O princípio sola gratia é uma lembrança de que a salvação não depende de méritos humanos, mas se fundamenta em Jesus

Em latim, a expressão sola gratia, um dos pilares fundamentais da Reforma, significa “somente pela graça”. O termo expõe a noção de que a salvação só pode ser obtida por meio de Jesus, sem a necessidade de mérito humano.1 No campo das religiões comparadas, esse conceito surge como único, quando contrastado com crenças não cristãs, ao fazer de Cristo o centro dessa obra salvadora.2 Assim, não existe graça sem Jesus, ainda mais se Seu sacrifício na cruz não é proclamado.

O propósito deste artigo é analisar o princípio sola gratia conforme é encontrado na epístola aos Romanos. Essa carta não somente apresenta o plano da salvação de forma esclarecedora, como também expõe nitidamente o significado da graça.

O princípio sola gratia

Em Romanos 3:21 a 26 encontramos a síntese completa do plano divino para salvar o mundo. Paulo
declarou que a justiça de Deus se manifestou por meio da fé em Jesus (Rm 3:21, 22). Isso significa que o Senhor trata o pecador como alguém inocente, declarando-o justo “mediante a redenção que há em Cristo Jesus” (3:24-26).3 Se Deus passa por alto o pecado de todo aquele que crê em Seu Filho, isso implica que o ato redentor ignora as obras humanas. É um presente. Dessa maneira, para entender o princípio sola gratia, é preciso primeiro reconhecer nossa culpa.

A condição humana

É essencial, no pensamento paulino, admitir que a justiça humana não tem lugar no plano da salvação (cf. Sl 51:5; Ec 7:20; 1Jo 1:10). O apóstolo afirmou: “todos pecaram e carecem da glória de Deus” (Rm 3:23). Para os leitores de Romanos, essa avaliação negativa do ser humano, em termos universais, não é nova. Isso porque Paulo falou sobre a condição pecaminosa da natureza humana em passagens anteriores de sua carta (1:18–3:20).

A esse respeito, Romanos 3:9 é um versículo-chave. Nessa passagem, o autor declarou que a humanidade, representada por gentios (1:18-32) e judeus (2:17–3:8), está “debaixo do pecado” (hyph’ hamartian). A expressão não significa que homens e mulheres são pecadores só porque cometem atos pecaminosos. Pecado, na visão paulina, não é somente um “ato ilegal”, mas também um “poder” ao qual todo ser humano está sujeito.4

Sempre que a preposição grega hypo, que se traduz como “debaixo” em Romanos 3:9, é seguida por um substantivo acusativo (hyph’ hamartian), descreve situações em que o sujeito não está livre, mas debaixo do domínio de algo ou alguém (Lc 7:8; Mt 8:9; 1Co 9:20; 3:10; Gl 4:2, 4; 5:18).5 A noção de pecado em Romanos claramente aponta nessa direção. O pecado escraviza o ser humano (Rm 6:6), reina sobre seu corpo (6:12) e tem o poder de subjugar sua vida (6:14).6 Assim, ele exerce seu domínio sobre homens e mulheres desde seu interior, afetando-os completamente (Rm 7:17; cf. Mt 15:19; Mc 7:20-22).7

Usando diferentes porções da Bíblia Hebraica (Sl 5:9; 10:7; 14:1-3; 36:1; 53:1-3; 140:3; Is 59:7, 8), Paulo enfatizou o estado dramático da humanidade (Rm 3:10-18). Ele argumentou que não há nenhum justo sequer (3:10). De fato, ninguém busca a Deus (3:11) nem faz o bem.

Para tornar ainda mais explícita essa condição adversa, o apóstolo usou a imagem do corpo humano (3:13-18). A primeira figura desse quadro simbólico está vinculada ao ato de falar, que Paulo estruturou em uma cadeia conceitual de dentro para fora (3:13, 14).8 O percurso começa na garganta, o “sepulcro aberto”; segue com a língua, com a qual “urdem engano”; passa pelos lábios, “veneno de víbora está nos seus lábios”; e termina na voz, “a boca eles a têm cheia de maldição e amargura”. A função conjunta desses elementos permite que os seres humanos se comuniquem. Tal comunicação, no entanto, é expressa de maneira hostil, enfatizando que a origem da maldade verbal e comportamental é parte intrínseca do discurso humano.

Então, o movimento do pensamento paulino se move para o extremo oposto dos órgãos vocais. Concentrando-se primeiro nos pés (3:15-17), volve-se rapidamente à cabeça, dessa vez aos olhos (3:18).9 Ao retratar os pés (3:15-17), Paulo usou imagens que refletem ações humanas violentas, “são seus pés velozes para derramar sangue”. Ao mencionar os olhos, ele acusou a humanidade de não temer a Deus (3:18). Em ambos os casos, o pecado é o centro da motivação de um coração corrupto, separado do Senhor, e que se concentra em atos maus (cf. Gl 5:19-21).

