Notas para uma reflexão sobre as tecnologias na contemporaneidade

É senso comum dizer que uma característica marcante das sociedades desenvolvidas é a presença de tecnologias digitais. Contudo, o que essas tecnologias significam para a humanidade ainda é uma questão aberta. Tanto é assim que esse momento histórico já recebeu os mais diversos nomes, como sociedade pós-industrial, sociedade pós-moderna, era da comunicação e cibercultura, que são apenas os mais consolidados, cada um deles evidenciando diferentes ênfases.

A abordagem mais básica desse fenômeno, claro, é recorrer ao maniqueísmo incrustado no pensamento ocidental e situar as tecnologias digitais na dicotomia entre o bem e o mal, dizendo que elas são intrinsecamente boas ou más. Outra abordagem muito comum é dizer que elas são neutras, ou seja, que a questão é, na realidade, a forma de utilizá-las. Neste texto, discuto brevemente as tecnologias contemporâneas e sua inserção na sociedade a partir de outros pontos de vista.

As tecnologias digitais abrem possibilidades de autonomia para seus usuários que eram até então impensáveis na trajetória da humanidade. É desnecessário mencionar a quantidade de coisas que agora se pode fazer mais facilmente, sem depender de intermediários, por meio de tecnologias digitais. Essa constatação às vezes suscita a impressão de que tais tecnologias são em si democratizantes e, portanto, boas. É o que defendem alguns pensadores reconhecidos, como Domenico de Masi.1 Para essa perspectiva, essas sociedades estão retirando das mãos das elites a primazia do domínio da sociedade. Há quem diga, inclusive, que estamos entrando numa era “pós-capitalista”.

Ocorre que não é tão simples assim. Vejamos um exemplo. Embora a economia mundial ainda gere maior faturamento para empresas que atuam em outros setores, as organizações que produzem equipamentos ou serviços digitais estão subindo rapidamente nos rankings. Na realidade, elas já se tornaram as maiores empresas em outros quesitos. Apple, Amazon, Microsoft, Google (sob o nome Alphabet) e Facebook são atualmente, nessa ordem, as cinco maiores empresas do mundo em termos de valor de mercado.2 Ou seja, embora queiramos pensar que elas estão nos dando autonomia com seus produtos, essas empresas têm um modelo de negócios que as beneficia economicamente ainda mais do que a seus usuários. Isso não parece exatamente com uma democracia, cuja premissa é a de que o poder seja distribuído de forma mais igualitária, dando mais liberdade às pessoas.

Daí a constatação de Krishan Kumar, para quem, “até agora pelo menos, [a sociedade tecnológica] é uma sociedade projetada, como as antigas, por e para uns poucos: as ricas e poderosas classes, nações e regiões do mundo. […] Seus objetivos e efeitos são rigorosamente definidos pelos objetivos tradicionais das elites políticas e econômicas: expandir o poder do Estado, tanto contra seus próprios cidadãos quanto contra outras nações, e aumentar a produtividade e os lucros das empresas capitalistas, sobretudo através da criação de um mercado global integrado”.3 Portanto, a sociedade tecnológica não é, em si, uma revolução. Ela também foi forjada por elites políticas e econômicas que auferem grandes dividendos – em termos de poder – em função de o mundo ser organizado da forma (tecnológica) como está.

Existe o argumento de que as tecnologias digitais estão permitindo pelo menos uma grande produção e difusão de conteúdos alternativos, à margem do que desejam os centros de poder e os grandes conglomerados de mídia. Entretanto, os dados não são animadores. A maior parte dos conteúdos acessados na internet é dos mesmos grandes produtores de mídia que dominavam o mercado de informação anteriormente. Em 2010, 80% de todo o tráfego da internet mundial estava concentrado em 7% dos sites, e 67% deles eram controlados por corporações de mídia anteriores à existência da web. O quadro não mudou significativamente desde então.4

Diferentes possibilidades

Isso não significa necessariamente negar possibilidades libertadoras nas tecnologias digitais. É verdade que a opção mais comum é usar produtos e serviços de empresas que representam o pináculo do sistema vigente. Contudo, também há possibilidades mais descentralizadas, cujos maiores exemplos de sucesso talvez sejam iniciativas como a Wikipedia (em que a produção coletiva de conhecimento é pública, com gestão multilateral, em vez de ser propriedade de um grupo de acionistas) e os softwares livres (cujos códigos também não têm “dono”, podendo ser usados livremente por qualquer pessoa, como o sistema operacional Linux e a suíte LibreOffice, que é uma alternativa a softwares conhecidos como Word, PowerPoint e Excel). São sopros de uma lógica realmente diferente.

