Um estudo sobre o significado de Mateus 24:40 e 41
Daniel Scarone
Como estudantes da Bíblia, sabemos que existem regras para ler e analisar as Escrituras. Uma delas é que devemos seguir um processo estruturado de interpretação, caso o texto assim exigir. Ao ler a carta de um familiar, geralmente não nos preocupamos com isso, porque conhecemos o escritor, e ele nos conhece. Podemos descobrir o significado da mensagem, mesmo que as palavras estejam mal-escritas, pois o relacionamento entre as partes torna mais fácil a interpretação. Contudo, quando há distância cultural, contextual e linguística entre leitor e escritor, o processo de interpretação se torna indispensável.
Outro critério que precisamos levar em conta ao analisar um texto é considerar o que é óbvio e o que não é em seu significado. Por exemplo, Jesus viu Mateus na coletoria e o chamou, dizendo-lhe: “Segue-me” (Mt 9:9). Provavelmente, já tenha havido muitas explicações teológicas complexas para esse versículo, mas o contexto nos diz algo simples: Mateus deveria deixar tudo e seguir Jesus. Assim, além da complexidade da explicação, há uma leitura simples refletida na “resposta” ao chamado, e o texto diz que ele deixou tudo e “O seguiu”. Esse é o significado literal e óbvio das palavras.
Um texto mal compreendido
Com isso em mente, chegamos a dois versículos bem conhecidos, mas compreendidos bem pouco: “Então, dois estarão no campo, um será tomado, e deixado o outro; duas estarão trabalhando num moinho, uma será tomada, e deixada a outra” (Mt 24:40, 41). Muitas interpretações variadas e complexas são aplicadas a esses dois versículos. Entretanto, o que Jesus estava dizendo realmente? O contexto da passagem é a questão introdutória dos discípulos. “Dize-nos quando sucederão estas coisas e que sinal haverá da Tua vinda e da consumação do século” (v. 3). Mateus 24 contém a resposta.
O texto em si é claro. As dificuldades de interpretação, porém, surgiram como resultado de explicações nunca antes defendidas por Jesus, como a ideia do “arrebatamento secreto”1 que, embora atualmente seja popular, não existia no primeiro século. Contudo, quando essa doutrina passou a ser ensinada, muitos começaram a acreditar nela, inclusive no contexto adventista do sétimo dia. Então, para contrapor a ideia do “arrebatamento secreto”, alguns passaram a argumentar que o “tomado” representa aqueles que serão julgados e condenados. Esse ponto de vista, entretanto, precisa ser avaliado com mais detalhes. Afinal, qual é o significado da afirmação de Cristo?
Análise textual
A passagem afirma claramente que, na segunda vinda de Cristo, Ele vai levar algumas pessoas com Ele: “um será tomado” (v. 40). Essa é a leitura natural do texto, que se encaixa muito bem com João 14:2 e 3: “Na casa de Meu Pai há muitas moradas. Se assim não fora, eu vo-lo teria dito. Pois vou preparar-vos lugar. E, quando Eu for e vos preparar lugar, voltarei e vos receberei para Mim mesmo, para que, onde Eu estou, estejais vós também” (ARA).
Assim, em primeiro lugar, o princípio da Bíblia como sua própria intérprete deve ser aplicado aqui. Isso significa que podemos encontrar ajuda na compreensão de textos difíceis usando outras passagens sobre o mesmo assunto que sejam mais claras.2 Desse modo, Mateus 24:40 e 41 pode estar claramente correlacionado com a promessa encontrada em João 14:3: “voltarei e vos receberei para Mim mesmo”.
Gerhard Hasel escreve: “Uma passagem difícil ou obscura não deve ser interpretada pela aplicação indiscriminada de outra passagem ou texto bíblico – um procedimento que só leva à confusão e contradição. No processo de uso do princípio da autointerpretação, comparar e interpretar passagem com passagem ou texto com texto, o estudioso deve ser guiado a estudar apenas as passagens ou textos que tratam do mesmo assunto.”3
Outro elemento na análise textual é como outras traduções apresentam o texto. Por exemplo, a Nova Versão Internacional diz: “E se Eu for e lhes preparar lugar, voltarei e os levarei para Mim, para que vocês estejam onde Eu estiver” (Jo 14:3). Já a versão Almeida Atualizada traz o versículo da seguinte maneira: “E, se Eu for e vos preparar lugar, virei outra vez, e vos tomarei para Mim mesmo, para que onde Eu estiver estejais vós também.” Na maioria das versões bíblicas, a tradução do verbo paralambanō expressa a ideia de “receber”.
