O legado hermenêutico da Reforma Protestante

Sem dúvida, a Reforma Protestante foi um movimento ímpar na história devido sua repercussão global. Ele rompeu com uma época e inaugurou novos horizontes. A Bíblia foi amplamente divulgada em boa parte da Europa. O que antes era um desafio ao clero, agora se tornava o alvorecer do despertamento religioso cristão. Entre seus muitos personagens, destaca-se Martinho Lutero.

Em homenagem aos 500 anos da Reforma, este artigo aborda seus antecedentes históricos, a relação de Lutero com as Escrituras e o legado hermenêutico que impactou os alicerces do cristianismo.

Antecedentes históricos

As raízes da Reforma possuem fatores geográficos, políticos, econômicos, sociais, intelectuais e religiosos. Internamente, havia um declínio moral dos clérigos desde o “cativeiro babilônico e o grande cisma”, o surgimento das Nações-Estado, as experiências místicas de renovação, os altos impostos papais e até o fracasso no atendimento das necessidades populares pela igreja. Externamente, o espírito humanista da Renascença, o nacionalismo e a expansão geográfica mundial formaram as forças de oposição ao catolicismo.1

Em síntese, a Reforma foi um movimento plural. Assim, não pode ser considerada um evento isolado; embora o aspecto religioso tenha sido a grande força propulsora. Esse aspecto se caracteriza basicamente por ser um movimento heterogêneo entre o escolasticismo e o humanismo. No contexto, nota-se um resgate histórico da patrística e uma crítica acentuada em relação à Vulgata.Mesmo a igreja institucional tinha fortes expectativas quanto a um despertamento religioso.3 Existia uma sede por necessidades espirituais e pelo retorno às fontes primárias.4 Tal panorama descrevia um zeitgeist5 favorável a grandes mudanças. Certamente, todo esse quadro histórico em torno da Reforma trouxe a público uma crescente crise de autoridade.6

Durante a história do cristianismo, protestos nunca foram vistos com bons olhos pela igreja dominante. Um dos poucos grupos cristãos que não foram destruídos pelo catolicismo – porém isolados –, foram os valdenses.7 Esse movimento destacou o valor singular das Escrituras e sobreviveu ao tempo.

Como resultado da semente lançada por cristãos que se mantiveram fiéis durante a Idade Média, surgiram os precursores da Reforma nos séculos 14 e 15, como Wycliffe, Huss e Savonarola.8 Wycliffe e Huss – assim como Lutero – não toleravam o abuso da igreja por meio das indulgências. Por sua vez, Savonarola pregava contra a imoralidade papal.9 Existiam também os “frades de vida comunitária dos países-baixos que distribuíram cópias da Bíblia”, devido a contestações referentes aos estudos de Erasmo.10

Entretanto, somente no fim do período da Baixa Idade Média, no século 16, um grande fruto pôde ser colhido. Martinho Lutero não foi destruído, isolado ou calado. De fato, ele se tornou o principal reformador a abalar os alicerces da autoridade religiosa cristã medieval e a inaugurar publicamente a Reforma Protestante.

Lutero e as Escrituras

Martinho Lutero nasceu em 1483, em Eisleben, Alemanha. De família simples, era considerado um monge piedoso, erudito, dedicado e zeloso. Estudou música e teologia na Universidade de Erfurt. Como religioso, seguiu a ordem agostiniana e foi influenciado por Gregório Rimini. Como acadêmico, aceitou a erudição humanista de Jacques Lefèvre d’Étaples, Reuchlin e Erasmo, compartilhando seu entusiasmo no estudo de línguas.11 Em 1512, recebeu o título de doutor em Teologia.

