A relação entre o jardim do Éden e o tabernáculo israelita

Ángel Manuel Rodríguez

O texto de Gênesis 2:4 a 3:24 contém terminologia e conceitos associados no Antigo Testamento à teologia do santuário. Isso levou alguns a sugerir que o Éden fosse “um tipo de arquétipo do santuário”.1 Embora o jardim não fosse um santuário no sentido em que o tabernáculo israelita era, encontramos nessa perícope os primórdios da teologia do santuário. A seguir, resumiremos importantes estudos exegéticos e teológicos sobre o assunto por teólogos não adventistas e exploraremos como suas ideias podem contribuir para uma compreensão melhor da doutrina do santuário.

Paralelos

Localização oriental. O jardim estava localizado na seção oriental do Éden (Gn 2:8) e, aparentemente, sua entrada também ficava para o leste (Gn 3:24).2 A entrada do santuário israelita também era voltada para o oriente (Êx 27:13-16).3 Em certo sentido, o portão do jardim funcionava mais como uma saída do que uma entrada, enquanto o portão do santuário era uma entrada, um retorno do leste.

Fonte de água. O Éden era uma fonte de água abundante (Gn 2:10). A água era usada no santuário para mantê-lo limpo e para a purificação dos sacerdotes. Havia uma pia perto de sua entrada (Êx 38:8).

Uma corrente de água às vezes é associada ao templo israelita (Sl 46:4). No Salmo 36:8 a 10, o santuário é descrito como “um lugar de refúgio da dureza da vida […] Observe que a palavra traduzida por ‘delícias’ (cadnêk) é simplesmente o plural de Éden. A corrente das delícias [de Deus] é identificada com a ‘fonte da vida’”.4 Assim, a água se torna um símbolo da vida e das bênçãos de Deus.5 Ezequiel tomou essa imagem e a associou ao templo escatológico do Senhor (Ez 47:1-12).6

Árvore da vida (Gn 2:9; 3:24). É geralmente reconhecido que a árvore da vida foi representada dentro do santuário pelo castiçal de ouro. Tinha sete ramos, e os cálices de cada ramo tinham a forma de flor de amêndoa, decoradas com pétalas e botões (Êx 25:31-36). “A presença de termos botânicos, e a forma básica de um eixo mais seis ramos dão a impressão de um objeto em forma de árvore.”7 Se essa compreensão estiver correta, então o jardim e o santuário eram lugares em que estava localizada a fonte da vida.8

Ouro e pedras preciosas. A narrativa do Éden menciona ouro e pedras preciosas (Gn 2:12). Os móveis do tabernáculo eram cobertos de ouro e uma das vestes do sacerdote era decorada com pedras preciosas (Êx 25:7, 13, 18, 24). Alguns encontram aqui elementos comuns compartilhados pelo jardim e pelo santuário.9 O termo “ônix” é usado em Gênesis e no contexto do santuário (Êx 28:9-12). A associação terminológica é válida e apoia a visão de que o jardim e o santuário compartilham algumas concepções fundamentais.

Querubins. Os querubins são mencionados pela primeira vez em Gênesis 3:24. Figuras de querubins foram usadas para decorar as cortinas internas do tabernáculo (Êx 26:1, 31), e duas delas faziam parte da arca da aliança (Êx 25:17-22).10 Eles estavam ali, como no Éden, como servos de Deus. Os querubins que ficavam na entrada do jardim eram um lembrete de que o Senhor ainda estava acessível às pessoas.

Guardando a entrada. A função dos querubins era “guardar [shamar] o caminho da árvore da vida” (Gn 3:24); isto é, proteger a santidade do jardim e o acesso ao símbolo da vida. Os levitas foram colocados ao redor do santuário para ter “o cuidado da guarda [shamar] do tabernáculo do testemunho (Nm 1:53, ACF). Eles eram responsáveis por proteger o tabernáculo contra qualquer pessoa que quisesse invadi-lo.11

Trabalho de Adão. Os seres humanos deveriam “cultivar [cabad] e guardar [shamar]” o jardim (Gn 2:15). Esses verbos também são usados juntos em Números 3:7 e 8; 8:26; 18:5 e 6 para descrever os deveres dos levitas em trabalhar, ministrar e guardar o santuário.12 Adão estava fazendo no jardim uma tarefa que mais tarde foi designada aos levitas.

Vestes de Adão e Eva. Após a queda, Deus providenciou vestes para Adão e Eva com a pele de animais (Gn 3:21). Nos serviços do santuário, a pele dos animais sacrificados, o couro, era dada aos sacerdotes oficiantes (Lv 7:8).

