Considerações sobre a soteriologia e antropologia paulinas a partir de Romanos 5:12
O texto de Romanos 5:12 afirma que o ser humano experimenta uma condição antagônica ao propósito original de sua existência. Assim, entender o alcance e o impacto dessa “condição” parece ser a base de uma concepção holística da realidade que nos leva, quase naturalmente, à consciência de eventos que transcendem a realidade humana e, portanto, a história do planeta. O contexto pós-queda, acentuadamente antropocêntrico e, ao mesmo tempo, argumentando a desmistificação do conhecimento, questiona a obra de Deus na vida do homem. Nesse cenário, Romanos 5:12 se apresenta com ares de fundamento, de uma teologia que busca transcender para vivificar. É assim que a fraseologia paulina emerge, não somente para dar respostas, mas também para expressar sentidos.
Observações exegéticas
A tese surge de caminhos e constantes tipológicas que, por meio de uma disposição argumentativa apriorística (é importante observar o marcador discursivo “por isso” [dià touto] no início do v. 12, que se refere aos v. 1-11), não deixam dúvidas sobre a responsabilidade humana acerca da terrível realidade dominante no planeta. A mudança do homem e seu meio são, como se apreende da terminologia paulina, consequências diretas da vontade humana (“transgressão” [parábasis, v. 14; paráptōma, v. 15-20], “desobediência” [parakoē, v. 19]). No fim do versículo 12, encontramos a significativa e amplamente discutida1 sentença “porque todos pecaram” (eph’ hō pántes hēmarton).
Parte do debate se fundamenta nas possíveis conexões sintáticas e, portanto, teológicas, da fórmula eph’ ho2 (em que/porque), a qual é traduzida de modo equivocado na Vulgata como in quo, “em quem” (gr. en hō),3 distinção linguística que, sem intenção de ser reducionista, acabou configurando o espaço hermenêutico no qual se desenvolveu o conceito de “pecado original”.4
Superando essa observação filológica bem conhecida, julgo que a construção “porque todos pecaram” (eph’ hō pántes hēmarton) articula uma realidade antropológica dual. As derivações hamartiológicas de Gênesis 3 têm achado confirmação e força coesiva (“pecaram” [hēmarton, aoristo constativo com sentido distributivo]) no desenvolvimento histórico por meio da experiência de cada ser humano (“e assim”… “passou” [kaì houtōs… diēlthen]). Como se entende a partir da leitura dessa passagem, o apóstolo observa no incidente de Gênesis 3, e suas derivações hamartiológicas, elementos de valor hermenêutico que lhe permitem articular a realidade humana tal e como a experimenta (etiologia).
Tendo esses antecedentes em mente, uma breve aproximação exegética do restante dos versículos que compõem essa perícope (v. 13-21) pode ser esclarecedora. No versículo 13, e longe de qualquer hermenêutica antinômica, a preposição genitiva achri (“até”) e, particularmente, a referência sinaítica por detrás do uso anartroso de nomos (“lei”), rompem como uma alusão ao contexto pós-queda pré-sinaítico. O dativo de esfera kósmos (“mundo”) descobre um âmbito em que, sob o domínio do pecado, o ser humano é moldado por um meio que o antagoniza a respeito de seu Criador presumindo, ao mesmo tempo, um distanciamento ativo em relação à Divindade. A preposição dativa en (“em”), apelando a seu sentido estativo primário, reforça a ideia de “estado” ou “condição” (nuance preposicional antecipada pelo imperfeito progressivo ēn [“estava”]).
Nesse sentido, a frase “(o) pecado estava em (o) mundo” [hamartía ēn en kósmo] transcende o estritamente temporal e espacial para definir um “cenário” cuja manifestação tem sido acentuada e contrastada pelo evento de maior envergadura nomológica na história de Israel, o Sinai. O apóstolo oferece, acolhendo como fundamento a proposição hermenêutica veterotestamentária, uma teologização da cotidianidade que o circunda. O marcador discursivo “mas” (allá), no início do versículo 14, estabelece um marco hermenêutico para o conteúdo teológico exposto no versículo 13. Assim, o aoristo constativo ebasíleusen (“reinou”) com o uso artroso de thánatos (“morte”) resume e conceitua, respectivamente, uma característica importante do contexto posterior à queda. Nessa conjuntura, o domínio semântico de parábasis (“transgressão”) atesta uma realidade “legislada” e, conjuntamente, destaca em sua dimensão volitiva a participação da raça humana a respeito do paradigma reinante no planeta.
No versículo 15, o apóstolo determina (“mas” [allá]), adverte (“não como”… “assim também” [ouch hōs… houtōs kaí]) e, de maneira superlativa, contrasta (“muito mais” [pollōi mallon]) a relação tipológica entre Adão e Jesus Cristo assinalada no versículo 14 (“tipo do vindouro” [typos tou mellontos]). De fato, o aoristo ingressivo apéthanon (“morreram”), a força instrumental de tō… paraptōmati (“transgressão”) e o sentido atributivo de tou henòs (“do um”) revelam um enredo que medeia a relação entre Deus e a raça humana. É assim que o versículo 16 aprofunda a transcendência (“não como” [ouch hōs]/“por um lado, pois” [mén gàr]) e o impacto soteriológico (“de um para condenação” [henós eis katákrima]/ “(a partir) de muitas transgressões” [ek pollōn paraptōmatōn]) da obra substitutiva e expiatória de Jesus.