Um terceiro elemento é a terminologia original. Em ambos os casos (Mt 24:40, 41; Jo 14:3), usa-se o verbo paralambanō, que significa “levar, tomar para si mesmo, unir a si mesmo”. Quando esse verbo é usado por Jesus, significa aceitação ou recebimento, não julgamento nem condenação.
O Theological Dictionary of The New Testament diz de paralambanō: “1. Com um objeto pessoal (somente Evangelhos e At.), ‘levar para si (ou consigo) mesmo’ (por exemplo, em comunhão íntima). Em declarações teologicamente significativas, é usado para se referir à recepção de Cristo pelo mundo, Jo 1:11, para a aceitação no reino de Cristo, 14:3; Mt 24:40s., cf. também Lc 17:34s.”.4 O significado de receber, como uma comunhão íntima, também é compartilhado por J. P. Louw e Eugene Nida, Joseph H. Thayer e William D. Mounce em seus dicionários de língua grega.
É evidente que o contexto apresenta uma divisão entre as duas palavras traduzidas como “tomados” e “deixados”. Por sua vez, a Vulgata Latina traduz paralambanō como assumetur, significando “ajuda”, “assistência” e “meios para ajudar”. Em contraste, traduz aphietai como relinquetur, ou “abandonar”.
Análise teológica
Em seu comentário sobre Mateus, William Hendriksen afirma: “O Senhor volta. De dois homens engajados no mesmo tipo de atividade, provavelmente trabalhando lado a lado no campo, um é levado. Ele é reunido pelos anjos para estar para sempre com o Senhor. O outro é deixado para trás, designado para a perdição eterna.”5
George A. Buttrick, em The Interpreter’s Bible, diz: “Assim, dois homens trabalhando na mesma vala são divididos, ou duas mulheres trabalhando no mesmo moinho: um é levado, e o outro é deixado. Tomado e deixado são palavras com uma ampla e não catalogada variedade de significados: um ligado à alegria e, o outro, à destruição.”6
O The Word Biblical Commentary declara: “Aqueles que são tomados estão entre os eleitos, que os anjos do Filho do Homem devem reunir em Sua vinda (v. 31), enquanto aqueles que são deixados aguardam a perspectiva do julgamento.”7
W. Davies e Dale Allison, em A Critical and Exegetical Commentary on the Gospel According to Saint Matthew, afirmam: “A primeira ilustração diz respeito a dois homens fazendo a mesma coisa; a segunda, a duas mulheres fazendo a mesma coisa. Os destinos divergentes mostram que o julgamento repentino de Deus anula similaridades externas. […] Por que um é levado (note o presente expressivo) e outro é deixado não é declarado, mas os versículos ao redor fornecem a resposta: um estava preparado, o outro não. […] Mas os justos são levados para se encontrar com o Senhor nos ares? Ou os ímpios são separados pelos anjos e lançados no fogo? A primeira opção é a mais provável. (1) Em Mateus, aphiēmi geralmente significa abandonar ou deixar. (2) Paralambanō significa ‘tomar (em segurança)’ em [Mt] 2:13, 14, 20, 21. (3) A imagem de anjos levando os santos para se encontrarem com o Filho do Homem provavelmente fosse comum no cristianismo apostólico. (4) Nos versículos 37 a 39 [de Mt 24], os que foram levados (para a arca) são salvos, enquanto aqueles que ficaram para trás perecem.”8
Ulrich Luz diz em seu comentário sobre Mateus 24: “Em relação ao ‘tomado’, os leitores pensam naquele que foi levado para o Senhor, sobre quem acabaram de ler (v. 31) e com o qual estão familiarizados por seu conhecimento da tradição judaica e cristã. Quanto ao deixado para trás, pensam na condição de estar perdido, que vem da separação final de Deus (cf. v. 41). O mesmo é verdade para as duas mulheres que, provavelmente, sejam da mesma família, por estarem fazendo juntas suas tarefas domésticas. Uma é levada do moinho para Cristo, a outra fica para trás, e isso significa morte e destruição.”9
Por sua vez, O Comentário Bíblico Adventista declara: “Um será tomado. Do gr. paralambanō, cujo significado literal é ‘tomar para si’ ou ‘levar consigo’, usado nos papiros com o sentido de receber ou tomar para si artigos que lhe pertencem. Paralambanō é usado em Mateus 17:1, quando Jesus levou consigo Pedro, Tiago e João, e com eles subiu ao monte da transfiguração. Em Colossenses 4:17, o verbo é usado em relação a um ministro cristão que recebe a comissão evangélica. Em João 4:3, paralambanō é empregado ao Jesus receber para Si os discípulos que O esperam. Em contraste, ‘levou’, em Mateus 24:39, vem de airō ‘levar consigo’, ‘remover’. Os salvos serão levados (v. 40) pelos anjos, que reunirão os ‘eleitos’ (ver em v. 31).”
