Um estudo de Números 21:4 a 9 em relação ao caráter do Deus da Torá
Para amar alguém, devo primeiro conhecê-lo. Para amar a Deus, essa mesma atitude é necessária. Primeiro devo conhecê-Lo. Quanto mais conhecermos a Deus, mais O amaremos. Não é natural do homem amar o Senhor. Entretanto, Seus atos amorosos alcançam nosso coração.
Às vezes, porém, o Deus apresentado no Antigo Testamento comete ações que nos desconcertam, e que, à primeira vista, mostram-nos um Senhor cruel, sem amor. O relato de Números 21:4 a 9 é um dos que nos deixam perplexos em relação ao caráter divino. O objetivo deste artigo é analisar alguns aspectos importantes desse episódio, a fim de compreender melhor o caráter de Deus em sua relação com Seu povo, Israel.
Nenhuma outra narrativa do Pentateuco fala desse episódio. Adiante, um texto que trata sutilmente do assunto é 2 Reis 18:4: “Removeu os altos, quebrou as colunas e deitou abaixo o poste-ídolo; e fez em pedaços a serpente de bronze que Moisés fizera, porque até àquele dia os filhos de Israel lhe queimavam incenso e lhe chamavam Neustã.”1
Esse é o único lugar na Bíblia Hebraica em que se menciona especificamente uma serpente de bronze feita por Moisés. Esse relato nos mostra a atitude do rei Ezequias ao destruir todos os objetos de adoração que não estavam em conformidade com o verdadeiro culto do Templo de Jerusalém.
O versículo de 2 Reis confirma que o texto da serpente de bronze de Moisés é muito antigo e, ao mesmo tempo, mostra o perigo que o povo corria de chegar a adorar um objeto, esquecendo-se do verdadeiro Deus de Israel.
Um texto-chave que nos ajuda a entender o relato que estamos estudando está em Deuteronômio 8:14, 15: “[para não suceder que] se eleve o teu coração, e te esqueças do Senhor, teu Deus, que te tirou da terra do Egito, da casa da servidão, que te conduziu por aquele grande e terrível deserto de serpentes abrasadoras, de escorpiões e de secura, em que não havia água; e te fez sair água da pederneira.”
O Senhor recorda aos filhos de Israel que, na fartura da Terra Prometida, nunca se esqueçam de que foi Ele quem os fez caminhar e os protegeu no grande e terrível deserto, repleto de serpentes abrasadoras e escorpiões. Deus guia Seu povo apesar de toda hostilidade do ambiente.2
Análise do texto
No texto de Números 21:4 a 9, a crítica de Israel tem três partes: (1) A angústia do povo está frequentemente associada a “morrer no deserto”. Deserto é sinônimo de morte.3 (2) No momento, eles não têm “pão nem água”. Essa é a primeira vez em que os dois elementos aparecem juntos em uma queixa dos israelitas. (3) O povo estava enfastiado com o maná, chamado por eles de “pão vil”: “hapax (única vez que a expressão aparece na Bíblia Hebraica (cf. Nm 11:6-9))”.4
A crítica do povo desperta a reação divina apresentada no versículo 6. Esse texto é central em nossa discussão acerca do caráter de Deus: “Então, o Senhor mandou [wayšlaḥ] entre o povo serpentes abrasadoras, que mordiam o povo; e morreram muitos do povo de Israel.”
As versões mais usadas em português traduzem wayšlaḥ como “mandou”.5 A Nova Versão Internacional diz: “Então o Senhor enviou serpentes venenosas que morderam o povo, e muitos morreram” (Nm 21:6).
Uma primeira leitura desse versículo nas versões mencionadas nos dão a impressão de que Deus é um ser cruel, sem misericórdia. O povo se queixou e o Senhor imediatamente o puniu, enviando-lhe serpentes venenosas que picavam fatalmente.6
É interessante que o verbo šlaḥ aparece nesse versículo na forma verbal hebraica Piel. Nechama Leibowitz destaca que essa forma Piel tem o sentido de “deixar livre, deixar em liberdade”. Ela foi utilizada nos seguintes textos:7
“Depois, foram Moisés e Arão e disseram a Faraó: ‘Assim diz o Senhor, Deus de Israel: Deixa ir o meu povo, para que me celebre uma festa no deserto’” (Êx 5:1).
