O que podemos aprender do modo como os primeiros adventistas estudavam a Bíblia?

Os princípios hermenêuticos são fundamentais para a leitura e interpretação da Bíblia. Nesse sentido, a visão teológica e missiológica do movimento adventista surgiu no contexto de uma hermenêutica bem definida: as regras de interpretação bíblica de Guilherme Miller. Elas foram responsáveis por lançar os fundamentos hermenêuticos da Igreja Adventista do Sétimo Dia.

Durante os 12 anos em que foi deísta, Miller acreditou que a Bíblia estava repleta de inconsistências.1 Depois de uma série de situações que alteraram o rumo de sua vida, como a participação na guerra de 1812 e a morte de seu pai no mesmo ano,2 ele decidiu voltar-se às Escrituras e dar-lhes “a oportunidade de serem respeitadas”.3 Miller se propôs a harmonizar as chamadas “contradições” da Bíblia ou continuar sendo um deísta. Essa busca o levou a adotar uma visão racionalista do método hermenêutico.4 Após dois anos de estudo, nos quais tratou de harmonizar o texto bíblico, ele afirmou: “A Bíblia passou a ser para mim um novo livro. Na verdade, era uma festa da razão. Tudo o que me parecia obscuro, místico ou incompreensível em seus ensinos havia se dissipado de minha mente, diante da clara luz que irradiava de suas páginas sagradas.”5

O baconianismo, ou método indutivo, havia se convertido no método científico clássico do período.6 Com isso em vista, Miller adotou o princípio hermenêutico que tornou possível a sincronização das diferentes profecias em um sistema coerente.7 Dessa forma, uma de suas maiores pressuposições hermenêuticas foi o conceito de que a Bíblia é um todo coerente, em que todas as partes podem ser harmonizadas.8 Ele disse: “A Bíblia é um sistema de verdades reveladas, proporcionadas de maneira clara e simples.”9

Seus princípios básicos, a Bíblia como sua própria intérprete e a harmonização dos textos bíblicos, também ocupam um lugar preeminente em suas famosas “regras de interpretação”: Por exemplo, a quarta e a quinta regra dizem: “(4) Para conhecer as doutrinas, junte todos os textos acerca do tema que você deseja estudar; então, deixe que cada palavra exerça sua devida influência. Se você puder elaborar sua teoria sem haver uma contradição, você não pode estar em erro. (5) As Escrituras precisam ser sua própria expositora, sendo essa sua própria regra.”10

Esses princípios estão fundamentados na pressuposição hermenêutica de que a Bíblia é um sistema harmonioso. Uma vez que as Escrituras têm um único Autor, não existe conflito entre a mensagem de toda a Bíblia como sistema e qualquer passagem em particular. Ou seja, o todo como chave hermenêutica não ameaça a interpretação das partes. Steen Rasmussen concluiu seu estudo acerca dos princípios hermenêuticos de Miller afirmando que “a maior pressuposição” da hermenêutica de Miller é que “a Bíblia contém uma apresentação sistemática das palavras de Deus para o homem, e é uma coleção de verdades harmoniosas”.11 Miller explicou o assunto da seguinte maneira: “Não existe um livro escrito que tenha melhor interconexão e harmonia do que a Bíblia.”12

Os pioneiros e a hermenêutica

As regras de interpretação de Miller tiveram grande impacto nos princípios hermenêuticos dos primeiros adventistas.13 Tiago White, por exemplo, adotou uma abordagem sistemática do estudo da Bíblia, afirmando que era necessário “reunir suas diferentes porções”,14 a fim de poder compreender totalmente o significado de uma palavra, sentença ou doutrina. Para ele, “Escritura deve explicar Escritura e, então, se poderá ver a harmonia ao longo do todo”.15 Essa abordagem da Bíblia como um todo sistemático permitiu que ele visse na teologia adventista “um sistema conectado de verdades, o mais belo em todas as suas partes, que a mente humana já contemplou”.16

