O protagonismo essencial de Cristo no livro do Apocalipse
Clacir Virmes Júnior
Quando tomamos algum livro para ler é natural começarmos pelo começo. A maior parte dos livros escritos, além da seção de agradecimentos, dedicatória e, talvez, um prefácio, apresenta uma introdução. Essa parte da obra tem como objetivo mostrar o tema geral do livro, sua importância e, eventualmente, um esboço de como a argumentação se dará nas páginas seguintes.
Em relação ao Apocalipse, a seção que se estende entre os versículos 1 e 8 do capítulo 1 pode ser considerada sua introdução.1 Conhecer esses versículos é de importância fundamental para a correta interpretação do último livro da Bíblia. De acordo com Jon Paulien, “os primeiros oito versos do livro do Apocalipse servem como sua introdução. Neles o autor, o apóstolo João, nos diz como devemos interpretar esse livro profético.”2
Neste artigo quero analisar apenas Apocalipse 1:1 a 3. Esses versículos mostram o conteúdo da revelação dada por Jesus, como essa revelação chegou até nós e com que propósito Cristo Se apresentou a João em Patmos, no fim do primeiro século da era cristã.
O que Jesus revela
O último livro da Bíblia inicia com três palavras gregas, traduzidas nas versões em língua portuguesa como “revelação de Jesus Cristo”. No Novo Testamento, o verbo apocalipto, de onde vem a palavra “apocalipse”, sempre denota uma revelação divina, algo que estava encoberto aos nossos olhos, mas que Deus, em Sua bondade, resolveu nos mostrar. Encerrando a epístola aos Romanos, Paulo disse que sua pregação sobre a graça divina e a salvação em Jesus Cristo foi um “apocalipse”, uma revelação de Deus (Rm 16:25-27).
De quem vem essa revelação? Qual é seu tema? A expressão “revelação de Jesus Cristo” pode significar duas coisas: que a revelação é dada por Jesus ou que o assunto da revelação é Sua pessoa.3 Em seu contexto imediato, o primeiro significado parece ser o mais correto. O texto correspondente,4 em Apocalipse 22:16, diz: “Eu, Jesus, enviei o Meu anjo para vos testificar estas coisas às igrejas. Eu sou a Raiz e a Geração de Davi, a brilhante Estrela da manhã”.
Ao mesmo tempo, João disse que essa revelação vem de Deus. De acordo com Apocalipse 1:1, quem deu a revelação a Jesus foi o próprio Pai. Isso é confirmado em Apocalipse 22:6: “Disse-me ainda: Estas palavras são fiéis e verdadeiras. O Senhor, o Deus dos espíritos dos profetas, enviou Seu anjo para mostrar aos Seus servos as coisas que em breve devem acontecer.”
Portanto, Jesus é o Mediador da revelação. Ele é tanto o Revelador quanto o Revelado. Além disso, a partir de Apocalipse 1:1, tudo gira ao redor da maravilhosa pessoa de Cristo: Ele anda entre os candeeiros (Ap 1:12-20); envia mensagens às igrejas (Ap 2–3); é entronizado em meio a aclamações (Ap 4–5); abre os selos (Ap 6–8:1); luta contra o dragão (Ap 12:7-12); vem como um cavaleiro vitorioso (Ap 19:11-20); destrói Satanás (Ap 20:1-10) e traz a Nova Jerusalém (Ap 21–22). Portanto, na frase “revelação de Jesus Cristo” temos os dois significados: Ele é o Revelador e a revelação, o que traz as boas-novas e seu próprio conteúdo.5
As três primeiras palavras do livro mostram muito mais do que os perigos dos últimos dias. O foco da última profecia é Cristo – Seu amor, Sua graça, Seu constante cuidado. Isso deveria ser um norteador hermenêutico ao estudarmos todas as profecias do Apocalipse. Se não descobrirmos qual é o papel central de Jesus em cada uma delas, estaremos estudando o livro de maneira equivocada.
Como Jesus Se revela
Como Jesus Se revelou no Apocalipse? Há certa complexidade na maneira com que o livro chegou às nossas mãos (Ap 1:1). Em primeiro lugar, Deus é o originador da profecia. Ele, então, entregou essa revelação para Cristo. Por sua vez, Jesus enviou Suas mensagens por meio do Seu anjo, que entregou os oráculos divinos para João, o profeta. Na sequência, o apóstolo comunicou a revelação às igrejas da Ásia Menor e, por fim, temos acesso à mensagem do último livro da Bíblia.
