O significado de satan em 1 Crônicas 21:1

A passagem de 1 Crônicas 21:1 é considerada uma das mais difíceis da Bíblia. Ela introduz a narrativa do pecado de Davi ao ordenar um censo da nação de Israel. O texto declara: “Então Satanás se levantou contra Israel e incitou Davi a levantar o censo de Israel.” O cronista parece contradizer o relato paralelo em 2 Samuel 24:1 que diz: “Mais uma vez a ira do ­Senhor se acendeu contra os israelitas, e Ele incitou Davi contra eles, dizendo: ‘Vá e levante o censo de Israel e de Judá’.” Quem, de fato, incitou Davi a realizar o censo? Deus ou Satanás? Seria essa uma contradição bíblica? Por que esse ato do rei foi tão ofensivo a Deus? Este artigo visa responder a essas perguntas.

Principais interpretações

Os estudiosos têm-se esforçado para explicar adequadamente a relação entre essas duas passagens. Três abordagens se destacam e serão brevemente analisadas a seguir.1

Abordagem redacional. A abordagem redacional busca explicar as diferenças entre esses textos em termos de desenvolvimento literário. Assim, não há contradições entre eles, uma vez que a versão do cronista representa uma segunda redação ou correção de 2 Samuel 24. O teólogo Henry Smith sugere que o cronista não pretendia dar outra perspectiva sobre o mesmo evento, mas uma nova explicação do próprio evento. Ele reescreveu a história a partir de uma posição teológica diferente.2 Evellyn Tollerton, por sua vez, vê conexões intertextuais entre 1 Crônicas 21 e Números 22 (neste texto, Deus envia o anjo de YHWH como um adversário [satan]). Assim, 2 Samuel 24:1 e 1 Crônicas 21:1 e 2 concordam que Deus estava irado e Se levantou como satan contra Israel, incitando Davi a levantar o censo. O cronista, então, teria alterado o material para se adequar à sua teologia.3

Abordagem harmonística. Essa abordagem defende que os textos não estão em contradição. Gleason Archer propõe que, se forem vistos da perspectiva correta, “ambos relatos são verdadeiros, uma vez que tanto Deus quanto Satanás tiveram sua parcela de influência sobre Davi”.4 Na mesma linha interpretativa, Koranteng-Pipim declara que essas duas passagens, vistas a partir do contexto mais amplo das Escrituras, não se contradi­zem, mas se complementam ao declararem que tanto Deus quanto Satanás são responsáveis por incitar Davi a realizar o censo, uma vez que, “no pensamento hebraico, o que Deus permite Ele faz”.5

Abordagem exegética. O problema com as abordagens acima é que elas não encontram apoio no contexto da passagem e geram vários problemas teológicos. A maioria dos que advogam a abordagem redacional não reconhece a inspiração divina da Bíblia e trata o texto bíblico meramente como mais um entre outros do Antigo do Oriente Próximo. A abordagem harmonística, por outro lado, fundamenta-­se no conceito de inerrância bíblica. Sua explicação de que tanto Deus quanto ­Satanás incitaram Davi levanta sérios questionamentos sobre como Deus lida com a questão do mal. Por essa razão, os eruditos bíblicos tendem a abandonar qualquer esforço sério para interpretar esses textos com base nessas abordagens. Pesquisas mais recentes na área da exegese intrabíblica proveem su­porte para uma abordagem mais exegética do texto. A análise a seguir exemplifica essa abordagem.

Análise intrabíblica

A exegese intrabíblica é uma forma de analisar textos bíblicos que interpretam ou evocam outros textos das Escrituras.6 De acordo com Yair Zakovitch, “nenhuma unidade literária na Bíblia está sozinha, isolada e independente, sem nenhum outro texto extraído de seu reservatório e lançado sob uma nova luz”.7 Embora essa declaração pareça exagerada, é evidente que os escritores bíblicos posteriores foram influenciados por escritos bíblicos anteriores.