Dois outros termos usados no relato do jardim também são encontrados no contexto do tabernáculo. O verbo habitar [shakan] é usado em Gênesis 3:24 e Êxodo 25:8 (Deus queria habitar [shakan] entre os israelitas).13 Gênesis 3:8 diz que o Senhor “andava no jardim” (hithallek, “andar de um lado para o outro”; do verbo halak, “andar”). O mesmo verbo é usado em Levítico 26:12 e Deuteronômio 23:14 para descrever a presença divina no santuário. “O Senhor andava no Éden, assim como posteriormente andou no tabernáculo.”14

Ligações teológicas

Local de encontro entre Deus e a humanidade. De uma perspectiva teológica, o jardim do Éden era onde Deus e os seres humanos se encontravam em um relacionamento harmonioso. O jardim não era a morada de Deus,15 mas um lugar criado por Ele para os seres humanos, no qual eles deveriam morar (2: 8, 15).16

Encontramos ideias semelhantes no cenário do tabernáculo israelita. O santuário era onde Deus e os humanos se reuniam. Mas quando examinamos as similaridades entre o jardim e o santuário como locais de encontro, esses paralelos não são exatos.

O jardim foi criado por Deus. Os seres humanos habitavam nele. O Senhor os visitava, e havia perfeita harmonia nesse relacionamento. O tabernáculo foi construído por seres humanos. Deus habitava nele. As pessoas iam até o santuário para se encontrarem com Ele, e o objetivo da visita era restaurar ou preservar a relação entre elas e o Senhor.

A razão para essa diferença é que o jardim retrata a relação entre Deus e os seres humanos em um contexto livre de pecado e morte. O tabernáculo retrata a mesma relação no contexto do pecado e da morte. Agora, Deus era quem habitava com a humanidade, porque a humanidade havia rejeitado a morada que o Senhor criou para ela.

Os humanos são descritos como que retornando ao leste. Na Bíblia, o “oriente” pode ser um símbolo do bem ou do mal.17 É um lugar de escravidão, opressão (Ez 25:4) e idolatria (Ez 8:16). O retorno do oriente era um símbolo de submissão a Deus. Sempre que os israelitas iam ao santuário, estavam retornando à experiência original de harmonia e unidade entre Deus e os seres humanos que prevalecia no jardim do Éden. De fato, era um ato de redenção, uma recriação.

Atividade judiciária de Deus. No Éden, Deus atuou como Juiz. Os estudiosos descobriram em Gênesis 3:11 a 20 “um julgamento”,18 um processo legal,19 uma cena de juízo.20 Nessa cena, Deus age como promotor, investigando o crime cometido pelo casal.21 A história “segue passo a passo o procedimento de uma ação legal”.22 Há uma descoberta (v. 8-10), um interrogatório e defesa (v. 11-13) e, finalmente, uma sentença (v. 14-19).

O Senhor faz perguntas e investiga a natureza e a razão do crime cometido. Temos nessa história um juízo investigativo no qual Deus procura e analisa as evidências. Duas perguntas surgem nesse contexto: Ele já sabia sobre o pecado do casal? Se sabia, por que a investigação foi necessária?

Umberto Cassuto levantou essas questões e sugeriu que “uma vez que a narrativa subsequente retrata Deus como onipotente, é lógico que Ele não seja retratado aqui como Alguém que não tem conhecimento do que está ao Seu redor”.23 Ele acrescenta que “o Juiz de toda a terra chama o homem a fim de exigir dele um relato de sua conduta”.24 Segundo outros autores, o objetivo das perguntas é (1) estabelecer os fatos e “deixar claro para o homem e a mulher o que fizeram”;25 ou (2) permitir que “o próprio homem reconheça seu crime”;26 (3) ou melhor ainda, levar o culpado “a confessar sua culpa”.27

Esse é o primeiro julgamento registrado nas Escrituras e inclui uma investigação seguida por uma sentença e sua execução. Durante a apuração, Adão e Eva foram interrogados pelo Senhor, mas surpreendentemente a serpente não foi questionada; ela não foi julgada da mesma forma que o casal. O inimigo foi apenas condenado; uma sentença foi pronunciada contra ele.28 No santuário israelita, Deus atuava como Juiz de Seu povo e do mundo. De acordo com Deuteronômio 17:8 a 13, a “suprema corte”’ de Israel se reunia no tabernáculo e consistia em sacerdotes e um juiz. Deus confiou a eles Sua autoridade judiciária.

