Conceitos claros e pertinentes para entender um assunto polêmico

Décadas se passaram desde o lançamento de O Ritual do Santuário, por M. L. Andreasen.1 Mesmo assim, a discussão sobre perfeição cristã não deixa de gerar debates e atrair a atenção dos membros da Igreja Adventista do Sétimo Dia. Enquanto muitos consideram as declarações de Andreasen sobre a perfeição da última geração como perfeccionistas, outros o aclamam como o destemido teólogo da verdade.

Embora o tema da perfeição cristã tenha sido tratado em uma quantidade significativa de publicações, proporcionado amadurecimento teológico sobre o assunto, sua contrapartida – o perfeccionismo – é geralmente tratado de maneira supérflua e passageira. Fato é que, para muitos, perfeccionismo é um assunto ainda confuso. Percebe-se isso quando, em certos casos, alguém na igreja é rotulado de perfeccionista porque se tornou vegetariano, evita alimentos contendo açúcar, deixa de assistir à televisão, ou prefere um estilo de adoração ou educação domiciliar mais ortodoxo. Aparentemente, muitas congregações não têm uma definição clara sobre o assunto, levando certos membros a tratar como algo estranho aquilo que é promovido e ensinado pela igreja.

Sendo assim, o intuito deste artigo é discutir o tema de maneira a apresentar uma definição objetiva de perfeccionismo, fundamentando-se na compreensão da teologia cristã e dos escritos de Ellen White.

Definição

Embora no sentido popular perfeccionismo seja interpretado como a atitude irritante daqueles que se esforçam ao extremo para deixar tudo perfeito (limpeza, notas na escola, apresentação musical, entre outras questões), no sentido religioso, o termo denota a tentativa de viver sem pecado: a perfeição moral.

Entre teólogos e estudiosos do assunto, há um consenso de que perfeccionismo é a crença na “perfeição absoluta” – a impecabilidade, ou a possibilidade de se alcançar a condição de Adão antes da queda.2 Conforme Millard Erickson, perfeccionismo é “a crença de que é possível alcançar um patamar no qual o fiel não peque mais”3, seja hoje ou em algum momento no futuro.

George Knight, ao discutir sobre o assunto em sua obra Pecado e Salvação4, aponta para certas distorções do conceito de perfeição cristã tidas como perfeccionistas. Uma delas é a que ocorre na forma pela qual o cristão se relaciona com a lei de Deus. Conforme o autor, se o pecado for atomizado5, isto é, definido unicamente como uma ação que transgrida a Lei de Deus, o cristão passará a preocupar-se unicamente com sua conformidade externa. Mediante suficiente esforço, todos os pecados poderão ser eliminados. Como consequência, cada ação humana passará a ser regulada a partir de regras cada vez mais estritas e ramificadas, envolvendo cada aspecto da existência. Isso pode levar a casos extremos de restrição alimentar, celibato, flagelo ou até mesmo castração. No entanto, uma vez que esse patamar de impecabilidade é alcançado, todos os seus atos passam a ser considerados puros, santificados e justos.6 Essa justiça, entretanto, não é aquela imputada por Cristo, mas uma que é praticada pela própria pessoa7, mesmo que nem sempre esteja em conformidade com a Palavra de Deus.

Um exemplo dessa situação ocorreu logo no início do movimento adventista, sendo um dos primeiros casos em que Ellen White se deparou com o perfeccionismo. Logo após o grande desapontamento, uma das quatro ramificações que emergiram do movimento milerita – os “espiritualistas” – começaram a proclamar que Cristo havia, de fato, voltado, mas no coração de cada crente. Para eles, tudo não passava de uma alegoria, e Jesus havia voltado de forma espiritual. Desse modo, achavam que tinham ultrapassado o estágio de pecar e tudo o que faziam era puro e santo. Conforme Arthur White descreve, eles acreditavam que “eram santificados, que não podiam pecar, que haviam sido selados e que todos os seus pensamentos e conceitos eram da mente de Deus”.8 Suas ideias levaram a comportamentos bizarros, como ter “esposas espirituais”, manter reuniões nas quais os participantes ficavam completamente nus e compartilhar suas esposas entre o grupo.9

Outra distorção perfeccionista destacada por Knight é a possibilidade de obter perfeição física. Nesse caso, adeptos dessa vertente acreditam que seus cabelos não envelhecerão ou que nunca mais ficarão doentes. Tal crença surgiu também entre os “espiritualistas”, após o grande desapontamento. Pregadores como J. D. Pickands proclamavam que haviam se tornado incorruptíveis e não morreriam.10 Essas ideias foram posteriormente adotadas por E. J. Waggoner, que chegou a declarar que nunca mais ficaria enfermo.11 Para adeptos desses ensinos, existe uma relação forte entre a perfeição e a incapacidade de contrair mais doenças. Enquanto a alma é expurgada do pecado, o corpo é liberto do efeito das doenças.12