“Tendo Faraó deixado ir o povo, Deus não o levou pelo caminho da terra dos filisteus, posto que mais perto, pois disse: ‘Para que, porventura, o povo não se arrependa, vendo a guerra, e torne ao Egito’” (Êx 13:17).
“Quando um de teus irmãos, hebreu ou hebreia, te for vendido, seis anos servir-te-á, mas, no sétimo, o despedirás forro” (Dt 15:12).
“Deixarás ir, livremente, a mãe e os filhotes tomarás para ti, para que te vá bem, e prolongues os teus dias” (Dt 22:7).
“Vai ter com Faraó, rei do Egito, e fala-lhe que deixe sair de sua terra os filhos de Israel” (Êx 6:11).
O itálico nos textos destaca a tradução da forma Piel de šlaḥ com o sentido de deixar livre, deixar em liberdade.
Por outro lado, šlaḥ, na forma Qal, tem o sentido de “enviar, enviar em missão”. O texto de Gênesis 32:4 ilustra isso: “Então, Jacó enviou mensageiros adiante de si a Esaú, seu irmão, à terra de Seir, território de Edom.”8
Assim, a tradução o Senhor mandou não transmite o significado profundo da ação de Yahweh. Lembremo-nos de Deuteronômio 8:15, que nos diz que o deserto estava infestado de serpentes abrasadoras e escorpiões. Era a providência de Deus que preservava o povo do ataque de animais perigosos.
“Os filhos de Israel não queriam mais a intervenção sobrenatural de Deus. Não queriam mais o maná (pão vil) que Deus lhes dava. Eles desejavam uma existência mais natural, mais normal. Então Deus, respeitando o desejo do povo, deixou que as coisas seguissem seu curso normal. Deus permitiu que as serpentes se movessem de forma natural, no grande e temível deserto (tirou a cerca de proteção).”9
Ao Deus permitir que as serpentes circulassem livremente, elas começaram a picar o povo. Como consequência, muitos israelitas morreram envenenados.
No versículo 7 aparecem duas ações importantes: (1) O povo reconheceu: “havemos pecado”; e, (2) Moisés intercedeu depois da confissão do povo. No versículo 8, a ordem divina descrita é muito impactante e inesperada: (1) Faça uma serpente ardente; (2) ponha-a sobre uma haste; e
(3) todo aquele que for picado e olhar para a serpente viverá.
Algumas observações em relação ao caráter de Deus podem ser deduzidas desse episódio.
1) No começo do relato (v. 4, 5), o povo falou, desempenhando um papel ativo, e isso o conduziu à morte. Moisés agiu somente no versículo 7 (v. 7b, 9), e conduziu Israel à vida. O Deus do Pentateuco é um Deus de ação.
2) Há um contraste acentuado entre a principal reclamação do povo, “para que morramos neste deserto” (v. 5), e a promessa de vida apresentada por Deus, “todo mordido que a mirar viverá” (v. 8).
3) A narrativa de Números 21:4 a 9 é uma das mais importantes entre os relatos de murmuração. É o último acontecimento antes da entrada do povo na Transjordânia. Ele estava pedindo pão e água, que é a base da subsistência. Nesse sentido, estava duvidando da capacidade de Deus para sua salvação. Esse incidente permitiu que o Senhor mostrasse dois de Seus atributos mais importantes: Sua justiça e misericórdia (Êx 34:6, 7).
4) Independentemente de qual fosse a origem da serpente de bronze, não era ela que salvava, mas Deus, que estava por detrás dessa representação.
5) Esse importante relato de murmuração enfatiza dois aspectos fundamentais. Por um lado, a contínua desobediência do povo no deserto; por outro, o contínuo perdão e misericórdia de Deus.
6) A promessa de cura era condicional, uma prova de fé para o povo. Israel devia obedecer a ordem: “mirar” e o resultado seria “viver”. Quem seguiu exatamente as ordens divinas recebeu cura (Êx 15:26).
