A homossexualidade em 1 Coríntios 6:9
Ekkehardt Mueller
O Novo Testamento tem vários textos que abordam direta ou indiretamente a questão do comportamento sexual entre pessoas do mesmo sexo, um assunto amplamente discutido atualmente. Entre eles, os mais importantes são a discussão de Jesus sobre o casamento heterossexual em Mateus 19 e Marcos 10, bem como as declarações de Paulo em Romanos 1:26, 27; 1 Coríntios 6:9 e 1 Timóteo 1:10. Neste artigo, vamos analisar o texto de 1 Coríntios 6.
A Nova Almeida Atualizada (NAA) traduz os versículos da seguinte maneira: “Ou vocês não sabem que os injustos não herdarão o Reino de Deus? Não se enganem: nem imorais, nem idólatras, nem adúlteros, nem afeminados, nem homossexuais, nem ladrões, nem avarentos, nem bêbados, nem maldizentes, nem roubadores herdarão o Reino de Deus” (1Co 6:9, 10).
A palavra “homossexual” é usada para descrever o relacionamento íntimo entre pessoas do mesmo sexo. Muitos tradutores entendem que dois termos gregos em 1 Coríntios 6:9 se referem a esse comportamento. Por exemplo, a Almeida Revista e Atualizada, a Almeida Corrigida Fiel e a Bíblia de Jerusalém traduzem como “efeminados” e “sodomitas”; a Tradução Ecumênica da Bíblia traduz como “efeminados” e “pederastas”; e a Nova Bíblia Viva, como “homossexuais” e “efeminados”. Outras traduções agrupam os dois termos: por exemplo, a King James Atualizada versa “nem os que se entregam a práticas homossexuais de qualquer espécie”; a Nova Versão Transformadora diz “se entregam a práticas homossexuais” e a Nova Versão Internacional, “nem homossexuais passivos ou ativos”. Parte dessa linguagem não é aceita na sociedade moderna, mas pelo menos parece haver algum consenso entre os tradutores da Bíblia que 1 Coríntios 6:9 descreve a prática homossexual.
Contudo, muitos afirmam que Paulo não se refere a relações homossexuais monogâmicas em que há respeito mútuo, mas condena a pederastia, a prostituição homossexual e as formas de homossexualidade exploradoras e desumanizadoras.1
Se isso for verdade, nem todas as relações íntimas entre pessoas do mesmo sexo seriam proibidas.2 Assim temos que olhar mais de perto para entender o que Paulo tinha em mente.
O contexto
Antigamente as pessoas não conheciam somente os chamados “homossexuais contingentes” (pessoas que não são homossexuais, mas que estão entediadas com a heterossexualidade e se envolvem com parceiros do mesmo sexo) e os “homossexuais situacionais” (pessoas que, por falta de encontros heterossexuais, recorrem a atos homossexuais), mas também tinham alguma noção a respeito da “homossexualidade constitucional” (homossexualidade que se diz permanente e pode fazer parte da constituição das pessoas). Essa ideia é encontrada no mito andrógino de Platão. Jenell Paris afirma: “A literatura e os artefatos antigos de gregos e romanos mostram relacionamentos duradouros, amorosos e sexuais entre pessoas do mesmo sexo que pertenciam à mesma classe social.”3
O contexto imediato da passagem em questão envolve 1 Coríntios 5 a 7, cujo assunto é a sexualidade humana. No capítulo 5, Paulo menciona um caso de incesto em Corinto. Ele considera obrigatória a legislação de Levítico 18, que discute incesto e homossexualidade, e insta a igreja de Corinto a desassociar o membro envolvido em um relacionamento incestuoso com sua madrasta.4
No fim do capítulo, o apóstolo apresenta em uma pequena lista de vícios quatro categorias diferentes (v. 10), sendo a primeira os “impuros”. Essa lista é ampliada no próximo versículo por dois grupos adicionais. Os cristãos devem se separar dos membros da igreja que praticam esses vícios. Em 1 Coríntios 6:9 e 10, Paulo expande a lista de vícios do capítulo anterior para dez grupos.5
A lista de 1 Coríntios 6:9 e 10 indica que “os injustos [que] não herdarão o reino de Deus” são os mesmos apontados nos dez grupos subsequentes. É possível que essa listagem possa ser dividida em duas partes, porque quatro dos cinco primeiros grupos cometem pecados sexuais, e o que resta comete idolatria. Esses pecados são discutidos em 1 Coríntios 5 a 7.
