Escrituras e o Israel literal recebem cumprimento cristológico, eclesiológico e universal, através do evangelho apostólico.

Alguns intérpretes aplicam somente a primeira chave, isto é, compreendem o uso que João faz das figuras e terminologia hebraica, mas literalizam as descrições étnicas e geográficas, aplicando-as ao povo judeu e seus inimigos nacionais no Oriente Médio de nosso tempo. Esse “literalismo absoluto” na interpretação profética é defendido pelos dispensacionalistas e foi popularizado na Nova Bíblia Referência de Scofield (1967).

Outros aplicam somente a chave evangélica e ignoram a raiz contextual de Daniel bem como a descrição de João das “coisas que em breve devem acontecer”.3 Tais interpretações extremistas nos impõem a necessidade de uma chave compreensiva que una os dois Testamentos de uma forma indivisível. João tem adicionado uma chave resumida, como salvaguarda contra qualquer interpretação unilateral. Tudo o que ele viu foi resumido nesta significativa frase: “a Palavra de Deus e o testemunho de Jesus Cristo” (Apoc. 1:2).

Hans K. LaRondelle, professor emérito do Seminário Teológico da Universidade Andrews, Estados Unidos

Referências:

1 Roberto Badenas, “New Jerusalem: The Holy City”, em Symposium on Revelation, book 2. Daniel and Revelation Committee Series, vol. 7. F. B. Holbrook, ed. (Hagerstown, MD: Review and Herald Publiching Association, 1992), págs. 264 e 265.

2 Gregory K. Beale, John’s Use of the Old testament in Revelation, JSNT Suppl. Ser., 1998, pág. 299.

3 Ver, por exemplo, G. Goldsworthy, The Lamb and the Lion (Nashville, Tenn: Thomas Nelson Publishing, 1984), págs. 146 e 147.