A travessia a nado do Canal da Mancha, entre Inglaterra e França, é considerada uma das ultramaratonas aquáticas mais difíceis do mundo. Por isso, é chamada de “Everest das águas”. Para percorrer os cerca de 33 km, o atleta precisa vencer a correnteza, as ondas e as baixas temperaturas. Muitos, inclusive brasileiros e sul-americanos, já completaram a façanha, enquanto outros morreram tentando. Curiosamente, houve também aqueles que desistiram muito perto de alcançar o objetivo.
Algo semelhante acontece na vida ministerial. Há aqueles que completam a carreira (2Tm 4:7), passando a desfrutar a merecida jubilação (palavra que vem do latim jubilatio e remete à “alegria, exultação, júbilo”). Outros, por uma fatalidade, tombam no cumprimento do dever, encerrando sua missão na Terra. E há aqueles que, infelizmente, por outros motivos, não completam a carreira nem mantêm a fé.
Sem dúvida, a figura pastoral é um dos alvos mais visados por Satanás. Se, conforme disse Ellen White, “a mais elevada de todas as obras é o ministério”, não poderíamos esperar menos (Obreiros Evangélicos [CPB, 2024], p. 63). E quanto maior for sua influência, mais suscetível estará o pastor! Como lembrou Emilson dos Reis, em entrevista à Revista Adventista de outubro deste ano, “o inimigo tem muitas estratégias para prejudicar nosso ministério e até nos afastar definitivamente. Ele pode usar opositores e caluniadores, mas também aduladores. Pode usar o desânimo, mas também o aparente sucesso e a honra que nos elevam” (p. 6).
Um fato ocorrido há 180 anos deixou grandes lições para nós. Em outubro de 1844, muitos cristãos sinceros abandonaram a fé depois de passarem pelo grande desapontamento. Como líder desse movimento, Guilherme Miller, após pregar cerca de 4.500 sermões para um público estimado em meio milhão de pessoas ao longo de 12 anos, sendo destaque nos jornais da época (Fundadores da Mensagem [CPB, 1995], p. 22, 24), teve que enfrentar não apenas a decepção, mas também os críticos. Contudo, em uma carta a Joshua Himes, datada de 10 de novembro de 1844, ele assegurou: “Embora eu tenha ficado duas vezes desapontado, não estou abatido nem desanimado” (Sylvester Bliss, Memoirs of William Miller [J. V. Himes, 1853], p. 277).
Mais tarde, outras dificuldades lhe sobrevieram, como a perda da visão, mas nada disso foi capaz de apagar o brilho da esperança no retorno de Cristo. Isso o manteve focado. Ao compilar suas memórias, o biógrafo de Miller registrou a seguinte declaração do pioneiro: “Embora minha visão natural esteja escurecida, a visão da minha mente está iluminada com uma perspectiva brilhante e gloriosa do futuro” (Memoirs of William Miller, p. 367).
Dentre os vários aspectos que chamam a atenção na trajetória desse líder, destaca-se também seu amor pela Palavra de Deus, embora ele tenha se equivocado em algumas de suas interpretações. Certa vez, um líder religioso visitou sua casa e, como Miller estava ausente, pediu ao menos para conhecer sua biblioteca. Sua filha conduziu o visitante até a sala em que estava a escrivaninha do pai. Dois livros estavam sobre a mesa: uma Bíblia antiga e a Concordância de Cruden, que ele havia comprado em uma data emblemática, 1798, muitos anos antes de se tornar pregador. “Essa é a biblioteca dele”, disse ela. Miller tornou-se popular por causa de sua mensagem peculiar, o que demonstra que não devemos abrir mão de nossas crenças distintivas na tentativa de ganhar mais influência hoje.
Os pilares da nossa fé nos dão estabilidade nos momentos de crise e nos ajudam a vencer as ameaças sutis, além do desânimo, das frustrações e do orgulho.
Márcio Tonetti, editor associado da revista Ministério