7) A história de Números 21 é uma lembrança dos atos de amor de Deus para com Seu povo durante toda a jornada no deserto.
Conclusão
Todas as partes principais do relato de Números 21:4 a 9 nos mostram um Deus que deseja cuidar de Seu povo e salvá-lo em sua viagem à Terra Prometida. Seu amor implica respeito pelas decisões de Israel. Por isso, Ele permitiu que as serpentes que havia mantido fora do acampamento durante toda a jornada ficassem livres.
A tradução habitual de Números 21:6, “então, o Senhor mandou entre o povo serpentes abrasadoras”, pode induzir ao conceito equivocado de que o Deus revelado no Antigo Testamento é cruel e sem nenhuma misericórdia. Contudo, a tradução que respeita a forma Piel do verbo šlaḥ, com o sentido de “deixar livres”, e o contexto geográfico e histórico realçado pelo texto de Deuteronômio 8:15, permitem-nos visualizar um Deus de amor, preocupado em cuidar de Seu povo e de protegê-lo de todos os perigos possíveis em sua viagem à Terra Prometida. Por meio da intercessão de Moisés, o Senhor pôde mostrar a Seu povo Sua graça e Seu amor.
Um dos textos mais conhecidos do Novo Testamento é João 3:16: “Deus amou ao mundo de tal maneira que deu o Seu Filho unigênito, para que todo o que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna.”
Nesse contexto, a referência histórica que ilustra o grande amor de Deus ao levantar o Messias para que, mediante Sua crucifixão, pudesse salvar a humanidade, é precisamente o relato da serpente de bronze no deserto.
O Deus do Pentateuco amou profundamente Seu povo. O deserto estava infestado de serpentes abrasadoras e escorpiões. Era a providência divina que preservava Israel do ataque dos animais perigosos. Quando o povo, de acordo com seu livre arbítrio, não mais quis depender do Senhor, Ele deixou que as coisas seguissem seu curso normal, retirando Sua proteção. Ele permitiu que as serpentes se movessem livremente, no grande e terrível deserto. Deus pediu a Moisés que levantasse uma serpente de bronze, a fim de salvar aqueles que haviam sido picados. Ele também enviou Seu Filho Jesus Cristo, permitindo que fosse levantado na cruz e desse Sua vida pela humanidade que está perdida.
Olhando a cruz, para o Cristo crucificado, teremos não somente vida para continuar nossa viagem até a Canaã celestial, mas também vida eterna junto ao nosso querido Salvador. “E do modo por que Moisés levantou a serpente no deserto, assim importa que o Filho do homem seja levantado, para que todo o que nele crê tenha a vida eterna” (Jo 3:14, 15).
Referências
- 1 Cf. H. H. Rowley, “Zadok and Nehushtan”, em Journal of Biblical Literature 58 (1939), p. 113ss; K. R. Joines, “The Bronze Serpent in the Israelite Cult”, em Journal of Biblical Literature 87 (1968), p. 245-256.
- 2 Hammōlîăā (Dt 8:15) Hifil particípio. O sentido atemporal do particípio indica que Yahweh agora também está fazendo-os marchar até a Terra Prometida. P. Jouon, Grammaire de L’hebreu Biblique (Roma, 1982), p. 333, 121ª
- 3 Cf. Nm 16:13; 20:4, 5; Êx 14:11, 12; 16:3.
- 4 Hapax “pão vil” [balleḥem haqqəlōqêl]; Koelher-Baumgartner Lexicon, p. 841 aproxima esse hapax com o árabe Qulqulan, que significa “uma leguminosa”.
- 5 ARA, ARC, NVI, NTLH.
- 6 Serpentes, cf. Is 6:2, 6; 14:29; 30:6; Dt 8:15.
- 7 Nechama Leibowitz, Studies in Bamidbar (Numbers), traduzido e adaptado do hebraico por Aryeh Newman (Jerusalém: The World Zionist Organisation, 1980), p. 262, 263.
- 8 Cf. Êx 24:5; Nm 13:3; 13:17; 20:14.
- 9 Nechama Leibowitz, Ibid.