O que essa aparentemente intrincada hierarquia pode significar para nós? Em primeiro lugar, João não é a mente por trás do Apocalipse. Deus é seu Autor. Apocalipse 1:2 indica que o apóstolo considerava seu livro como a “Palavra de Deus e o testemunho de Jesus”. A locução “Palavra de Deus” e seus equivalentes (“Palavra do Senhor”, “dito do Senhor”, “sentença do Senhor”, etc.) é uma expressão técnica para autenticar a origem divina das profecias bíblicas do Antigo Testamento. Além disso, os profetas ligavam a expressão “Palavra do Senhor” à uma experiência de visão profética, como João fez (cf. Zc 1:1; Mq 1:1).
Portanto, a mensagem do Apocalipse é divina. Para compreendê-la, é preciso reconhecer que o Apocalipse, assim como todos os outros livros da Bíblia, não é meramente um amontoado de palavras humanas (2Pe 1:21). Sua mensagem tem origem em Deus e, para entendê-la, precisamos do auxílio divino. Devemos orar para que o Senhor abra nossa mente para que possamos compreender Sua vontade.
Isso deveria nos fazer pensar em como temos visto não só o Apocalipse, mas toda a revelação divina. Como temos nos aproximado da “Palavra de Deus” e do “testemunho de Jesus” (Ap 1:2)? Reconhecemos que ele é, de fato, a “revelação de Jesus Cristo”? Ter uma atitude de oração antes de nos aproximarmos da Bíblia para a estudarmos reforça em nós a ideia de que o texto que temos em mãos não é algo comum e que precisamos da ajuda divina para absorver suas mensagens.
Por quê Jesus Se revela
No versículo 3 está a primeira bem-aventurança de sete6 encontradas ao longo do Apocalipse: “Bem-aventurados aqueles que leem e aqueles que ouvem as palavras da profecia e guardam as coisas nela escritas, pois o tempo está próximo.” João se referiu ao ambiente da igreja no primeiro século.7 Naquela época, poucas pessoas eram alfabetizadas. Para que as mensagens apostólicas, e mesmo as dos profetas do Antigo Testamento, chegassem ao conhecimento dos irmãos, havia muita leitura em voz alta da Palavra de Deus. A primeira parte da bem-aventurança se refere a essa prática. O Senhor prometeu bênçãos aos encarregados de ler as Escrituras e àqueles que se reuniam para ouvi-las.
Hoje poderíamos aplicar essa bênção ao ambiente das reuniões da igreja. Onde quer que ela se reúna, esse deve ser um ambiente para crescer no conhecimento de Deus. Há bênçãos especiais tanto para os pregadores da Palavra quanto aos que tiram tempo para ouvir os mensageiros. Contudo, a principal bênção está na última parte do versículo: o mais importante é colocar em prática a revelação de Jesus Cristo. Ler e ouvir a Bíblia é apenas um passo preliminar para a grande bênção que só vem com a obediência. Felizes são aqueles que “guardam as coisas nela escritas” (Ap 1:3).
O propósito da revelação de Jesus é claro: “mostrar aos Seus servos as coisas que em breve devem acontecer” (Ap 1:1), porque “o tempo está próximo” (Ap 1:3). Essa frase é o primeiro sinal da íntima ligação entre os livros de Apocalipse e Daniel.8 Daniel 2:28 afirma: “Há um Deus no Céu, o qual revela os mistérios, pois fez saber ao rei Nabucodonosor o que há de ser nos últimos dias.” Jesus mesmo havia ligado essa sentença aos Seus discursos sobre a segunda vinda nos evangelhos (cf. Mt 24:6; Mc 13:7; Lc 21:9).
A grande revelação de Jesus no Apocalipse, além de Si mesmo, é de Seu breve advento. E esse momento está próximo (Ap 1:3; 22:10). Nesse ponto, uma das perguntas mais comuns é: “Ora, João escreveu isso há 2 mil anos e Cristo ainda não veio… Como o tempo pode estar próximo?”