O escopo deste artigo não permite explorar os princípios do método de análise intrabíblica, mas um princípio deve ser ressaltado. Quando os escritores bíblicos posteriores reutilizam escritos bíblicos anteriores, eles atuam como exegetas e teólogos, mantendo-se fiéis ao significado original das passagens usadas, mesmo quando sob inspiração divina desdobram, por diversos meios, o significado adicional dessas passagens para seus próprios tempos.8 Esse é o caso do uso que o cronista faz do relato de Samuel para o censo de Davi.

Contextualização

Existem diferenças contextuais envolvendo os livros de Samuel e ­Crônicas.9 O primeiro livro é do período anterior ao exílio babilônico, enquanto o segundo é do período posterior. Enquanto o autor de Samuel se preocupou com o desenvolvimento inicial da monarquia israelita, o de Crônicas sentia a necessi­dade de estabelecer uma identidade ao grupo étnico e religioso que, em parte, habitava novamente em sua terra, mas, em outra parte, ainda se encontrava na dispersão. Ele queria que os judeus pós-exílio aprendessem que o governante de seu povo continuava sendo o próprio Deus.

O relato do censo de Davi e de suas consequências é um dos exemplos no qual o cronista se vale da história de Israel para ensinar verdades importantes aos seus leitores. Ele analisou cuidadosamente a história sagrada e selecionou eventos específicos a fim de cumprir tal propósito.10 Sua versão da causa do censo não representa um novo sentido, mas é, de fato, o significado que ele viu ao interpretar o relato de 2 Samuel 24 a partir de seu entendimento da história deuteronomista, a qual inclui o Pentateuco e os livros de ­Josué, ­Juízes, Samuel e Reis.

A diferença-chave entre 2 Samuel 24:1 e 1 Crônicas 21:1 e 2a está no enunciado introdutório de 2 Samuel: “Tornou a ira do Senhor a acender-se contra os israelitas.” Esse enunciado e seus cognatos são comuns na história deuteronomista, a qual serviu de fonte historiográfica para o cronista. Alguns textos são exemplos disso (Jz 2:14; 3:8; 10:7; 2Rs 13:3). ­Essas passagens sugerem que, quando a ira do Senhor se acendia contra Israel, Ele os entregava aos seus adversários militares. Então, se o cronista estava buscando uma equivalência interpretativa para a frase: “A ira do ­Senhor se acendeu contra Israel”, dentro do contexto maior de suas próprias fontes bíblicas, o sentido que ele teria encontrado seria exatamente o visto nos textos bíblicos acima, ou seja, a ameaça de invasão por potências estrangeiras. Assim, ele teria lido 2 Samuel 24:1 como uma declaração abreviada de que Deus, em cumprimento às estipulações da aliança, permitiu que um inimigo militar se levantasse contra Israel.

O significado de satan

Essa conclusão lança luz no debate sobre o significado de satan no contexto dessa passagem. Nielsen afirma que esse substantivo provavelmente deriva do verbo satan cujo sentido básico é “ser hostil” ou “opor-se” a alguém.11 O substantivo, portanto, significa “adversário” e pode se referir tanto a um ser natural quanto sobrenatural.12 Há 33 ocorrências de satan na Bíblia hebraica. Dessas, em 16 ele aparece acompanhado do artigo (hassatan) – 14 estão no livro de Jó (1:6-9, 12; 2:1-4, 6, 7), e 2 em Zacarias (3:2). Nessas ocorrências, a referência explícita é a Satanás, o adversário de Deus e do Seu povo.13

É comumente aceito que satan, sem o artigo, deve ser vertido como Satanás no texto sob análise. Entre as razões, alguns teólogos mencionam que, no momento da escrita de Crônicas, satan havia se tornado um substantivo próprio.14 Outra razão é encontrada no fato de que, em ­Crônicas, Satanás se levantou (amad) contra Israel e incitou (sût) Davi a pecar. Aecio Cairus nota que o uso do verbo amad com o substantivo satan também é encontrado em ­Zacarias 3:1. Em ambos os casos, ele estava se opondo ao povo de Deus. O verbo sût também aparece em conjunto com ­Satanás em Jó 2:3. Com base nisso, Cairus sugere que o autor de Crônicas era ciente das outras duas passagens e que sua compreensão de ­satan reflete o mesmo significado. Para ele, a presença ou ausência do artigo é irrelevante, porque satan, nessas duas outras fontes, designa um nome próprio.15