No versículo 9, dois grupos parecem estar envolvidos em má conduta heterossexual, enquanto outros dois grupos se referem a pessoas envolvidas em má conduta homossexual. “Adúlteros” se aplica a pessoas casadas, enquanto os “impuros” [pornoi, “fornicadores”] pode se referir a solteiros, se o termo não for usado em seu sentido mais amplo, abarcando os demais tipos de mau comportamento sexual. O restante do capítulo 6 alerta contra o relacionamento com uma prostituta.
Em 1 Coríntios 6:16, Paulo cita Gênesis 2:24, fundamentando a discussão sobre sexualidade na criação e no ideal divino para o casamento e as relações sexuais. O capítulo 7 continua descrevendo o casamento heterossexual, o celibato e o divórcio.6 A fim de evitar a porneia, que “cada um tenha a sua própria esposa, e cada uma, o seu próprio marido” (1Co 7:2). Não há espaço para a homossexualidade. “Mas, se não conseguem controlar-se, devem casar-se, pois é melhor casar-se do que ficar ardendo de desejo” (v. 9, NVI). Paulo se refere claramente ao matrimônio heterossexual.
O texto
A passagem de 1 Coríntios 6:9 e 10, como parte desse contexto maior, é baseada em Levítico 18, no relato da criação e na exposição de Jesus sobre casamento e divórcio (Mt 19:3-12; Mc 10:1-12). Embora a igreja de Corinto, com seus problemas relacionados à sexualidade, seja citada, a questão é mais ampla. A interconexão dos capítulos 5 a 7 e seu pano de fundo do Antigo Testamento implicam uma dimensão universal, não limitada ao tempo, cultura ou apenas a certas formas de homossexualidade. Toda a passagem é prescritiva e não apenas descritiva. Portanto, Thiselton sugere que 1 Coríntios 6:9 e 10 é “uma passagem ainda mais importante e fundamental do que Romanos 1”.7 Praticar a homossexualidade exclui permanentemente as pessoas do reino de Deus, assim como qualquer outro vício mencionado por Paulo.
Os dois termos que tratam da homossexualidade em 1 Coríntios 6:9 são malakoi e arsenokoitai.8 Malakoi é traduzido como “efeminado”, “aqueles que fazem de si mesmos mulheres”, “jovens/homens prostitutos”, “homossexuais (pervertidos)” e “catamitas”. A palavra normalmente significa “suave” ou “luxuoso” e aparece quatro vezes no Novo Testamento (Mt 11:8 [duas vezes]; Lc 7:25; 1Co 6:9). As referências nos Evangelhos apresentam o mesmo evento e descrevem pessoas em roupas finas. O significado da palavra deve ser determinado pelo seu contexto. Jones aponta para a literatura cristã posterior (1 Coríntios 6, Policarpo), onde o termo descreve uma pessoa indigna e poderia facilmente ser vista como efeminada.9 No entanto, ele admite: “Nada disso, é claro, nega a possibilidade de que o termo malakos incluísse o comportamento homossexual masculino.”10
Os malakoi não são apenas homens delicados, meigos ou fracos. A maioria dos intérpretes concorda que, em 1 Coríntios 6:9, esse termo se refere a homossexuais, especialmente a homens que desempenham o papel feminino em um relacionamento homossexual.11 No versículo 9, malakoi está cercada por outras palavras referentes ao comportamento sexual e homossexual, o que indica que ela também tem um significado sexual e deve ser entendida como algum tipo de comportamento homossexual.12 Gagnon vê isso confirmado na literatura extrabíblica, por exemplo em Filo, no primeiro século da Era Cristã.13 No entanto, restringir malakoi a crianças e à pederastia, como alguns fazem, não é apenas uma interpretação especulativa, mas insustentável.14