“[…] O que Jesus quis dizer com ser ‘levado’ e ser ‘deixado’ é esclarecido pelo contexto. Aqueles que são deixados são os servos maus, que, em vez de continuar em suas atividades normais, após um suposto arrebatamento secreto, serão castigados e receberão sua parte com os hipócritas (v. 48-51).”
“Deixado. Do gr. aphiēmi, ‘mandar embora’, ‘dispensar’. O grego se opõe à ideia de que os justos serão deixados. Os justos são, literalmente, ‘recebidos’ e os ímpios, ‘dispensados’.”10
Ellen White escreveu: “‘Estando duas moendo no moinho, será levada uma, e deixada outra.’ ‘Então, estando dois no campo, será levado um, e deixado o outro’ (Mt 24:41, 40). Os justos e os ímpios devem estar associados no trabalho da vida. Mas o Senhor lê o caráter; Ele discerne quem são os filhos obedientes, que respeitam e amam os Seus mandamentos.”
“O observador pode não discernir a diferença, mas há Alguém que disse que o joio não deveria ser arrancado por mãos humanas, para não arrancar também o trigo. Deixai ambos crescer juntos até a ceifa. Então o Senhor enviará os Seus ceifeiros para arrancar o joio, e ajuntá-lo em molhos para ser queimado, enquanto o trigo é ajuntado nos celeiros celestiais.”
“Agora o joio e o trigo estão misturados, mas então, a única mão que os pode separar dará a cada um a sua verdadeira posição.”11
Conclusão
A evidência de Mateus 24:40 demonstra que os “tomados” são aqueles que Jesus vai levar com Ele, conforme a promessa encontrada em João 14:3. O uso grego de paralambanō indica que os “tomados” ou “recebidos” por Jesus são os salvos (ver 1Ts 4:17).
Apesar da popularidade da interpretação do “arrebatamento secreto”, relacionada a Mateus 24:40 e 41, uma leitura bíblica e contextual desses versículos expressa a grande verdade de que, enquanto os perdidos (os “deixados”), em última análise, enfrentam outro destino (Mt 24:28), os salvos (os “tomados”), quando Jesus vier, irão para casa, a fim de viver eternamente com o Senhor.
Referências
1 A ideia central da doutrina do arrebatamento secreto é que o cumprimento da última semana da profecia das 70 semanas de Daniel 9 ainda está no futuro. Essa doutrina também ensina que a igreja não passará pela grande tribulação. Ver Gerhard Pfandl, “The Rapture: Why it cannot occur before the Second Coming”, <https://tinyurl.com/yblql7ay>.
2 Gerhard F. Hasel, Understanding the Living Word of God (Mountain View, CA: Pacific Press, 1980), p. 76.
3 Hasel, Understanding the Living Word of God, p. 76.
4 Gerhard Kittel, ed., “C. παραλαμβανω in the NT”, Theological Dictionary of the New Testament, v. 4 (Grand Rapids, MI: Wm. B. Eerdmans Pub. Co., 1967), p. 13.
5 William Hendriksen, The Gospel of Matthew (Londres: Banner of Truth Trust, 1973), p. 870.
6 George Arthur Buttrick, ed., The Interpreter’s Bible, v. 7 (Nashville, TN: Abingdon Press, 1979), p. 553.
7 Donald A. Hagner et al., Word Biblical Commentary Matt 14–28 (Dallas, TX: Word Books, 1995), p. 783.
8 W. D. Davies e Dale C. Allison, A Critical and Exegetical Commentary on The Gospel According to Saint Matthew (Edimburgo: T & T Clark, 1997), p. 383.
9 Ulrich Luz, Matthew 21–28 (Mineápolis, MN: Fortress Press, 2005), p. 214.
10 Francis E. Nichol, ed., Comentário Bíblico Adventista do Sétimo Dia, v. 5 (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2015), p. 538, 539.
11 Ellen G. White, Testemunhos para Ministros e Obreiros Evangélicos (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2014), p. 234, 235.
Daniel Scarone, doutor em Teologia, é secretário ministerial associado para a Igreja Adventista no estado de Michigan, Estados Unidos