Ellen G. White também enfatizou a necessidade de um tratamento sistemático no estudo das Escrituras. Para ela, as partes da Bíblia se harmonizam perfeitamente em um sistema de verdades, como os elos de uma corrente. Em 1887, a autora afirmou: “Vi, porém, que a Palavra de Deus, como um todo, é uma cadeia perfeita, prendendo-se uma parte à outra, e explicando-se mutuamente.”17 “O estudante deve aprender a ver a Palavra como um todo, e bem assim a relação de suas partes.”18

Com base na pressuposição hermenêutica de que a Bíblia é um sistema harmonioso de verdades, Ellen G. White também enfatizou a necessidade de comparar versículo com versículo como procedimento hermenêutico: “A Bíblia é seu próprio expositor. Uma passagem será a chave que descerrará outras passagens, e desse modo haverá luz sobre o significado oculto da Palavra. Comparando diversos textos que tratam do mesmo assunto e examinando sua relação em todo o sentido, se tornará evidente o verdadeiro significado das Escrituras.”19

Embora ela não tenha elaborado uma lista detalhada de regras hermenêuticas, endossou enfaticamente os princípios adotados por Miller.20 Ao resumi-los, Ellen G. White destacou a Bíblia como sistema de verdade e a necessidade de reunir todas as passagens acerca de determinado assunto.

Ellet J. Waggoner, por sua vez, escreveu em um editorial da Signs of the Times o que é considerada a “primeira apresentação abrangente dos princípios hermenêuticos adventistas”.21 Nesses princípios é possível notar com clareza a ideia de que a Bíblia é um sistema harmonioso de verdades em que as partes concordam perfeitamente com o todo:

“(2) A Bíblia é um livro interconectado, coerente e harmonioso. […] a perfeita harmonia entre suas diferentes partes é uma prova de que proveio de Deus. Como corolário desse princípio, seria possível dizer que ela não necessita ser ‘harmonizada’. Tentar fazer isso é uma tarefa inútil, uma vez que a Bíblia está harmonizada. Tudo que o estudante deve fazer é estudar a harmonia que já existe. […] (3) A Bíblia deve ser sua própria intérprete. (4) Uma parte da Bíblia não pode ser totalmente compreendida quando é estudada isoladamente de sua conexão com o todo ou sem referência às demais partes. […] Se a Bíblia é interconectada, então todas as partes são necessárias para formar o todo. Esse princípio se aplica tanto a um livro da Bíblia quanto a um texto somente. Não existe livro bíblico que não possa ser iluminado por qualquer outro livro das Escrituras. Dizer que os livros da Bíblia não têm conexão é quase o equivalente a dizer que ela não foi totalmente inspirada pelo mesmo Espírito”.22

Da perspectiva de Waggoner, a compreensão da Bíblia necessita de uma abordagem sistemática que a considere completamente na busca por significado teológico. Esses princípios hermenêuticos foram seguidos por outros grandes teólogos entre os pioneiros, como, por exemplo, Uriah Smith, um dos mais prolíficos autores adventistas do período.23

Em resumo, a Bíblia como um sistema harmonioso de verdades foi o pressuposto elementar dos pioneiros adventistas. Ao mesmo tempo, tal pressuposição os levou a adotar dois princípios-chave: As Escrituras interpretam as Escrituras e a harmonização das passagens bíblicas. Isso presume a existência de um “sistema” (como princípio de articulação do todo) na Bíblia. Uma vez que os primeiros adventistas reconheceram a conexão vital entre as partes das Escrituras, eles consideraram que a tarefa hermenêutica não estava finalizada até que uma palavra, um símbolo ou um tema fosse estudado à luz de toda a Bíblia.

