Somente a graciosa intervenção divina pode reparar as conseqüências da infidelidade matrimonial
Miroslav Kis, Ph.D., professor de ética no Seminário Teológico da Universidade Andrews, Estados Unidos
Quando o inimaginável torna-se parte da imaginação, quando começamos a pensar o impensável, é aí que o impossível se torna possível. Isso é válido para o bem e o mal. Raramente o adultério é um evento sem história. Algum tipo de imaginação, ou devaneio, prepara o caminho. Quem nós somos em secreto eventualmente vem à luz no momento da tentação ou prova. E quando isso acontece, deixa marcas indeléveis.
A abordagem desse assunto é sempre dolorosa, porque o resultado da pesquisa de casos adúlteros pastorais é devastador. Mas sem uma avaliação imparcial, objetiva e, acima de tudo amorosa, somos incapazes de responder às situações, de maneira compassiva e redentora. Não é o caso de agirmos como avestruzes, muito menos assumirmos atitudes de juizes precipitados. Afinal, Deus ainda está no Seu trono, é nosso Criador e Pai, o único capaz de aquietar nossa alma arrependida e curar relacionamentos feridos. Em um caso de adultério não há vencedores; apenas vítimas. Acredito que, nessa questão extremamente complexa, a Bíblia considera o cônjuge ofendido e os filhos as principais vítimas (Mal. 2:13-16; I Tess. 4:6; Heb. 13:4).
Sabemos que cada caso é único e que a divisão de responsabilidades é uma tarefa assustadora. Mas a Igreja foi chamada a resgatar, e Deus deseja que sejamos graciosos e sábios no trato do problema, para que não subestimemos as feridas nem matemos as vítimas, onde quer que elas se encontrem.
Impacto na esposa
Choque. O dia pode começar normal. As crianças estão na escola e o esposo trabalhando. Alguém telefona ou chega para dar a notícia. Por mais habilidosa que seja a comunicação, não há forma agradável de dizer: “Seu marido está lhe traindo.” Isso é tão doloroso como uma notícia de morte, especialmente quando o esposo é insuspeito, e mesmo que ele seja o confessor. Estou usando a esposa como vítima e o esposo como culpado, mas o inverso também acontece e não é menos penoso.
Perda de inocência. O casamento é uma forte aliança. Seu poder de unidade é imenso. O início da vida a dois é, de muitas formas, um novo começo. Envolve libertação do passado, nova confiança, nova chance à pureza, liberdade para crescer; uma nova chance à inocência. E quanto tudo isso é jogado fora, a inocência conjugal morre. E essa morte pode ser vista de muitas maneiras, uma das quais é a culpa. Freqüentemente a esposa traída assume a responsabilidade pela falha do casamento. Imagina que não foi suficientemente boa para impedir a tragédia. O fardo da culpa dividida pode se tornar insuportável, e ela duvida de sua própria inocência no adultério do esposo.1
Depois de anos identificando-se com o sucesso e as falhas do marido, a esposa também não pode escapar do senso de vergonha. E como esposa de pastor, esse sentimento é maior porque trata-se de um casal público.
Solidão. Muitas esposas se sentem sós, mas poucas situações podem ser comparadas com o senso de deserção no caso de um adultério. Até os amigos íntimos às vezes desaparecem, e não é porque não se importem. “Nem sempre eles sabem o que dizer”, confidenciou certa vez uma esposa sobrevivente da infidelidade conjugal.
Perda de identidade. Uma questão básica que a angustiada esposa enfrenta é: “Quem sou eu?” Durante muito tempo ela era a esposa do pastor. Sua autoestima, suas roupas e aparência, seu lugar na sociedade e sua própria vida revolviam-se em torno do pastorado. Ao perder o marido, ela sente que tornou-se ninguém e nada possui. Recusa envolver-se em ministérios com os quais colaborava, e muitas pessoas dependentes do seu apoio são abandonadas. Ela está perdendo não apenas um arrimo de família, mas o pai de seus filhos, um amante, sua alma gêmea.
Sensação de logro. Com o desdobramento da história, a esposa descobre a extensão em que foi enganada, quanta duplicidade e astúcia havia no âmago do relacionamento conjugal. E sente-se ridícula. Ela que sempre quis dar ao esposo o espaço de que ele necessitava, respeitar seus segredos profissionais. Mas como poderia seu amor ser tão cego de modo que não tosse capaz de reconhecer e impedir a tragédia?