O termo arsenokoitai ajuda a definir malakoi. É uma expressão única, encontrada apenas nos textos de Paulo.15 De fato, o apóstolo pode realmente tê-la inventado. A palavra remonta a Levítico 18:22 e 20:13 (LXX). Lá, os termos arsēn e koitē que Paulo uniu formando apenas uma palavra, são encontrados separadamente.16 Uma tradução literal poderia descrever um homem deitado com outro na cama, tendo relações homossexuais. Seu significado não se restringe à pederastia.17 O arsenokoitai em 1 Coríntios 6:9 pode ser o parceiro ativo em um relacionamento homossexual.18
A severa penalidade por ser um malakos ou um arsenokoites, a exclusão do reino de Deus, indica que os dois termos se referem a homens adultos que, por livre e espontânea vontade, seja por orientação inata ou não, mantêm relações homossexuais.19
Malick observa: “Embora a escolha de Paulo das palavras ἀρσενοκοῖται e μαλακοί permita uma aplicação ao abuso da pederastia em seus dias, as palavras realmente denotam um campo de referência mais amplo, incluindo todos os homens que têm relações sexuais com homens. Os pressupostos ilógicos de que (a) todos os relacionamentos sexuais são iguais diante de Deus, (b) as descrições de Paulo são de práticas excessivas e (c) a homossexualidade é uma expressão da sexualidade aprovada biblicamente, são prerrequisitos necessários para a conclusão popular de que Paulo estava discutindo apenas ‘abusos’ no comportamento homossexual. O apóstolo Paulo condenou todas as relações homossexuais em sua lista de vícios em 1 Coríntios 6:9, ao abordar a necessidade de os coríntios julgarem aqueles que estavam entre eles.20
Conclusão
O ensino do Novo Testamento é comparável ao do Antigo Testamento. As duas partes das Escrituras concordam entre si. O Antigo Testamento contém textos que tratam claramente da homossexualidade; o mesmo acontece com o Novo Testamento. Ambos os conjuntos de textos não são limitados em abrangência e tempo e incluem todas as atividades homossexuais. Eles explicam que o comportamento homossexual é um pecado que demanda arrependimento e perdão.
Ao analisar 1 Coríntios 6:9 e 10, concluímos que o pano de fundo da criação e de Levítico 18 e 20 em 1 Coríntios 6, bem como o estudo do texto e seu vocabulário (v. 9), sugerem que, nessa passagem, homossexualidade inclui todas as formas de atividade homossexual e transcende uma aplicação limitada apenas à igreja de Corinto.21
Também é importante notar que a Bíblia não está interessada em discutir as causas ou os diferentes tipos de comportamento homossexual. Ela se concentra no próprio ato sexual entre pessoas do mesmo sexo biológico e declara que esse comportamento se opõe à vontade de Deus. Ela não lida com a atração homossexual enquanto a pessoa permanece celibatária, mas reconhece que é possível pecar com pensamentos impuros.22
Em 1 Coríntios 6:11, Paulo acrescenta a seguinte declaração a respeito das pessoas envolvidas em um ou mais dos vários vícios listados anteriormente: “Tais fostes alguns de vós; mas vós vos lavastes, mas fostes santificados, mas fostes justificados em o nome do Senhor Jesus Cristo e no Espírito do nosso Deus.” O apóstolo conclui que alguns membros da igreja de Corinto haviam se envolvido nessas atividades pecaminosas, incluindo a homossexualidade, mas desistiram desse comportamento e passaram a viver de maneira diferente.