Abordagem teológica dos pioneiros

Está claro que Miller utilizou uma abordagem sistemática em relação ao texto bíblico.24 Quanto aos primeiros adventistas, embora tenham trabalhado de acordo com o princípio Sola Scriptura, eles não se utilizaram das ferramentas modernas da teologia bíblica como disciplina teológica. Nesse sentido, Jon Paulien afirma: “Quando examinamos a obra dos pioneiros adventistas, descobrimos rapidamente que, com a possível exceção de John N. Andrews, a exegese como é descrita atualmente foi pouco realizada por eles, se é que chegaram a utilizá-la.”25

Por outro lado, os primeiros adventistas consideravam a Bíblia um sistema harmonioso de verdades; algo que os levou a desenvolver uma abordagem “sistemática” da teologia. Eles entendiam que sua teologia era um sistema harmonioso de doutrinas inter-relacionadas, que tinha o santuário celestial como “centro”.

Diversos pioneiros adventistas reconheceram a centralidade teológica do santuário celestial. José Bates, por exemplo, viu uma “cadeia perfeita e harmoniosa” de verdades no santuário.26 Tiago White declarou que o santuário “tem sido e continua sendo o grande pilar da fé adventista”.27 Uriah Smith defendia que o santuário é “o grande núcleo ao redor do qual se reúne a gloriosa constelação da verdade presente”.28 John N. Andrews afirmou que o santuário é o “grande centro doutrinário” do sistema adventista, uma vez que “se conecta inseparavelmente a todos os pontos de sua fé e apresenta o tema como um grande todo”.29 Por último, Ellen G. White resumiu essa compreensão generalizada entre os pioneiros acerca do santuário: “O assunto do santuário foi a chave que desvendou o mistério do desapontamento de 1844. Revelou um conjunto completo de verdades, ligadas harmoniosamente entre si.”30

Por isso, Denis Fortin afirma que a doutrina do santuário foi o “centro teológico dos pioneiros adventistas, e se converteu em um princípio articulador de todas as demais doutrinas”.31 Essa abordagem procurou encontrar a lógica interna das Escrituras em sua totalidade e buscou um tratamento que não somente usou a síntese ou articulação de textos bíblicos, como também de ensinamentos, noções e ideias como metodologia principal.

Em suma, a abordagem dos pioneiros adventistas em relação à Bíblia como sistema, o uso da síntese como metodologia que busca integrar as partes em um todo harmonioso e o descobrimento de um “centro” ao redor do qual giram todas as verdades bíblicas são elementos que indicam que eles tiveram uma abordagem sistemática em sua elaboração teológica.32 