Anulação. Agora que o mal aconteceu, Heather Bryce lembra: “As ‘outras mulheres’ – amigas cristãs – não parecem necessitar dizer que estão tristes ou aconselhar o perdão, e isso deixa um sentido de perda e vazio. Os conselheiros me dizem para não procurá-las, e que o perdão tem de partir de mim. O apoio recebido tem sido primariamente para meu esposo. Muitas cartas incentivam-me a perdoá-lo, e reafirmar o bem que foi seu ministério passado. Muitas vezes a ajuda que eu recebo vem na forma da pergunta: ‘Você perdeu peso? Como o está tratando agora?’”2
O esposo traído
E surpreendentemente escassa a literatura sobre a esposa de um pastor infiel. Mas o marido da “outra mulher” é virtualmente esquecido. E isso apesar de que iguais vergonha, culpa, perda de identidade e autoestima, rejeição e traição também atingem esse homem. No caso de Davi, Deus não apenas quis convencê-lo da lascívia e impureza do que ele fizera com Bate-Seba, mas do erro desumano que infligira ao outro homem, o dono da única “cordeirinha” (11 Sam. 12:1-4).3
Em primeiro lugar, o adultério, visto da perspectiva do homem traído na situação de Davi, é transgressão contra o mandamento: “Não matarás.” Mesmo se Davi não houvesse tirado a vida de Urias, ele matou a unidade -“uma só carne” (Gên. 2:24) – divinamente designada à qual marido e mulher se entregam. Há também um sentido de roubo do cônjuge, pai ou mãe de outra pessoa; roubo da mais íntima felicidade alheia; divisão do lar de outra pessoa. E Deus parece ter o maior interesse nas vítimas de infidelidade. Ele está preocupado com os direitos dos defraudados nesse assunto.
Paulo declara: “Pois esta é a vontade de Deus: a vossa santificação, que vos abstenhais da prostituição; que cada um de vós saiba possuir o próprio corpo em santificação e honra, não com o desejo de lascívia, como os gentios que não conhecem a Deus; e que, nesta matéria, ninguém ofenda, nem defraude a seu irmão; porque o Senhor, contra todas estas coisas, como antes vos avisamos e testificamos claramente é o vingador” (1 Tess. 4:3-6).
“Quando uma pessoa realiza seus desejos e o que parece ser uma nova felicidade em um segundo casamento, é fácil esquecer o preço que foi pago por outro alguém: o preço da perda de sua companhia de vida, das lágrimas derramadas no silêncio da noite. Alguém foi roubado de sua felicidade, teve seu lar destruído, foi deixado só, lutando consigo mesmo. Crianças foram deixadas sem um pai ou mãe. E fácil esquecer o terrível sofrimento de outros, enquanto se desfruta um novo amor. Mas Deus não esquece.”4
Os filhos
Aqui estão os filhos inocentes. Amontoados atrás do pai ou da mãe, sua torre de força, seu modelo, imagem de Deus, seu exemplo de como a vida deve ser vivida. Um dos dois lhes dará a notícia, enfrentando suas reações complexas e confusas, de uma intensidade inimaginável.
O pai os deixou. Sentem-se valendo nada. A humilhação pública lhes assalta a vida. Os cochichos, os boatos, olhares de piedade fazem com que desejem sumir do lugar onde vivem. Preocupam-se quanto a ter herdado ou não as tendências à infidelidade. Seu desenvolvimento sexual pode ser afetado. A sexualidade de uma criança depende, em grande parte, do que ela observa no lar. A experiência religiosa infantil também pode ser abalada. Pode haver um grande ressentimento direcionado à igreja, à religião e a Deus, que aparentemente não foram capazes de proteger o pai contra a queda.5
Independente da idade, a criança sempre é afetada pela infidelidade sexual dos pais. Quando tinha três anos, meu filho ouviu uma conversa com uma vizinha cujo marido fugira com outra mulher. Dias depois, ao encontrarmos aquela vizinha com seu filho em uma loja, meu garoto perguntou: “Pai, onde está o pai de Marcos?” Respondi-lhe: “Ele deixou a família.” Notei uma expressão apreensiva em seu rosto. “Pai, você vai nos deixar algum dia?”, ele perguntou. Olhei-o nos olhos e disse: “Não, filho, nunca.” E senti seu longo abraço.