O plano da redenção revelado

Deus Se revelou no Éden não apenas como Juiz, mas também como Redentor. A morte de Adão e Eva deveria ter ocorrido imediatamente (Gn 2:17).29 A pena de morte não se esgotou quando Deus disse a Adão: “tu és pó e ao pó tornarás” (Gn 3:19). Essa morte, sem dúvida, pertence à penalidade do pecado; mas Gênesis 2:17 descreve algo além disso. A advertência divina “não foi ‘naquele dia você se tornará mortal’, mas ‘você morrerá’. Porém isso não aconteceu”.30 A vida de Adão e Eva foi prolongada porque “Deus permitiu que a graça prevalecesse”.31

Essa expressão de graça está encapsulada em Gênesis 3:15, que oferece garantia de uma nova vida. O fato de a serpente ser aqui um símbolo do mal e de que sua cabeça deve ser “esmagada” pelo Descendente da mulher sugere que haverá uma vitória final sobre o mal e a morte.32 Para a comunidade cristã, esse triunfo se tornou realidade em Cristo Jesus (cf. Rm 16:20; Hb 2:14; Ap 12). A morte final de Adão e Eva não foi efetivada porque Cristo é o “Cordeiro que foi morto desde a fundação do mundo” (Ap 13:8).

Gênesis 3:21 também poderia estar apontando, de maneira pictórica, para essa promessa de salvação: “Fez o Senhor Deus vestimenta de peles para Adão e sua mulher e os vestiu.” Nudez e vestimentas são temas importantes nas narrativas da criação e da queda.

Antes da queda, a nudez era a condição natural de Adão e Eva (Gn 2:21). Eles eram livres para se aproximarem de Deus e interagirem entre si e com o restante da criação sem ter que mediar sua presença através da roupa. Após a queda, a nudez se tornou antinatural, permanecendo como símbolo de sua alienação de Deus. Eles não podiam se aproximar do Senhor porque sua natureza havia sido alterada em virtude da rebelião. Uma metamorfose foi necessária, simbolizada pelo ato de serem vestidos.

Deus rejeitou as vestes com folhas confeccionadas por Adão e Eva e os cobriu com peles de animais. O Senhor provê meios para que o casal se aproxime Dele (cf. Êx 28:42, 43). Na Bíblia, vestir alguém sinaliza a concessão de um novo status (cf. Gn 41:42; Êx 28:40, 41; Lv 8: 7, 13; Nm 20:26).33

Assim, a atitude divina elevou Adão e Eva de um estado de alienação para uma condição em que eles podiam interagir com Deus. O Senhor lhes estava restaurando um pouco da dignidade que haviam perdido.34 Obviamente, a interação não seria a mesma, mas apontava para um tempo futuro em que o relacionamento será totalmente restaurado.

Ao afirmar que Adão e Eva estavam vestidos com peles de animais, o texto afirma implicitamente que pelo menos um animal foi morto. O fato de isso não ser claramente indicado não deve prejudicar sua importância. A narrativa bíblica parece estar “antecipando a noção de sacrifício na matança de animais”.35

Quando consideramos Gênesis 3:21 em seu contexto teológico, a morte implícita do animal se torna realmente um ato de sacrifício. Em primeiro lugar, era esperado que Adão e Eva experimentassem a morte final (Gn 2:17). Contudo, a vida deles foi preservada. É justamente nesse contexto de risco de morte que ocorre o sacrifício de um animal. Eles não sofrem a pena de morte, mas um animal morre.

Na sequência, a morte do animal não é um detalhe acidental na narrativa; mas fornece o que Adão e Eva precisavam para restaurar o relacionamento com Deus. Da morte vem a esperança e a restauração para eles.

Finalmente, o fato de que Deus fez as roupas e os vestiu sugere que o Senhor fez por eles o que foram incapazes de fazer por si mesmos. Ele estava graciosamente habilitando-os a se aproximarem Dele. Esses conceitos pertencem à teologia do santuário e de seus serviços no Antigo Testamento. De fato, o que é embrionário ou sugerido em Gênesis 3 se torna um corpo teológico consistente no sistema sacrifical israelita.

Conclusão

O relato do Éden fornece alguns dos elementos mais importantes para o desenvolvimento de uma teologia do santuário e seus serviços no sistema de adoração israelita. As ligações linguísticas, bem como o uso de imagens similares, apontam para a estreita conexão entre os dois. Esse vínculo é ainda mais forte em nível teológico.