Em seus dias, a renascença italiana trazia consigo uma reflexão artística que influenciou muitos cristãos quanto à eloquência na escrita e oralidade. Essa proposta essencialmente humanista enfatizou um retorno literário às fontes, contribuindo com a Reforma. Assim, houve uma valorização do estudo das línguas originais da Bíblia, em especial, do grego. Consequentemente, a Vulgata passou a ser severamente questionada pelos reformadores.12

Lutero desenvolveu um enfoque cristológico de interpretação da Bíblia, chegando a afirmar que as Escrituras se tornam a palavra de Deus por meio de Cristo. Com base nessa pressuposição,13 ele passou a crer na importância da experiência com Jesus para abrir o caminho da salvação e libertação.14

Por outro lado, o cristianismo normativo da Baixa Idade Média apropriava-se da mensagem cristã, definindo seu ensino e doutrina com base na apologética e na tradição. O catecismo utilizava a tradição escrita, os escritos apologéticos que mantinham inspiração e deviam ser seguidos nas igrejas e os escritos de alta posição.15 Dessa forma, para compreender as Escrituras e estabelecer as regras de fé
e prática, a igreja contava com a Vulgata e a tradição filosófica, gerando assim duas fontes de autoridade eclesiástica.16

Martinho Lutero, por sua vez, promoveu o lema sola Scriptura, não necessariamente contradizendo a igreja, mas atraindo um olhar especial para uma ideia Lex Christ, extraindo, essencialmente do Novo Testamento, um conceito focado somente na Bíblia. Assim, foi iniciado um processo de neutralização da tradição apologética e papal.17

Além disso, Lutero ainda enfatizou o sola fide e sola gratia aliados ao princípio sola Scriptura.18 Desse modo, ele resgatou a verdade sobre a justificação pela fé, relacionando a justiça divina em Salmo 31:1 com o elemento da fé para alcançar a salvação em Romanos 1:17. Por isso, ele dizia que o Antigo Testamento refletia a lei e, o Novo Testamento, o evangelho.19

A divergência entre o pensamento de Lutero e a compreensão católica em relação às Escrituras inevitavelmente levou a um racha entre as partes. A princípio, o reformador não desejava romper com Roma; contudo sua declaração de que a única autoridade no debate teológico não deveria ser o papa ou a igreja, mas a Bíblia, possivelmente foi a razão pela qual Roma rompeu com Lutero.20 O conceito da autoridade suficiente da Bíblia exerceu uma forte reflexão sobre a autointerpretação das Escrituras.21 A essência do protesto foi que somente a Bíblia é a norma final para avaliar e julgar a tradição e a razão.22

Legado da Reforma

Lutero resgatou a verdade sobre a justificação pela fé, iniciando um processo de Reforma a partir das Escrituras Sagradas. Os efeitos podem ser vistos pelas muitas traduções da Bíblia em diversas línguas. As Escrituras se tornaram o livro mais impresso e promovido do mundo, e o brado sola Scriptura ecoa por todas as partes.

As comunidades cristãs posteriores,23 infelizmente, restringiram-se ao estudo da justificação pela fé no Novo Testamento e ao pensamento de que a filosofia e a lógica aristotélica são relevantes no processo interpretativo.24 Entretanto, era preciso avançar mais.

Entre os muitos grupos cristãos, os adventistas do sétimo dia, segundo Alberto R. Timm, “são aqueles que melhor prosseguem no caminho da Reforma”.25 Isso pode ser evidenciado por alguns fatos da história denominacional. Em 1974, em uma das mais importantes Assembleias da Associação Geral dos Adventistas do Sétimo Dia, foi publicado um volume intitulado Symposium on Biblical Hermeneutics, no qual Don Neufeld enfatiza alguns princípios gerais de interpretação, entre eles o sola Scriptura.26 Mais tarde, no ano 2000, a igreja lançou o Tratado de Teologia Adventista do Sétimo Dia, que reforça outro princípio fundamental: a iluminação do Espirito Santo para a interpretação das Escrituras.27

O próprio Manual da Igreja afirma: “Os Adventistas do Sétimo Dia aceitam a Bíblia como seu único credo e mantêm certas crenças fundamentais como sendo o ensino das Escrituras Sagradas. Essas crenças […] constituem a compreensão e a expressão do ensino das Escrituras por parte da Igreja. Eventuais revisões destas declarações podem ocorrer em uma assembleia da Associação Geral, quando a Igreja for levada pelo Espírito Santo a uma compreensão mais completa da verdade bíblica ou encontrar melhor linguagem para expressar os ensinos da Santa Palavra de Deus.”28