A outra mulher
É difícil saber quem se sente mais responsável pelo adultério: a esposa traída, por imaginar-se não ser a mulher de que ele necessita, ou a “outra mulher”, por ser a que ele não deveria necessitar. Mas o pêndulo da responsabilidade balança na direção do pastor.
Deixemos que Pamela Cooper-White fale: “Eu argumento, entretanto, que tal relação íntima é sempre uma violação dos limites éticos e que é responsabilidade do pastor manter os limites apropriados. Como acontece com o estupro, o envolvimento sexual do pastor com uma paroquiana não é primariamente um assunto de sexo ou sexualidade mas de poder e controle. Por essa razão eu chamo isso de abuso sexual, em lugar de ‘relacionamento’, ou de atividade privada consentida entre adultos (como quase sempre é descrita) … pode não haver consenso autêntico em uma relação envolvendo poderes desiguais.”6
O pastor pode ser o “outro” empregador, professor, mentor ou conselheiro da mulher. Embora devamos conservar em mente esses fatores, e reconhecer que a responsabilidade pastoral é maior, um fato permanece inegável: Exceto estupro ou abusos maliciosos, somos cúmplices na infidelidade sexual sempre que traspassamos os limites alheios ou permitimos alguém violar nosso limite de intimidade. Em qualquer circunstâncias, a “outra mulher” enfrenta algumas questões.
Roubo de marido. As conseqüências do seu ato vão persegui-la. No caso do adúltero preferir ficar com ela, é certo que ela estará pensando na esposa legítima e sua solidão, vivendo em uma casa menor, “saindo para trabalhar pelo seu sustento, sem a companhia que lhe era tão preciosa – tudo porque ela roubou o marido e assim destruiu o lar”.’ Essa realidade a afeta negativamente.
Vítima e cúmplice. Por mais vulnerável que tenha sido, por mais forte que tenha sido a pressão, por mais desestruturado que tenha sido seu casamento, ou por mais abusivo que tenha sido seu esposo, a “solução” encontrada somente multiplicou o número de vítimas. Agora, na opinião de Hession, “espera-se que ela tenha se humilhado diante de Deus e reconhecido o erro cometido em relação à esposa traída como um pecado contra Deus. Então é hora de confessá-lo, pedir perdão e procurar fazer algo para reparar o erro”.8
Prejuízo da autoestima. Ela pode sentir-se envergonhada, culpada e estúpida, por haver-se deixado usar como objeto de prazer. Seu senso de valor, de confiança e segurança é particularmente destruído. O idealismo e a esperança quase se vão.
Desordens físicas, emocionais e espirituais. Algumas mulheres enfrentam sérias dificuldades nos âmbitos físico e psicológico. As intimidações e ameaças para não revelar o caso de adultério resultam em ansiedade, estresse, insônia e muitos outros problemas de saúde.9 Há também certo arrefecimento da confiança em Deus, na Igreja e nos amigos que, em nome da reputação de alguém, não deram ouvidos às suas queixas antes da tragédia.10
Impacto sobre o pastor
Inocência é a qualidade do ser caracterizada pela pureza, integridade e isenção de dolo. Vidas inocentes desfrutam profunda serenidade mesmo sob as circunstâncias mais adversas, as piores tentações e flagrantes injustiças. Embora vendido como escravo, tendo resistido às insinuações de sua patroa, e apesar da injusta prisão resultante, José “tinha a paz que vem de uma inocência consciente”.11 Os efeitos da perda de inocência exercem grande impacto no pastor que cai em adultério. Tal perda afeta todos os aspectos de vida e do ser.
Perda de inocência pessoal. Antes da consumação do caso, nada parecia indicar qualquer mudança em sua vida. A ideologia prevalecente na cultura atual apregoa a falsa ilusão de que o sexo livre pode ser seguro, e que uma intimidade casual nada mais é do que um entretenimento sem efeitos negativos. A verdade, porém, é que acontecem profundas mudanças no íntimo das pessoas envolvidas. A intimidade sexual nos introduz na “câmara sagrada” de outra pessoa, onde convergem todas as dimensões de duas personalidades. Nenhuma outra experiência faz isso tão completamente.