Além disso, mesmo que as empresas de mídia tradicionais ainda sejam mais favorecidas na economia de atenção da internet, é fato que, pelo menos, existe uma possibilidade maior de distribuir e ter acesso a informações alternativas. Há aí um potencial que, no mínimo, precisa ser explorado. É por essas e outras razões que não dá para dizer simplesmente que essas tecnologias são boas ou ruins para a sociedade. Deve-se analisar caso a caso, considerar suas potencialidades, mas também avaliar os usos reais que as pessoas estão fazendo. Mesmo assim, convém ressaltar que é muito cedo – e faltam evidências, na realidade – para falar que essas tecnologias contribuem para mais democracia e liberdade. Isso indica que, se conseguirmos transformar essa sociedade em uma ordem social melhor, isso virá não tanto pelas tecnologias disponíveis, mas pelas escolhas políticas e sociais dos cidadãos que a compõem.

A questão, então, passa a ser a seguinte: se as possibilidades de uma vida melhor viriam muito mais dos cidadãos do que das tecnologias, não podemos dizer, então, que essas tecnologias são neutras? A grande questão não é a forma como usamos a tecnologia?

Certamente essa dimensão existe. Podemos usar tecnologias mais democráticas, podemos decidir usá-las para estudar e, ainda, optar por um uso mais moderado, sem excessos. Essas são coisas que realmente podemos fazer. Mas há um aspecto fundamental que foge da nossa escolha. Trata-se da interferência dessas tecnologias na nossa noção do que é possível e impossível, em suma, do que é real.

Natureza e tecnologia

Um exemplo pode ilustrar o argumento. Se há 518 anos Pedro Álvares Cabral, estando em solo brasileiro, tivesse aparecido em tempo real para o rei Manuel I, que aguardava notícias em Lisboa, isso seria automaticamente interpretado como bruxaria. Como esse tipo de comunicação era considerado impossível, precisava-se explicar o fato com recurso a alguma outra dimensão do possível. A magia e a constante intervenção de entes sobrenaturais eram consideradas mais plausíveis.

Hoje em dia, esse fato é o mais banal. Com tudo o que vemos as tecnologias fazerem, ninguém questiona a comunicação em tempo real. Ou seja, independentemente do uso de tecnologias, nossa concepção do que é possível e impossível mudou, e isso está fora da nossa escolha. Quanto mais possibilidades descobrimos com o desenvolvimento tecnológico, mais somos tomados pela percepção de que as coisas materiais e naturais são substituíveis por sistemas tecnológicos. Se na comunicação em tempo real é nossa presença que se torna supérflua – substituível por textos, imagens e sons transmitidos por uma máquina –, no funcionamento do corpo descobrimos que até mesmo o coração pode ser dispensável, podendo ser substituído por máquinas sem grandes prejuízos para a manutenção da vida.5

Vamos descobrindo aos poucos, também, que uma série de outras funções da natureza podem ser alteradas à medida que desenvolvemos tecnologias digitais que permitem converter seus acontecimentos em informações. Ainda é forte o argumento de que raciocínios, sentimentos e emoções jamais poderão ser substituídos por códigos de computador. Mas também já existem diversas pesquisas avançadas nesse sentido.6 A evolução dos sistemas de inteligência artificial está tornando esse assunto cada vez menos consensual, mais controverso.