Perfeccionismo adventista

Na Igreja Adventista, o perfeccionismo reapareceu por meio da teologia de Andreasen. Em sua obra O Ritual do Santuário, ele defende que a última geração de adventistas poderá viver uma vida sem pecado. Progredindo em santidade, o cristão que viver nos últimos dias alcançará um patamar em que não encontrará mais tentação para vencer: “Assim como se tornou vitorioso sobre uma tentação, pode chegar a sê-lo sobre todo pecado. Terminada a obra e alcançado o triunfo sobre […] todo o mal, estará pronto para a trasladação.” Nessa condição de impecabilidade, Andreasen conclui: “nada os pode fazer pecar”.13

Andreasen não foi o único a defender essa posição. Para autores como Herbert Douglass, “a última geração de adventistas demonstrará toda a suficiência da graça e do poder de Deus, assim como fez Jesus em Seus dias. Irão confirmar o triunfo de Jesus – que homens, participantes da natureza divina mediante o Espírito Santo, podem vencer todo o pecado durante essa vida”.14 Em sua obra Por que Jesus Ainda não Voltou?, ele afirma categoricamente: “Jesus conseguiu – eu também posso conseguir. Posso viver uma vida sem pecado como Ele viveu, pela fé em meu Pai celestial.”15 Para ele, Jesus é um modelo a ser igualado.

Outros, como Dennis Priebe e Larry Kirkpatrick se unem a Andreasen e Douglass ao equiparar a última geração com a condição de impecabilidade. Para eles, a Bíblia descreve um povo vivendo nessa condição.16 “Perfeição é viver uma vida madura no Espírito, plena de Seus frutos e, como resultado, sem pecado.”17 “Deus, de fato, é capaz de manter-nos isentos de pecar.”18

Durante seus dias, Ellen White precisou lidar em diferentes circunstâncias com alegações perfeccionistas. Para ela, viver sem pecado nesta vida é um ensino estranho à Bíblia. Conforme a autora destacou, “nenhum dos apóstolos e profetas jamais pretendeu estar isento de pecado. Homens que viveram mais achegados a Deus, homens que sacrificariam antes a vida a cometer conscientemente uma ação injusta, homens que Deus honrou com luz e poder divinos, confessaram a pecaminosidade de sua natureza. Jamais confiaram na carne, nunca pretenderam ser justos em si mesmos, mas confiaram inteiramente na justiça de Cristo”.19

É verdade que Ellen White sempre incentivou seus leitores a prosseguir para a perfeição de caráter, buscando alcançar a obediência plena aos reclamos de Deus. Certos textos da escritora chegam a sugerir que ela mesma era adepta do perfeccionismo: “Todo aquele que, pela fé, obedece aos mandamentos, alcançará o estado de impecaminosidade no qual Adão viveu antes de sua transgressão.”20 No entanto, ela declara que isso ocorreria unicamente no momento da glorificação: “Não podemos dizer ‘estou sem pecado’, antes que este vil corpo seja transformado segundo a semelhança de Seu corpo glorioso.”21 Portanto, devemos entender que Ellen White e a Bíblia ensinam “tanto a impecabilidade quanto a perfeição, mas nunca as equipara.”22

Efeitos do perfeccionismo

O perfeccionismo, assim como qualquer distorção teológica, afeta a igreja e seus adeptos em todas as áreas. Conforme observou Valdeci Santos, o amor de Deus passa a ser visto como algo a ser conquistado e merecido, gerando um sentimento de insegurança no cristão. Porque o crente assume uma posição extremamente rígida quanto ao pecado, Deus é tido como igualmente rígido. A graça divina também passa a ser interpretada de forma distorcida. “Na perspectiva perfeccionista, a graça apenas fortalece o cristão para fazer aquilo de que ele mesmo é capaz, em vez de transformá-lo e restaurá-lo à comunhão com aquele por meio do qual tudo é possível.” O perfeccionismo rouba temporariamente do cristão a alegria que Deus lhe promete em Cristo. Nos momentos em que poderia se regozijar, ele só consegue pensar no próximo desafio e no próximo alvo. Por fim, cria-se um ambiente farisaico na igreja, pois o perfeccionista “geralmente se inclinará a cobrar dos outros aquilo que ele mesmo estabeleceu como alvo”. Por seu alto comprometimento com a santidade, o perfeccionista é vítima da “sensação de se achar possuidor de uma visão superior”, autopromovendo-se como padrão para os demais.23