A intimidade sexual envolve uma doação mútua total. E como não somos mais que uma totalidade de ser, doações múltiplas fragmentam o senso de integralidade. Essa fragmentação do eu acontece porque cada novo parceiro liga-se a nós diferentemente, com demandas específicas, de modo que já não nos pertencemos como antes. Um profundo sentimento de vergonha explode do interior do indivíduo quando ele se defronta com esse novo eu comprometido, que não sabe como se relacionar com os familiares; quando vê os amigos agindo estranhamente; e mesmo (ou especialmente) quando falar de Deus soa artificial e audacioso.
Perda de inocência conjugal. A união com a esposa, o apoio recebido dela, os sonhos e planos partilhados juntos agora têm limites. Não nos sentimos dignos dessa experiência; já não a merecemos. “Perdemos toda razão para ser confiáveis.”12 Antes, consolávamos, protegíamos ou resgatávamos a família em suas lutas, mas agora não podemos prover assistência; nem sabemos como buscar a ajuda necessária. Pouco restou da condição de esposo ou cabeça de família. Perdemos o trabalho, o salário e a honrada função. “Senti-me emasculado”, confessou-me certa vez um cliente, acrescentando: “Minha esposa perdoou-me, sei muito bem. Sempre me sentirei perdoado, mas isso já não é inocência.” Somente Deus pode perdoar completamente.
Perda de inocência profissional. A derrocada é completa. “Embora o pastor seja humano (com todas as tentações e fraquezas de outras pessoas), por sua vocação, ele escolheu viver num plano mais elevado. Isso inclui o bem-estar dos membros e do bom nome da igreja na comunidade. Assim o efeito de um desvio sexual da sua parte é catastrófico nas pessoas envolvidas e devastador para a igreja e a comunidade. O tratamento dos traumas pode levar uma vida. Pode passar uma geração de desiludidos, antes que a fé da comunidade seja recuperada.”13
Contudo, a parte mais difícil da história é enfrentar Deus, a mais ferida e inocente dentre todas as vítimas. Estava certo Davi, quando disse: “Pequei contra Ti, contra Ti somente, e fiz o que é mal perante os Teus olhos” (Sal. 51:4). Foi contra a inestimável generosidade de Deus que Davi pecou quando roubou a esposa de Urias. Foi contra o mandamento de Deus que ele agiu rejeitando a autoridade divina. Davi sabia que mentiu diretamente a Deus: “Eis que Te comprazes na verdade no íntimo” (Sal. 51:6).
Sim, o mais difícil é enfrentar o Supremo Pastor, quando como subpastores agimos como lobos devoradores. E tão difícil que nosso instinto, nossa razão, nossos sentimentos, experiência e muitos amigos nos dizem: “Esconda-se atrás de uma folha de figueira. Vá para um outro lugar.” Mas onde podemos nos esconder? Uma folha de figueira não esconderá dEle a nossa nudez. Para onde podemos ir, se não para Ele? Agora é o tempo de oferecer um sacrifício aceitável a Deus.
Ao contrário de sacrifícios inúteis, “coração compungido e contrito, não o desprezarás, ó Deus” (Sal. 51:17). Nada além da intervenção de Deus pode restaurar nossa inocência. “Cria em mim, ó Deus, um coração puro e renova dentro em mim um espírito inabalável. Não me… retires o Teu Santo Espírito. Restitui-me a alegria da Tua salvação e sustenta-me com um espírito voluntário” (Sal. 51:10-12).
Referências:
1 Pamela Cooper-White, The Christian Century, 20/02/1991, pág. 199.
2 Ibidem, pág. 65.
3 Roy Hession, Forgotten Factors (Fort Washington: CLC, 2003), pág. 21.
4 Ibidem. págs. 22 e 23.
5 DouglasTodd, Vancouver Sun, 13/01/1994, Al.
6 Pamela Cooper-White, Op. Cit., págs. 196 e 197.
7 Roy Hession, Op. Cit., pág. 25.
8 Ibidem.
9 Shirley Feldman-Summers e Gwendolyn Jones, Journal of Consulting and Clinicai Psychology, 1984, págs. 105-161.
10 Marie Fortune, Is Nothing Sacred? (San Francisco: Haper and Row, 1989), págs. 99-107.
11 Ellen White, Patricarcas e Profetas, pág. 218.
12 Heather Bryce, Op. Cit., pág. 64.
13 Selma A. Chaij Mastrapa, Adventist Review, edição online:
vvww.adventistreview.org/2003-1509/storyl-2.html