Usando a figura dos órgãos superiores e inferiores do corpo humano, Paulo mostrou que todos estamos contaminados pelo pecado da cabeça aos pés. É uma depravação total, sem exceção (3:19), que tem como causa não somente atos perversos, mas também uma natureza corrompida, inclinada para o mal.

A gratuidade da graça

Essa condição tétrica que nos priva da glória de Deus (Rm 3:23) não impede que Ele tome a iniciativa de nos salvar, pois como declarou Paulo, os seres humanos são justificados “gratuitamente” por Sua graça (Rm 3:24). Um exame das palavras “gratuitamente” e “graça” contribui para que o princípio sola gratia seja exposto em sua totalidade.

O advérbio “gratuitamente” é a tradução do vocábulo grego dōrean, usado na Septuaginta (Gn 29:15; Êx 21:2, 11; Nm 11:5)10 e nos escritos de Josefo (Antiguidades Judaicas, 5.2.3; 8.6.1),11 para descrever ocasiões em que alguém recebe algo sem ter pago por isso (cf. Mt 10:8; 2Co 11:7; 2Ts 3:8; Ap 21:6; 22:17).12 O termo descreve um dom gratuito.

Por sua vez, o substantivo “graça” inclui a tradução da palavra grega charis. Ela pode ter mais de um significado. No Novo Testamento, por exemplo, pode ser entendida como gratidão (Lc 17:9; 1Co 15:57), belas palavras (Lc 4:22), favor (At 24:27; 25:9), presente (1Co 16:3), mérito (Lc 6:32), privilégio (2Co 8:4), estima (At 2:47),13 entre outros.14

Embora haja casos em que o termo inclua vários significados (Sl 44:3 [45:2]; Pv 1:9; 4:9; 5:19), na Septuaginta ele é usado principalmente no sentido de favor (1Sm 1:18; 16:22; 14:22; 2Sm 14:22; Rt 2:2, 10, 13; Et 8:5).15 Contudo, para que esse significado ganhe força, charis deve ser traduzido da locução hebraica ḥēn que, normalmente, quer dizer favor; embora em algumas ocorrências possa ter sentido de favor imerecido. Esse é o caso de Noé e Moisés, que foram escolhidos de um grupo maior de pessoas para uma finalidade específica (Gn 6:8; Êx 33:17). Deus tomou a iniciativa concedendo-lhes o dom.

A compreensão dessas palavras no contexto semântico de Romanos 3:21 a 26 sugere que a justiça divina é um dom. Ao enfatizar que a justificação ocorre “gratuitamente” pela “graça”, Paulo quis destacar que a justiça de Deus é concedida “por meio da redenção que há em Cristo Jesus” (Rm 3:24, NVI), e não devido a algum ato meritório de nossa parte.

As obras da lei, nessa equação, são inúteis (Rm 3:27, 28), porque somos declarados justos ao crer em Jesus (v. 24). Isso significa que os delitos de nossa vida antes de aceitar a Cristo foram perdoados imerecidamente sem que tivéssemos quitado qualquer dívida, pois esta foi paga por Jesus (Rm 3:24; 4:24, 25). Desse modo, é um ato de fé, fundamentado sola gratia de Deus.

Paulo citou o exemplo de Abraão, o qual creu antes de ser circuncidado. O patriarca “creu”, declara a Bíblia, e isso lhe foi imputado como justiça (Gn 15:6; Rm 4:1-3). Suas obras (circuncisão) não foram a fonte da justiça, mas a graça do Senhor. Do mesmo modo, Paulo citou Davi, que deu glória a Deus por atribuir a homens e mulheres Sua justiça sem obras (Rm 4:6). Ele usou o Salmo 32, salientando que o perdão divino não resulta do comportamento humano, mas da graça divina (Sl 32:1, 2). É Deus, não o ser humano, que perdoa a iniquidade, cobre os pecados e nos absolve da culpa (Rm 4:7, 8). A salvação não é obtida por meio da ação humana (Rm 4:4). Pelo contrário, “ao que não trabalha, porém crê Naquele que justifica o ímpio, sua fé lhe é atribuída como justiça” (Rm 4:5).

O abuso da graça

O princípio sola gratia, no entanto, não deve ser mal-interpretado. Embora Deus justifique o pecador, Ele não o estimula a pecar para que a graça transborde (Rm 6:1, 2; cf. 5:20). Pelo contrário, a exortação é para que o crente “morra para o pecado” e viva uma nova vida em Jesus (Rm 6:2-4). Ao dizer isso, Paulo quis evitar que seus leitores pensassem que ao ser salvos estavam autorizados a andar nos mesmos caminhos que trilharam antes. Embora a salvação seja um dom, o cristão deve manifestar, em resposta, uma vida de acordo com seu novo status em Jesus.

Ao imitar a morte e ressurreição de Cristo por meio do batismo, crucificamos o “velho homem”, a fim de que este não permaneça escravo do pecado (Rm 6:5-11). Isso significa que o pecado não mais deve reinar na vida do cristão (Rm 6:12, 13). O chamado, no entanto, é para se apresentar diante de Deus “como quem voltou da morte para a vida”, oferecendo “os membros do corpo […] como instrumentos de justiça” (Rm 6:13, NVI).

