Princípios do Antigo Testamento para orientar a conduta da igreja quanto aos homossexuais

Esta primeira das três partes que compõem este artigo busca identificar princípios no Antigo Testamento para orientar o relacionamento entre a comunidade cristã e as pessoas engajadas em algumas formas de atividade sexual fora do casamento heterossexual. Meu foco primário será sobre a atividade homoerótica consensual, conforme praticada por pessoas identificadas com o movimento lésbico, gay, bissexual e transgênero (LGBT).1

O impacto da queda no ideal da criação

Gênesis 2 descreve o ideal da criação para as relações sexuais humanas: um homem e uma mulher sendo unidos como “uma só carne” em um relacionamento monogâmico, imitando a sagrada união da Trindade. Por meio do casamento, dois seres humanos feitos à imagem de Deus como opostos sexualmente complementares devem continuar a criação, por meio da procriação.2

O Antigo Testamento mostra como a queda (Gn 3) afetou de muitas maneiras o ideal da criação para o casamento e a sexualidade. Primeira, o macho tende a ser dominante (v. 16). Segunda, o casamento já não é eterno, porque esposo e esposa morrem (v. 19, 22-24). Terceira, um homem pode se tornar insatisfeito com a esposa e se divorciar dela (Dt 24:1).3 Quarta, para contrair matrimônio, seres humanos pecaminosos seguem seus desejos, que nem sempre estão de acordo com a vontade de Deus (Gn 4:19 – bigamia; 6:1-3). Quinta, as pessoas atendem seus próprios desejos, para se envolver em vários tipos de atividade sexual fora do casamento.4 Sexta, devido a vários fatores, algumas pessoas são inférteis (Gn 11:30; 25:21), ou incapacitadas para o desempenho sexual (Is 56:3 – eunucos).

Deus respondeu à condição do homem caído, permitindo e até mesmo abençoando o novo casamento depois da morte do cônjuge (Rt 1:4, 5; 4:10-17), admitindo por meio de regulamentação o divórcio sob certas condições (Dt 24:2-4), tolerando e desencorajando a poligamia (Êx 21:10, 11; Lv 18:18; Dt 21:15-17),5 permitindo o casamento entre parentes chegados (Gn 4:26; cf. v. 17), mas proibindo-o posteriormente, conforme a raça se degenerava (Lv 18; 20), e reprovando todas as formas de atividade sexual fora do casamento (Lv 18; 20). Assim, Ele misericordiosamente acomodou de alguma forma as fraquezas humanas, mas não mudou o princípio da atividade sexual restrita ao casamento, definido como relacionamento de aliança entre um homem e uma mulher. Esse ideal sobreviveu à queda e consequente depreciação da imagem de Deus nos seres humanos.

O fato de que o Senhor limita a legítima prática sexual ao casamento exclui a possibilidade de que Sua comunidade de crentes plenamente e regularmente estabelecida possa incluir aqueles que transgridem Sua vontade, ao engajar-se em atividade sexual fora do casamento como Ele define (Lv 18; 20).
Desde a queda, esse permanente princípio deve ser aplicado à condição humana que tem se tornado um tanto confusa. Por um lado, as distinções entre os gêneros nem sempre são tão claras na Bíblia, como eram antes da queda. As Escrituras definem identidade sexual, seja macho ou fêmea, somente em termos de órgãos reprodutores, mas algumas pessoas podem ter características de ambos os sexos.

Crescimento em graça

Outra complicação surge porque todos os tipos de pessoas vão a Deus por meio de Cristo para que sejam salvas (Mt 9:10; Jo 12:32; Lc 14:21-23) e sua transformação envolve uma linha de aprendizado, enquanto elas progressivamente compreendem e seguem os princípios divinos. Nem todas as questões entre elas e Deus somem instantaneamente, no momento em que essas pessoas iniciam a caminhada para Ele; contudo, o Senhor nutre sua resposta positiva. Por exemplo, Ele ordenou que os israelitas amassem os estrangeiros entre eles e os tratassem bem (Êx 22:21; 23:9; Lv 19:10, 33, 34). Esses forasteiros não eram cidadãos com plenos direitos como os nativos israelitas, nem eram responsáveis pela observância de todas as instruções religiosas aplicadas aos israelitas, como os requerimentos para observância das festas anuais, devolução dos dízimos e doação de ofertas dos primeiros frutos (Êx 23:16, 19; Lv 23:4-44; 27:30, 32; Nm 18).

Entretanto, eles eram responsáveis pela obediência ao Deus do concerto (Êx 12:19; Lv 16:29), submissão às Suas instruções básicas sobre comportamento sexual (Lv 17:10, 12, 13; 18:26; 20:2; 24:16, 22), e a purificação da impureza ritual física, em alguns casos (Lv 17:15; Nm 19:10). Era-lhes permitido o envolvimento nos ritos de culto com os israelitas, bem como era providenciado para que eles seguissem os regulamentos aplicáveis (Êx 12:48, 49; Lv 17:8; 22:18; Nm 9:14; 15:14-16). Deles também era requerida expiação pela transgressão dos mandamentos divinos, isso feito por meio de ofertas de purificação (“ofertas pelo pecado”; Nm 15: 26, 29). Desse modo, Deus buscava atrair estrangeiros que tinham pouco ou nenhum conhecimento dele, para um relacionamento com sua comunidade de fé, a fim de cumprir parcialmente seu propósito de fazer dos descendentes de Abraão um canal de bênçãos para todas as pessoas (Gn 12:3; 22:18).