Thiselton escreve: “Com base na distância entre o primeiro século e o século XX, muitos perguntam: ‘A situação abordada pelo autor bíblico é genuinamente comparável à nossa?’ Quanto mais os escritores examinam detidamente a sociedade greco-romana e o pluralismo das tradições éticas, mais a situação coríntia parece ecoar a nossa. […] O que fica claro na conexão entre 1 Coríntios 6:9 e Romanos 1:26 a 29 e seu pano de fundo no Antigo Testamento é o endosso de Paulo à visão de que a idolatria, ou seja, permitir que a autonomia humana construa valores acima dos compromissos da aliança com Deus, leva a um colapso dos valores morais em uma espécie de efeito dominó.”23
Embora os cristãos respeitem todas as pessoas, sejam heterossexuais ou homossexuais, eles tentam ficar longe do pecado.
Referências
1 Andreas J. Köstenberger, God, Marriage, and Family: Rebuilding the Biblical foundation (Wheaton, IL: Crossway Books, 2004), p. 216.
2 James B. De Young, Homosexuality: Contemporary claims examined in the light of the Bible and other ancient literature and law (Grand Rapids, MI: Kregel Publications, 2000), p. 10, 11.
3 Jenell Williams Paris, The End of Sexual Identity: Why sex is too important to define who we are (Downers Grove, IL: InterVarsity Press Academic, 2011), p. 57, 68.
4 O Concílio de Jerusalém (At 15) reconheceu a obrigatoriedade de Levítico 18 inclusive para os cristãos gentios.
5 Em todas essas listas, porneia é mencionada primeiro.
6 Anthony C. Thiselton, The First Epistle to the Corinthians (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 2000),
p. 447, 451.
7 Ibid., p. 447.
8 Ver, por exemplo, David F. Wright, “Homosexuals or prostitutes: The meaning of arsenokoitai (1 Cor 6:9; 1 Tim 1:10)”, Vigiliae Christianae, 38/2 (1984): 125-153; William L. Petersen, “Can arsenokoitai be translated by ‘homosexuals’ (I Cor 6.9: I Tim 1.10)”, Vigiliae Christianae, 40/2 (1986): 187-191.
9 John R. Jones, “‘In Christ there is neither…’: Toward the unity of the body of Christ”, em David Ferguson, Fritz Guy e David R. Larson (eds.), Christianity and Homosexuality: Some Seventh-day Adventist perspectives (Roseville, CA: Adventist Forum, 2008), parte 4-9.
10 Ibid., parte 4-10.
11 Joseph A. Fitzmyer, Romans (Nova York, NY: Doubleday, 1992), p. 287; Ronald M. Springett, O Limite do Prazer (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2007), p. 177-179.
12 William Loader, Sexuality in the New Testament: Understanding the key texts (Louisville, KY: Westminster John Knox Press, 2010), p. 30.
13 Robert A. J. Gagnon, “The Scriptural case for a male-female prerequisite for sexual relations: The New Testament perspective”, em Roy Gane, Nicholas Miller e H. Peter Swanson (eds.), Homosexuality, Marriage, and the Church: Biblical, counseling, and religious liberty issues (Berrien Springs, MI: Andrews University Press, 2012), p. 84.
14 Thiselton, The First Epistle to the Corinthians,
p. 449.
15 Em seu livro, De Young dedica um capítulo inteiro à discussão do termo (p. 175-214).
16 Köstenberger, God, Marriage, and Family, p. 216.
17 Gagnon, “The Scriptural case”, p. 87.
18 Thiselton, The First Epistle to the Corinthians,
p. 448-450; Dan Via e Robert Gagnon, Homosexuality and the Bible: Two views (Mineápolis, MN: Fortress Press, 2003), p. 83.
19 Ibid., p. 82.
20 David E. Malick, “The condemnation of homosexuality in 1 Corinthians 6:9”, Bibliotheca Sacra 150 (1993): 492.
21 Thiselton, The First Epistle to the Corinthians, p. 452.
22 Ver Mt 5:27-30.
23 Deve-se lembrar que em Romanos 1:26 e 27 não é mencionada apenas a atividade homossexual masculina, mas também feminina.
Nota: Texto publicado originalmente no site do Instituto de Pesquisa Bíblica. Usado com permissão.
Ekkehardt Mueller, diretor associado do Instituto de Pesquisa Bíblica