Considerações finais

Perfeccionismo, portanto, deve ser entendido unicamente como a posição teológica que defende a possibilidade de viver sem pecado antes da glorificação. Na Igreja Adventista, esse conceito se infiltrou por meio da teologia da última geração, crença promovida por M. L. Andreasen e simpatizantes, que acreditam que a última geração de fiéis alcançará o estágio de impecabilidade antes da vinda de Jesus. Minimizando, de certa forma, a obediência demonstrada por Cristo, essa teologia lança sobre a última geração a responsabilidade de vindicar a lei e o caráter de Deus. Embora essa distorção tenha sido discutida no passado, ela continua a agregar simpatizantes e a prejudicar o relacionamento de seus adeptos com a igreja e com Deus.

Devemos ressaltar, contudo, que, ao defendermos a impossibilidade de viver sem pecar, não estamos negando que, pelo poder de Cristo, o cristão possa vencer suas tentações. Embora não alcance a impecabilidade nessa vida, é responsabilidade de todo cristão se afastar do mal, desenvolver um caráter semelhante ao de Jesus e crescer na perfeição cristã.

Referências

  • 1 M. L. Andreasen, O Ritual do Santuário (Santo André, SP: CPB, 1983).
  • 2 A. Cairns, “Perfectionism”, Dictionary of Theological Terms (Greenville, SC: Ambassador Emerald International, 2002), p. 327; R. Rice, Reign of God: An Introduction to Christian Theology from a Seventh-Day Adventist Perspective (Berrien Springs, MI: Andrews University Press, 1997), p. 281; David A. Stoop, Living with a Perfectionist (Nashville, TN: Oliver-Nelson, 1987), p. 16-17; J. Hunt, Biblical Counseling Keys on Perfectionism: The Push to Perform (Dallas, TX: Hope For The Heart, 2008), p. 1.
  • 3 M. J. Erickson, The Concise Dictionary of Christian Theology (Wheaton, IL: Crossway Books, 2001), p. 152.
  • 4 George R. Knight, Pecado e Salvação (Tatuí, SP: CPB, 2016), p. 139-140.
  • 5 Ibid., p. 15.
  • 6 Ibid., p. 156.
  • 7 H. K. LaRondelle, Perfection and Perfectionism: A Dogmatic-Ethical Study of Biblical Perfection and Phenomenal Perfectionism (Berrien Springs, MI: Andrews University Press, 1971), p. 326.
  • 8 Arthur L. White. Ellen G. White (Hagerstown, MD: Review & Herald, 1985), v. 1, p. 71.
  • 9 Glauber S. Araujo, O Caminho da Perfeição: Um Estudo da Teologia da Santificação em João Wesley e Ellen G. White (dissertação de mestrado, Universidade Metodista de São Paulo, 2011), p. 48; cf. George R. Knight, Millenial Fever and the End of the World (Boise, ID: Pacific Press, 1993), p. 251-254.
  • 10 George R. Knight, Millenial Fever and the End of the World (Boise, ID: Pacific Press, 1993), p. 250.
  • 11 Ellet J. Waggoner, General Conference Bulletin, 1899, p. 53.
  • 12 B. B. Warfield, Counterfeit Miracles (Nova York, NY: Charles Scribner’s Sons, 1918), p. 175, n. 34.
  • 13 Andreasen, p. 243.
  • 14 Herbert Douglass, “Concepts of Jesus Affect Personality”, Review and Herald, 31/8/1972, p. 12.
  • 15 Herbert Douglass, Por que Jesus ainda não voltou? (Luz do Mundo, 2011), p. 72.
  • 16 Dennis Priebe, Larry Kirkpatrick, eds., The Mind of Christ: How to Have It (Ukiah, CA: Philippians Two Five Publishing, 2012), p. 30, 31-32.
  • 17 Dennis E. Priebe, Face a Face com o Verdadeiro Evangelho (Duque de Caxias, RJ: IEST, s.d.), p. 108-109.
  • 18 Ibid., p. 110.
  • 19 Ellen G. White, Parábolas de Jesus (Tatuí, SP: CPB, 2015), p. 160.
  • 20 Ellen G. White, Nos Lugares Celestiais (Santo André, SP: CPB, 1968), p. 148.
  • 21 Ellen G. White, Para Conhecê-lo (Santo André, SP: CPB, 1965), p. 359.
  • 22 Pecado e Salvação, p. 158. (grifo do autor)
  • 23 Valdeci da Silva Santos, “O perfeccionismo como um obstáculo à santidade cristã”, Fides Reformata, v. XIII, nº 1 (2008), p. 122-123.