Basicamente, a mesma abordagem divina se aplica ao Israel espiritual de hoje (Gl 3:26-29), com a ressalva de que somos uma comunidade de crentes, em vez de uma nação teocrática pertencente a um certo grupo étnico. Em harmonia com o exemplo de Cristo (Mt 9:10, 11; Lc 15:1, 2), devemos permitir que pessoas faltosas (assim como nós) cheguem a Deus e sejam fortalecidas em seu relacionamento com Ele, garantindo-lhes acesso à fraternidade e à adoração conosco, sem comprometimento de princípios pelos quais somos responsáveis perante o Senhor, de modo que a influência transcorra somente em uma direção positiva. Quando os fariseus questionaram o evangelismo inclusivo de Jesus, Ele respondeu: “Os sãos não precisam de médico, e sim os doentes. Ide, porém, e aprendei o que significa: Misericórdia quero e não holocaustos; pois não vim chamar justos e sim pecadores [ao arrependimento]” (Mt 9:12, 13).

Nossa resposta

Deus não torna uma pessoa responsável pela luz que ela não tenha recebido ou não tenha compreendido (Tg 4:17). Assim, estaríamos cometendo um crime sério, se fechássemos nosso coração e as portas da igreja às pessoas em busca de Deus com problemas, incluindo sexuais, que são moralmente imaturas, as quais Ele está atraindo para si (Mt 19:14). Se elas são habilitadas, ou não, para se unir oficialmente e permanecer na comunidade de fé, isso depende de aceitarem os princípios “inegociáveis” pelos quais Deus torna responsável Sua comunidade. De acordo com Jesus, o princípio mais inegociável descrito no Antigo Testamento é o evidente, eterno e redentor princípio do amor altruísta (Mt 22:37-40; Lc 10:27-37; cf. Lv 19:18, 34; Dt 6:5). Continua na próxima edição. 

Referências:

  • 1 Uma forma anterior deste estudo foi apresentada em 18 de março de 2014, sob o título “À imagem de Deus: Escritura, Sexualidade e Sociedade”, em um encontro organizado pela Associação Geral dos Adventistas, na Cidade do Cabo, África do Sul. Para mais discussões sobre esse assunto, ver Roy E. Gane, Nicholas P. Miller e H. Peter Swanson, eds., Homosexuality, Marriage and the Church: Biblical, Counseling and Religious Liberty Issues (Berrien Spring, MI: Andrews University Press, 2012); que inclui Richard M. Davidson, “Homosexuality in the Old Testament”; Robert A. J. Gagnon, “The Scriptural Case for a Male-Female Prerequisite for Sexual Relations: A Critique of the Arguments of Two Adventist Scholars”, p. 53-161; e Roy E. Gane, “Some Attempted Alternatives to Timeless Biblical Condemnation of Homosexual Acts”, p. 163-174.
  • 2 James V. Brownson argumenta que “a linguagem de ‘uma só carne’ em Gênesis 2:24 não se refere à complementariedade física do gênero, mas ao elo comum de afinidade compartilhada. Portanto, é simplesmente enganoso dizer que os atos eróticos do mesmo sexo descritos em Romanos 1:26, 27 sejam “contrários à natureza” porque eles transgridem a complementariedade física dos gêneros descrita na união ‘uma só carne’ de Gênesis 2:24” (Bible, Gender, Sexuality: Reforming the Church’s Debate on Same-Sex Relationships [Grand Rapids, MI, Eerdmans, 2013], p. 35). É verdade que Gênesis 2:24 enfatiza a unidade, mas outras partes do relato da criação revelam complementariedade. Por exemplo, em Gênesis 1:27, 28, Deus criou homem e mulher e abençoou sua procriação. Em 2:18, Deus disse a Adão: “Não é bom que o homem esteja só. Farei para ele uma auxiliadora que lhe seja idônea”. As palavras “auxiliadora que lhe seja idônea” derivam do hebraico kenegdo (cf. v. 20), em que neged se refere ao “que é oposto, que corresponde” (Ludwig Koehler e Walter Baumgarten, The Hebrew and Aramaic Lexicon of the Old Testament, ed. M. E. J. Richardson (Leiden: Brill, 2001, 1:666). Isso indica diferença, bem como semelhança (cf. Brownson, Op. Cit., 30, esp. n. 27).
  • 3 No Novo Testamento, Jesus também se referiu à possibilidade de que uma esposa se divorciasse do marido (Mc 10:12).
  • 4 Isso inclui sexo pré-conjugal (Êx 22:16), estupro (Gn 34:2), adultério, incesto, relação homossexual e bestialidade (Lv 18, 20). O Antigo Testamento não menciona masturbação. O pecado de Onã foi o “coito interrompido” adotado para impedir o propósito do levirato no casamento (Gn 38:9).
  • 5 Sobre Levítico 18:18, que alguns intérpretes consideram uma compreensiva proibição de toda poligamia, ver Roy E. Gane, Leviticus, Numbers, NIV Application Commentary (Grand Rapids, MI: Zondervan, 2004), p. 319, 320.