No entanto, é provável que a ausência do artigo esteja em contraste com todos os outros usos do termo e destinava-se a distingui-lo de Satanás, sempre escrito com um artigo na Bíblia hebraica. Por essa razão, Knoppers afirma que, se satan está sendo usado como um nome próprio em 1 Crônicas 21, esse é o único caso em toda a Bíblia hebraica em que o termo recebe tal denotação. Parece, portanto, preferível interpretar satan conforme a sua utilização normal do substantivo como indefinido.16

De fato, o uso anartro de satan no contexto de 1 Crônicas desempenha papel crucial na intenção do cronista de mostrar que, se o rei e seu povo não fossem fiéis à aliança, o reino cairia nas mãos de seus inimigos militares, conforme prescrevia a aliança (Dt 28:25). As consequências da ­infidelidade de Salomão demonstram esse ponto: “O Senhor Se indignou contra Salomão, por desviar o seu coração do Senhor, Deus de Israel, que lhe havia aparecido duas vezes e ordenado que não seguisse outros deuses. Ele, porém, não guardou o que o Senhor lhe havia ordenado. […] O ­Senhor levantou um adversário [satan] contra ­Salomão, a saber, Hadade, o edomita, que era da linhagem real de Edom” (1 Reis 11:9-14).

O cronista entendia, baseado em sua compreensão da história sagrada, que a ira do Senhor contra Israel significou a ameaça de um adversário estrangeiro, que levou Davi a realizar o censo, com o fim de ampliar seu exército para a batalha e vangloriar pela abundância de homens disponíveis em suas fileiras.17 Ellen White sugere que esse era o propósito de Davi ao autorizar o censo: “Com o objetivo de estender suas conquistas entre as nações estrangeiras, Davi resolveu aumentar seu exército, exigindo trabalho militar de todos os que estivessem em idade adequada. Para levar isso a efeito, tornou-se necessário fazer o recenseamento da população.”18

Assim, quando “um adversário tomou sua posição contra Israel”,19 Davi não hesitou em levantar um censo para ampliar seu exército e fazer frente ao inimigo que o ameaçava. Foram o orgulho e a ambição que motivaram esse ato do rei. Segundo Ellen White, contar o povo nesse contexto “mostraria o contraste entre a fraqueza do reino quando Davi subiu ao trono e sua força e prosperidade sob seu governo. Isso teria a tendência de fomentar ainda mais a autoconfiança, que já era grande, tanto do rei quanto do povo”.20 Nisso consistia o grande pecado tanto do rei quanto de sua nação. A realização de um censo militar sem a aprovação divina expressava confiança no poder militar humano, configurando uma quebra do relacionamento da aliança com o Senhor e atraindo as inevitáveis consequências.

Conclusão

As narrativas de Samuel e Crônicas não se contradizem, como afirmam os críticos da Bíblia. O censo de Davi foi motivado por um inimigo militar de Israel que estava se tornando uma ameaça para a nação. ­Envaidecido por suas exitosas campanhas militares (1Cr 18–20), Davi se esqueceu da promessa de Deus, que dizia: “Quando saíres à peleja contra os teus inimigos e vires cavalos, e carros, e povo maior em número do que tu, não os temerás; pois o Senhor, teu Deus, que te fez sair da terra do Egito, está contigo” (Dt 20:1). Essa era uma das lições que o cronista queria que os judeus aprendessem e é uma verdade que precisamos aprender hoje. Parece claro que o cronista procurava mostrar a seus compatriotas judeus as densas lições da graça e do julgamento de Deus na história de Israel. 

Referências

Ver John H. Sailhamer, “1 Chronicles 21:1 – A Study in Inter-Biblical Interpretation”, Trinity Journal 10 (1989), p. 34.

Henry P. Smith, A Critical and Exegetical Commentary on the Books of Samuel (Edinburgh: T. & T. Clark, 1992), p. 246; Roddy L. Braun, Word Biblical Commentary: 1 Chronicles (Dallas: Word, Incorporated, 2002), p. 216.