O jardim e o santuário são um centro da vida porque o Senhor está presente em ambos. São lugares em que Deus e os seres humanos podem se unir para estabelecer comunhão. Nos dois lugares, Deus julga o pecado de Seu povo e lhe promete redenção. De fato, o Senhor prefigura a natureza dessa salvação, concedendo-a simbolicamente através da morte de uma vítima sacrifical. O santuário israelita parecia apontar para a harmonia original que existia entre Deus e os seres humanos e, finalmente, para a restauração de todas as coisas.

O que é sugerido em Gênesis 3 se torna um corpo teológico consistente no sistema sacrifical israelita.

Referências

1 Gordon J. Wenham, “Sanctuary Symbolism in the Garden of Eden”, Proceedings of the World Congress of Jewish Studies 9 (1981), p. 19; Idem., Genesis 1-15 (Waco, TX: Word, 1987), p. 86.

2 Umberto Cassuto, A Commentary on the Book of Genesis: Genesis I-VI 8 (Jerusalém: Magnes Press, 1961), p. 174; Nahum M. Sarna, Genesis (Filadélfia: Jewish Publication Society, 1989), p. 30.

3 David Chilton, Paradise Restored: A Biblical theology of dominion (Tyler, TX: Reconstruction Press, 1985), p. 29; Wenham, “Sanctuary Symbolism”, p. 20.

4 Levenson, Sinai & Zion: An Entry into the Jewish Bible (Mineápolis, MN: Winston Press, 1985), p. 132.

5 Wenham, “Sanctuary Symbolism”, p. 22; Idem., Genesis 1-15 (Waco, TX: Word, 1987), p. 65.

6 Howard N. Wallace, The Eden Narrative (Atlanta: Scholars Press, 1985), p. 77, 78.

7 Carol Meyers, “Lampstand”, em David Noel Freedman (ed.), Anchor Bible Dictionary (Nova York: Doubleday, 1992), v. 4, p. 142.

8 Wenham, Genesis 1-15, p. 62; Frank B. Holbrook, “The Israelite Sanctuary” em Frank B. Holbrook (ed.), The Sanctuary and the Atonement (Silver Spring, MD: Biblical Research Institute, 1989), p. 31.

9 Cassuto, Genesis, p. 119, 120; Chilton, Paradise, p. 32-34; Wenham, Gênesis 1-5, p. 65.

10 Wenham, Genesis, p. 86.

11 Victor P. Hamilton, The Book of Genesis Chapters 1-17 (Grand Rapids: Eerdmans, 1990), p. 210.

12 Wenham, “Sanctuary Symbolism”, p. 21.

13 Wenham, Genesis, p. 86.

14 Wenham, “Sanctuary Symbolism”, p. 20.

15 Howard N. Wallace, Eden Narrative, p. 70-85; Idem., “Garden of God”, em Anchor Bible Dictionary, v. 2, p. 907.

16 Gerhard von Rad, Genesis (Filadélfia: Westminster, 1972), p. 78.

17 Leland Ryken, James C. Wihoit e Tremper Longman III (eds.), “East”, em Dictionary of Biblical Imagery (Downers Grove, IL: lnterVarsity, 1998), p. 225, 226.

18 Von Rad, Genesis, p. 91; Walter Brueggemann, Genesis (Atlanta: Knox, 1982), p. 49.

19 Claus Westermann, Genesis 1-11: A Commentary (Mineápolis, MN: Augsburgh, 1984), p. 253.

20 Sailhamer, “Genesis”, p. 52.

21 Hamilton, Genesis, p. 194.

22 Westermann, Genesis, p. 252.

23 Cassuto, Genesis (parte 1), p. 155.

24 Ibid.

25 Westermann, Genesis 1-11, p. 254, 255.

26 Hamilton, Genesis 1-17, p. 194.

27 Wenham, Genesis 1-5, p. 77.

28 Ver Westermann, Genesis 1-11, p. 255.

29 Wenham, Genesis 1-15, p. 68.

30 Von Rad, Genesis, p. 95.

31 Ibid.

32 Wenham, Genesis 1-17, p. 80.

33 Robert Oden, The Bible Without Theology: The theological tradition and alternatives to it (San Francisco: Harper and Row, 1987), p. 100, 101.

34 Ver J. Gamberoni, “Labesh”, em G. Johannes Botterweck, Helmer Ringgren, Heinz-Josef Fabry (eds.), Theological Dictionary of the Old Testament, (Grand Rapids: Eerdmans, 1995), v. 7, p. 462.35.

35 Sailhamer, “Genesis”, p. 58.

Nota: Texto publicado originalmente no site do Instituto de Pesquisa Bíblica. Usado com permissão.

Ángel Manuel Rodríguez, ex-diretor do Instituto de Pesquisa Bíblica