Ao não mais estar debaixo do poder da lei como meio de condenação e salvação, mas debaixo da graça, o pecado não pode nos dominar (Rm 6:14). Embora a lei continue em vigor (Rm 3:31), ela não tem o poder de salvar.16 Isso não significa que o cristão deve viver sem a lei de Deus, estando assim livre para pecar. “De maneira nenhuma!”, disse Paulo (Rm 6:15). A lei é santa (Rm 7:12) e serve de guia para revelar o pecado (Rm 3:20). O cumprimento da lei é amar o próximo (Rm 13:8); uma declaração que se fundamenta na segunda parte do Decálogo e se resume na frase amar ao próximo como a nós mesmos (cf. Rm 13:8-10; Mt 19:19; 22:39; Lv 19:18). Paulo deixou claro que a lei não é um artigo ultrapassado (Rm 13:10).

O fato de estar vivendo sob a graça implica que não devemos nos comportar como fazíamos no passado. Estar debaixo da graça envolve submeter-se à vontade do Pai e viver “como o novo modo do Espírito” (Rm 7:6, NVI). Deus nos libertou do pecado, tornando-nos servos e servas da justiça (Rm 6:15-22). Entretanto, uma perspectiva desse tipo não significa que o cristão deve esperar que uma vida assim o torne merecedor da salvação. Paulo disse que somos justificados “pela fé sem as obras da lei” (Rm 3:28). Contudo, a vida no Espírito nos faz filhos e filhas de Deus (Rm 8:14), algo confirmado ao trilharmos o caminho da graça (Rm 8:1-27). Consequentemente, tendo sido libertados do pecado, temos nosso “fruto para a santificação e, por fim, a vida eterna” (Rm 6:22).

Conclusão

O princípio sola gratia significa que a salvação é um dom imerecido que Deus outorga a todo aquele que crê em Jesus como Salvador. O ser humano por si mesmo não pode ser salvo. No entanto, o Senhor vem em seu auxílio, toma a iniciativa e gratuitamente oferece a redenção por meio do sacrifício de Jesus.

Por outro lado, viver sob a graça divina não significa permanecer no mesmo modo de vida do passado. Paulo nos exortou a ser transformados (Rm 12:1, 2) e a caminhar na experiência da graça, produzindo frutos para a glória de Deus (Rm 12:11-14). 

Referências

  • 1 John W. Behnken, “Sola gratia”, CTM 23 (1952), p. 750-752.
  • 2 F. E. Mayer, “No sola gratia without solus Christus”, CTM 22 (1951), p. 676-680.
  • 3 Salvo indicação contrária, a versão bíblica utilizada foi a Almeida Revista e Atualizada, 2ª edição.
  • 4 Thomas R. Schreiner, Romans (Grand Rapids: Baker, 1998), p. 164; Leon Morris, The Epistle to the Romans (Grand Rapids: Eerdmans, 1987), p. 166.
  • 5 W. Bauer et al., A Greek-English of the New Testament and other Early Christian Literature (Chicago: University of Chicago Press, 2000),p. 1.036.
  • 6 Schreiner, Romans, p. 164.
  • 7 John M. Fowler, “Pecado”, em Raoul Dederen, ed., Tratado de Teologia Adventista do Sétimo Dia (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2011), p. 278.
  • 8 Douglas Moo, The Epistle to the Romans (Grand Rapids: Eerdmans, 1996), p. 203.
  • 9 Joseph A. Fitzmyer, Romans (Nova York: Doubleday, 1993), p. 335.
  • 10 1Sm 25:31; 2Sm 24:24; 1Rs 2:31; 1Cr 21:24; 1Mac 10:33; Sl 34:7; 108:3; 119:7; Jó 1:9; Sir 20:23; 29:6, 7; Ml 1:10;
    Is 52:3, 5; Jr 22:13; Lm 3:52.
  • 11 Josefo, Antiguidades Judaicas, 12.2.3; 12.4.9; 14.14.1; 15.6.3; 16.10.1; 17.5.3; 17.11.5; A Guerra dos Judeus 1.14.1; 2.6.3; Vida de Flávio Josefo 9, p. 76.
  • 12 Bauer, A Greek-English of the New Testament, p. 266.
  • 13 T. David Andersen, “The Meaning of EXONTEI XAPIN IIPOZ in Acts 2.47”, NTS 34 (1988), p. 604-610.
  • 14 D. C. Arichea, “Translating ‘Grace’ (charis) in the NT”, BT 29 (1978), p. 201-206.
  • 15 H. H. Esser, “Grace, Spiritual Gifts”, NIDNTT, v. 2, p. 116.
  • 16 Mario Veloso, “A Lei de Deus”, em Raoul Dederen, ed., Tratado de Teologia Adventista do Sétimo Dia (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2011), p. 526.