A segunda vinda estava próxima no tempo de João e, hoje, mais do que nunca, sob três aspectos: (a) Jesus desejava retornar para Seus filhos naquele tempo; (b) os cristãos aguardavam Sua vinda naquele tempo; e (c) a volta de Jesus sempre deve ser vista da perspectiva do tempo que temos para nos relacionar com Ele, pois, para aquele que morre, o advento será como um “abrir e fechar de olhos” (1Co 15:52).
Por isso, a grande pergunta não é acerca da brevidade ou demora da vinda de Cristo. Em Sua infinita sabedoria, Deus nos deu avisos sobre a proximidade do advento. Essa é uma das funções do Apocalipse. Acima de tudo, porém, esse livro foi dado para nos preparar para Sua vinda. A grande pergunta é: minha vida pertence a Jesus? Tenho procurado a revelação de Sua Pessoa em minha vida? Estou obedecendo às ordens que Deus me deu em Sua Palavra?
Conclusão
A partir deste breve estudo, podemos destacar as seguintes implicações de Apocalipse 1:1 a 3. Em primeiro lugar, o centro e o principal assunto do último livro profético da Bíblia é Cristo. Ele é a lente pela qual todos os símbolos da profecia precisam ser vistos. Qualquer interpretação que deixe de fora o papel de Jesus na história e, especialmente, nos últimos eventos, é indigna de consideração.
Além disso, o Apocalipse é um livro inspirado, como toda a revelação bíblica. Sua mensagem aborda o relacionamento de Deus com Seu povo, de maneira especial durante os últimos eventos da história terrestre. O fato de ele ter sido enviado “para mostrar aos Seus servos as coisas que em breve devem acontecer” demonstra quanto o Senhor os ama.
Por fim, uma interpretação do Apocalipse que não mostre a esperança nele retratada não faz jus ao seu propósito. Ele não foi escrito para amedrontar ninguém, mas para dar alegria e encorajamento. Ele apresenta a vitória final de Deus sobre o mal e o pecado. O Revelador, revelado nele, salvará Seus filhos e os levará para um lugar, uma vida e um futuro melhores.
Referências
1 Ranko Stefanovic (Revelation of Jesus Christ: Commentary on the book of Revelation, 2ª ed. [Berrien Springs, MI: Andrews University Press, 2009], p. 51-77) considera Apocalipse 1:1 a 8 o prólogo do livro, e os versículos 1 a 3 a introdução. G. K. Beale (The Book of Revelation: A commentary on the greek text, NIGTC [Grand Rapids, MI: Eerdmans: Carlisle, UK: Paternoster Press, 1999], p. 108) reconhece que esse é o consenso, mas designa toda a seção de Apocalipse 1:1 a 20 como prólogo. Mesmo assim, ele considera Apocalipse 1:1 a 3 a introdução do livro também.
2 Jon Paulien, Seven Keys: Unlocking the secrets of Revelation (Nampa, ID: Pacific Press, 2009), p. 11.
3 Em grego, a construção Apokalypsis Iēsou Christou pode ser tanto um genitivo objetivo quanto um genitivo subjetivo. Em outras palavras, a expressão Iēsou Christou é a origem do termo Apokalypsis (genitivo objetivo) ou pode ser o assunto da primeira palavra (genitivo subjetivo).
4 Vários autores têm demonstrado o inter-relacionamento entre a primeira e a segunda metade do Apocalipse: Elisabeth Schüssler Fiorenza, “Composition and Structure of the Book of Revelation,” CBQ 39.3 (1977): 344-66; Kenneth A. Strand. “As Oito Visões Básicas,” em Estudos sobre Apocalipse: Temas introdutórios (Engenheiro Coelho, SP: Unaspress, 2017), p. 45-61; C. Mervyn Maxwell, Uma Nova Era Segundo as Profecias do Apocalipse (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2002), p. 55-64.
5 Stefanovic, Revelation of Jesus Christ, p. 54.
6 Ap 1:3; 14:13; 16:15; 19:9; 20:6; 22:7; 22:14.
7 Simon Kistemaker, Apocalipse (São Paulo, SP: Cultura Cristã, 2014), p. 109.
8 Beale, The Book of Revelation, p. 181.
Clacir Virmes Junior, mestre em Ciências das Religiões, é professor de Novo Testamento na Faculdade de Teologia da Fadba