Ao considerarem fatos como esses, pensadores como Bruno Latour concluem que não há diferença entre natureza e tecnologia, o que significa que todos os segredos da realidade estão acessíveis para nós, desde que descubramos a forma correta de intervir nela.7 Embora a ação humana sempre tenha sido caracterizada por uma intervenção mais ou menos consciente no seu entorno, nossas tecnologias estão nos dando uma noção muito mais profunda do que é possível fazer.

Diante desse quadro, o leitor pode se sentir perdido e se perguntar qual seria a atitude correta perante as tecnologias e sua inserção no mundo atual. É uma preocupação legítima. Uma das principais respostas que se tem dado a respeito é a tradicional “não-tem-outro-jeito”, que significa normalmente aderir de corpo e alma. Entretanto, essa resposta esconde mais uma vez questões mais complexas. Primeiramente, como dito acima, há adesões e usos distintos. Determinadas escolhas tecnológicas podem reforçar a centralização de poder em alguns poucos grupos, enquanto outras podem favorecer uma sociedade mais democrática. Além disso, o “não-há-outro-jeito” mascara a existência de uma série de estilos de vida alternativos. Há muitas pessoas que rejeitam o smartphone e optam por celulares tradicionais para não ficarem conectadas o tempo todo à internet, evitando distrações no dia a dia e deixando de entregar informações valiosas sobre seus padrões de uso e consumo. E há até mesmo alternativas mais radicais, como a da permacultura, que adota um estilo de vida voltado para a comunidade local. Assim, reduz-se
bastante a necessidade de tecnologias produzidas em localidades distantes e do consequente consumo intensivo de energia, que contribui para o esgotamento de recursos da Terra. Portanto, é incorreto dizer “não tem outro jeito”. Tudo depende do estilo de vida que queremos, com quais interesses estamos alinhados. A depender da resposta, há uma série de alternativas.

Conclusão

Entretanto, em relação à concepção de possível e impossível que a tecnologia traz consigo, a coisa é mais complicada. Usar de uma ou de outra forma, ou ainda deixar de usar esses equipamentos, não vai mudar significativamente nossa concepção sobre o que é real. De certa maneira, estamos “reféns” dessa nova perspectiva de mundo. O que podemos fazer em relação a ela? Talvez a coisa mais importante é manter as possibilidades abertas. Quantas vezes na história da humanidade nossos antepassados estiveram convencidos de que tinham as explicações certas para o possível e o impossível? E quantas vezes já não foram surpreendidos pelo que veio depois? É lógico que agora é mais difícil, porque o desenvolvimento tecnológico parece se impor como uma realidade inexorável, parecendo que a única questão que resta é como usá-lo. Mas se não sucumbirmos ao silêncio e nos mantivermos fazendo perguntas, continuaremos abertos para outras possibilidades. Portanto, longe de ser uma questão meramente prática – a tradicional e pouco refletida ansiedade do “como usar as tecnologias” –, a tecnologia contemporânea é muito mais complexa e impõe uma agenda que, se levada a sério, obriga à reflexão detida. A conclusão ainda parece distante no horizonte. Por isso, mais do que nunca, é tempo de pensar e perguntar. 

Referências

1 Domenico de Masi. Criatividade e Grupos Criativos: Descoberta e invenção (Rio de Janeiro: Sextante, 2005).

2 Veja detalhes, inclusive os valores de mercado, em: <https://goo.gl/oHs6r8>.

3 Krishan Kumar. Da Sociedade Pós-industrial à Pós-moderna: Novas teorias sobre o mundo contemporâneo (Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006), p. 71.

4 Jonathan Hardy. Critical Political Economy of the Media: An introduction (Londres: Routledge, 2014).

5 Veja a matéria “À espera de transplante, americano vive 555 dias sem coração”, do G1, em: <https://glo.bo/a-espera-de-transplante>.

6 Veja, por exemplo, André Gorz, O Imaterial: Conhecimento, valor e capital (São Paulo: Annablume, 2005).

7 Bruno Latour. Agency at the Time of the Anthropocene. New Literary History, v. 45, n. 1, 2014.

Tales Tomaz, doutor em Meios e Processos Audiovisuais, é professor assistente do Unasp, EC