Consequentemente, no versículo 17 Paulo aprofunda (“se pois… muito mais” [ei gàr… pollōi mallon]) sua construção cristológica, retomando (v. 14) o conceito de “reino” (basileuō) e definindo-o em sua extensão escatológica (“em [a] vida reinarão” [en zōē basileúsousin]). No versículo 18 pondera (“logo pois” [ára oún]) e contrapõe (“assim… assim também” [hós… houtōs kaì]) a ação divina mediadora (“por meio de um ato de justiça” [di’ henòs dikaiōmatos]), tornando explícito seu resultado salvífico (“para justificação de vida [eis dikaíōsin zōēs, genitivo epexegético]). O versículo 19, debatendo entre uma indiferença decidida (“desobediência” [parakoē] – protologia [“foram constituídos”, katestathēsan]) e uma “obediência” (hypakoē) que se descobre sensível à vontade divina (escatologia – “serão constituídos”, [katastathēsontai]), anuncia a restauração da raça humana. Em harmonia com o que foi expresso nos versículos 13 e 14, e no versículo 20, estamos diante de um hína (“para que”) ecbático (“para que aumentasse a transgressão” [hina pleonasēi to paraptōma]).5 A lei evidenciou, de maneira plena e inequívoca, a presença amarga e o efeito degenerativo do pecado no mundo. Como consequência, traz a nuance hamartiológica do aoristo ingresivo ebasíleusen (“reinou”), e o versículo
21 exibe (“assim como… assim também” [hōsper… houtōs kaì]) uma hermenêutica cuja reflexão soteriológica se apoia na obra e no senhorio de Cristo.
O apóstolo esboça um cenário, um entorno, um espaço, um contexto que, de maneira invasiva, perpetua uma realidade hamartiológica de clara projeção antropológica.
Conclusão
O discernimento soteriológico que ampara e dá sentido à antropologia paulina legitima claramente a intervenção escatológica de uma Divindade que se une com uma humanidade desvalida e despojada de sentido. Diante da impotência da raça humana, o poder salvífico de Deus se revela (“poder… para salvação” [dynamis…eis sōtērian, Rm 1:16]).6
Referências
- 1 Ver S. L. Johnson Jr., “Romans 5:12 – An Exercise in Exegesis and Theology”, em New Dimensions in New Testament Study, ed. R. Longenecker e M. Tenney (Grand Rapids, MI: Zondervan, 1974), p. 298-316.
- 2 Em termos gerais, interpreta-se eph’ hō como uma contração de epí toútō hóti, “pela razão que” (F. Blass, A. Debrunner e R. W. Funk, A Greek Grammar of the New Testament and Other Early Christian Literature [Chicago: University of Chicago, 1961], p. 154). Ver também H. W. Smyth, Greek Grammar (rev. Gordon M. Messing; Cambridge, MA: Harvard University Press, 1956), p. 512; C. F. D. Moule, An Idiom Book of New Testament Greek, 2ª ed. (Cambridge, MA: Cambridge University Press, 1959), p. 132; M. E. Thrall, Greek Particles in the New Testament: Linguistic and Exegetical Studies (NTTS 3; Leiden: E. J. Brill, 1962), p. 93, 94; J. H. Moulton e N. Turner, A Grammar of New Testament Greek, (Edinburgh: T. & T. Clark, 1963), 3:272; M. Zerwick, El Griego del Nuevo Testamento, 4a ed. (Estella, Navarra: Verbo Divino, 2006), p. 68; M. J. Harris, Prepositions and Theology in the Greek New Testament (Grand Rapids, MI: Zondervan, 2012), p. 139,
140. Em nível sintático, eph’ hō introduz a causa ou razão do que foi expresso na cláusula principal. - 3 R. Weber e R. Gryson, eds., Biblia Sacra Luxta Vulgatam Versionem (Stuttgart: Deutsche Bibelgesellschaft, 2007), p. 1755 (in quo omnes peccaverunt). Para o texto grego ver E. Nestle et al, eds., Novum Testamentum Graece (28 rev. ed., Stuttgart: Deutsche Bibelgesellschaft, 2012), p. 490 (eph’ hō pántes hēmarton). Uma tradução latina apropriada de eph’ hō teria sido quia. Cf. P. G. W. Glare ed., Oxford Latin Dictionary (Oxford: Clarendon Press, 1968), p. 1550.
- 4 V. Capanaga et al, eds., Obras Completas de San Agustín (Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 1949), 6:389-459.
- 5 A lei não “gerou” (hína télico) um cenário pecaminoso; de fato, ela “evidenciou” (hína ecbático) uma realidade pós-queda já consolidada.
- 6 “Ao serem os resgatados recebidos na cidade de Deus, ecoa nos ares um exultante clamor de adoração. Os dois Adões estão prestes a encontrar-se. O Filho de Deus Se acha em pé, com os braços estendidos para receber o pai de nossa raça – o ser que Ele criou e que pecou contra o seu Criador, e por cujo pecado os sinais da crucifixão aparecem no corpo do Salvador. Ao divisar Adão os sinais dos cruéis cravos, ele não cai ao peito de seu Senhor, mas lança-se em humilhação a Seus pés, exclamando: ‘Digno, digno é o Cordeiro que foi morto!’” (Ellen G. White, O Grande Conflito [Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2014], p. 647).