Evelyn Y. Tollerton, “God or Satan: A Literary Study of 1 Chronicles 21:1”. Tema apresentado em 10/2/2017 em uma das seções temáticas do Seminary Scholarship Symposium na Andrews University.

Gleason L. Archer (org.), A Inerrância da Bíblia: Uma sólida defesa da infalibilidade das Escrituras (São Paulo: Editora Vida, 2003), p. 101.

Samuel Koranteng-Pipim, “Who Incited David to Take a Census of Israel?”, em Gerhard Pfandl (ed.), Interpreting Scripture: Bible Questions and Answers (Silver Spring, MD: Biblical Research Institute, 2010), p. 201, 202.

Steven L. McKenzie (ed.), The Oxford Encyclopedia of Biblical Interpretation (Oxford: Oxford University Press, 2013).

7 Yair Zakovitch, “Inner-Biblical Interpretation”, em R. Hendel (ed.), Reading Genesis: Ten Methods (Cambridge: Cambridge University Press, 2010),
p. 95, 96.

Richard M. Davidson, “Inner-Biblical Hermeneutics: The Use of Scripture by Bible Writers”, em Biblical Hermeneutics: An Adventist Approach, Frank M. Hasel (ed.) (Silver Spring, MD: Biblical Research Institute, 2020), p. 238; Abner Chou, The Hermeneutics of the Biblical Writers: Learning to Interpret Scripture from the Prophets and Apostles (Grand Rapids, MI: Kregel, 2018), p. 47-92.

R. C. Toniolo, “O Censo de Davi: O Mesmo Episódio na Voz de Outro Narrador”, Cadernos de Pós-Graduação em Letras 18 (2018), p. 232-244; Júlio P. T. Zabatiero, Uma História Cultural de Israel (São Paulo: Paulus, 2013), p. 229-265.

10 Isaac Kalimi, An Ancient Israelite Historian, p. 23-26; Kalimi, Zur Geschichtsschreibung des Chronisten Literarisch-historiographische Abweichungen der Chronik von ihren Paralleltexten in den Samuel- und Königsbüchern (Berlin: De Gruyter, 2016).

11 Ernst Jenni e Claus Westermann, Theological Lexicon of the Old Testament (Peabody, MA: Hendrickson Publishers, 1997), p. 1268, 1269.

12 James Swanson, “שָׂטָן (śāṭān)”, Dictionary of Biblical Languages with Semantic Domains: Hebrew (Old Testament) (Oak Harbor: Logos Research Systems, 1997).

13 Wilhelm Gesenius e Samuel Tregelles, Gesenius’ Hebrew and Chaldee Lexicon to the Old Testament Scriptures (Bellingham, WA: Logos Research Systems, 2003), p. 788; Walter Baumgartner, Ludwig Köhler, Johann J. Stamm. The Hebrew and Aramaic Lexicon of the Old Testament (Leiden: Brill, 2001),
p. 1316, 1317.

14 Noel Bailey, “David’s Innocence: A Response to J. Wright”, Journal of the Study of Old Testament 64 (1994), p. 83-90; Roddy Braun, “1 Chronicles”, Word Biblical Commentary (Waco: Word Books, 1986),
p. 216, 217.

15 Aecio E. Cairus, “1 Chronicles”, em Andrews Bible Commentary, Old Testament, Angel Manuel Rodriguez (ed.), et al. (Berrien Springs, MI: Andrews University Press, 2020), p. 536, 537.

16 Gary N. Knoppers, I Chronicles 10–29: A New Translation With Introduction and Commentary (Londres: Yale University Press, 2008), p. 744.

17 O censo era o registro ou a enumeração do povo, geralmente feito com o propósito de recrutar homens para guerra ou para o recolhimento de impostos. A Bíblia hebraica menciona apenas cinco ocasiões em que um censo foi levantado entre os israelitas (Êx 30:11-16; 38:26; Nm 1–3; 26; 2Sm 24).

18 Ellen G. White, Patriarcas e Profetas (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2022), p. 664.

19 Essa tradução de Knoppers reflete melhor o sentido do texto. Knoppers, I Chronicles 10–29, p. 742.

20 White, Patriarcas e Profetas, p. 664.

EDCARLOS MENEZES

pastor em Cuiabá, MT