A influência “histórico-gramatical” da Reforma é um importante legado que devemos considerar em nossa construção teológica. Somente a Escritura deve ser a fonte de pressuposições e o princípio cognitivo para se fazer teologia.30 Enfim, o legado de Lutero deve nos motivar a dar continuidade na busca pelo resgate do conhecimento bíblico, e assim gerar intensas aplicações na vida espiritual dos crentes.

Referências

  • 1 Earle E. Cairns, O Cristianismo Através dos Séculos: Uma História da Igreja Cristã (São Paulo: Vida Nova, 2008), p. 199-203, 211-219, 221-223.
  • 2 Alister E. McGrath, Origens Intelectuais da Reforma (São Paulo: Cultura Cristã, 2007), p. 170, 184, 188.
  • 3 Williston Walker, História da Igreja Cristã (São Paulo: Aste, 2006), p. 490.
  • 4 Henri Strohl, O Pensamento da Reforma (São Paulo: Aste, 1963), p. 69.
  • 5 Duane P. Schultz, História da Psicologia Moderna (São Paulo: Thompson, 2006), p. 10. Zeitgeist é um termo alemão que significa o ambiente intelectual e cultural, ou o espírito da época.
  • 6 McGrath, p. 25.
  • 7 Walker, p. 442.
  • 8 Cairns, p. 199.
  • 9 Robert C. Walton, História da Igreja em Quadros (São Paulo: Editora Vida, 2000), p. 50.
  • 10 Strohl, p. 71.
  • 11 Walker, p. 492-494.
  • 12 Alberto R. Timm, “Antecedentes Históricos da Interpretação Bíblica Adventista”, em George W. Reid, org., Compreendendo as Escrituras: Uma Abordagem Adventista (Engenheiro Coelho, SP: Unaspress, 2007), p. 46, 47, 51, 52.
  • 13 Alister E. McGrath, Teologia da Cruz (São Paulo: Cultura Cristã, 2014), p. 105, 109, 112.
  • 14 Justo L. González, Uma História Ilustrada do Cristianismo, v. 6. (São Paulo: Vida Nova, 1995),
    p. 48, 66, 68.
  • 15 Walker, p. 87, 89, 90, 92.
  • 16 McGrath, Origens Intelectuais da Reforma, p. 146.
  • 17 Ibid., p. 52, 53.
  • 18 Richard Davidson, “Interpretação Bíblica”, em Raoul Dederen, org., Tratado de Teologia Adventista do Sétimo Dia (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2011), p. 103.
  • 19 Davidson, p. 103.
  • 20 Cairns, p. 236.
  • 21 A autointerpretação da Bíblia é a crença de que a própria Bíblia fornece as proposições e respostas sobre seus assuntos.
  • 22 Kwabena Donkor, “A Reforma e o Principio Sola Scriptura”, Ministério, nov-dez. 2013, p. 17.
  • 23 Walton, p. 66.
  • 24 Norman L. Geisler e Paul D. Feinberg, Introdução à Filosofia: Uma Perspectiva Cristã (São Paulo: Vida Nova, 2009), p. 62.
  • 25 Timm, p. 11.
  • 26 Don F. Neufeld, “Biblical Interpretation in the Advent Movement”, em Gordon M. Hyde, org. Symposium on Biblical Hermeneutics (Washington, D.C.: Review and Herald, 1974).
  • 27 Davidson, p. 113.
  • 28 Manual da Igreja Adventista do Sétimo Dia (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2016), p. 166.
  • 29 Fernando Canale, O Princípio Cognitivo da Teologia Cristã: Um Estudo Hermenêutico Sobre Revelação
    e Inspiração (Engenheiro Coelho, SP: Unaspress, 2011).