Referências

  • 1 Guilherme Miller, Apology and Defense (Boston, MA: J. V. Himes, 1845), p. 3.
  • 2 Ver Sylvester Bliss, Memoirs of William Miller (Boston, MA: J. V. Himes, 1853), p. 28-55.
  • 3 Miller, Apology and Defense, p. 5.
  • 4 David L. Rowe, Thunder and Trumpets: Millerite and Dissenting Religion in Upstate New York, 1800-1850 (Chico, CA: Scholars Press, 1985), p. 10.
  • 5 Bliss, Memoirs of William Miller, p. 76.
  • 6 Theodore Dwight Bozeman, Protestants in an Age of Science: The Baconian Ideal and Antebellum America Religious Thought (Chapel Hill, NC: The University of North Carolina Press, 1977), p. xv.
  • 7 Esses princípios hermenêuticos eram muito similares aos que Isaac Newton adotou em seu estudo das profecias bíblicas. Ver Frank E. Manuel, The Religion of Isaac Newton (Oxford: Clarendon Press, 1974), p. 98.
  • 8 Jeff Crocombe, “‘A Feast of Reason’: The Roots of William Miller’s Biblical Interpretation and Its Influence on the Seventh-Day Adventist Church” (tese de doutorado, The University of Queensland, 2011), p. 2.
  • 9 Miller, Apology and Defense, p. 6.
  • 10 William Miller, “Mr. Miller’s Letters No. 5: The Bible Its Own Interpreter”, Signs of the Times, 15/5/1840, p. 25-26.
  • 11 Steen R. Rasmussen, “Roots of the Prophetic Hermeneutic of William Miller” (dissertação de mestrado, Andrews University, 1983), p. 100.
  • 12 William Miller, Evidences from Scripture and History of the Second Coming of Christ, About the Year 1843 (Troy, NY: Kemble and Hooper, 1836), p. 4.
  • 13 George R. Knight, Em Busca de Identidade: O Desenvolvimento das Doutrinas Adventistas do Sétimo Dia (Tatuí, SP: CPB, 2005), p. 11. Ver Alberto R. Timm, “Antecedentes Históricos da Interpretação Bíblica Adventista”, em Compreendendo as Escrituras: Uma Abordagem Adventista, ed. George W. Reid (Engenheiro Coelho, SP: Unaspress, 2007), p. 6.
  • 14 James White, Life Incidents, in Connection with the Great Advent Movement, as Illustrated by the Three Angels of Revelation XIV (Battle Creek, MI: Steam Press of the Seventh-day Adventist Publishing Association, 1868), p. 150, 151.
  • 15 Tiago White, “The Sabbath”, The Advent Review and Sabbath Herald, 7/4/1851, p. 62.
  • 16 White, Life Incidents, p. 267.
  • 17 Ellen G. White, Primeiros Escritos, <egwwritings.org>,
    p. 220. Ela repetiu por muitas vezes esse mesmo conceito. Por exemplo: “Elo após elo da preciosa cadeia da verdade foi pesquisado, até que todos apresentassem bela harmonia, unidos em perfeito encadeamento.” Testemunhos para a Igreja, <egwwritings.org>, 2:651.
  • 18 Ellen G. White, Evangelismo, <egwwritings.org>, p. 339.
  • 19 Ellen G. White, Fundamentos da Educação Cristã, <egwwritings.org>, p. 187.
  • 20 Ellen G. White, “Notes of Travel”, The Advent Review and Sabbath Herald, 25/11/1884, p. 738.
  • 21 Crocombe, p. 178.
  • 22 Ellet J. Waggoner, “The Bible, Commentaries, and Tradition”, The Signs of the Times, 6/1/1887, p. 6.
  • 23 Ver, por exemplo: Uriah Smith, “The Bible, and the Bible Alone”, The Advent Review and Sabbath Herald, 19/3/1857, p. 155.
  • 24 Zoltan Szalos-Farkas, The Rise and Development of SDA Spirituality: The Impact of the Charismatic Guidance of Ellen White (Cernica: Editura Institutului Teologic, 2005), p. 106-107.
  • 25 Jon Paulien, “Three Ways to Approach the Bible: Disciplinary Distinctions–Some Suggestions” (Berrien Springs, MI: Andrews University, 1997), p. 18.
  • 26 Joseph Bates, A Vindication of the Seventh-Day Sabbath, and the Commandments of God: With a Further History of God’s Peculiar People, from 1847 to 1848 (New Bedford, MA: Press of Benjamin Lindsey, 1848), p. 90.
  • 27 Tiago White, “Our Present Position”, Review and Herald, dez. 1850, p. 13.
  • 28 Uriah Smith, “Synopsis of the Present Truth. No. 19”, Adventist Review and Sabbath Herald, 25/3/1858, p. 148.
  • 29 John N. Andrews, “The Sanctuary”, Adventist Review and Sabbath Herald, 18/6/1867, p. 12.
  • 30 Ellen G. White, O Grande Conflito, <egwwritings.org>, p. 423.
  • 31 Denis Fortin, “Nineteenth-Century Evangelicalism and Early Adventist Statements of Beliefs”, Andrews University Seminary Studies 36, nO 1 (1998): 65. Ver também Alberto R. Timm, O Santuário e as Três Mensagens Angélicas: Fatores Integrativos no Desenvolvimento das Doutrinas Adventistas, 4ª ed. (Engenheiro Coelho, SP: Unaspress, 2002).
  • 32 Knight, Em Busca de Identidade, p. 74, 75, 86.