Uma carta cheia de promessas animadoras a cristãos de ontem e de hoje

Era um pequeno grupo de crentes, não mais que trinta, que partilhavam uma experiência comum de sofrimento.1 Haviam deixado a garantia e a segurança de uma identidade que somente uma comunidade unida podia oferecer na forma de uma sinagoga do primeiro século.2 O judaísmo era uma religião reconhecida e disseminada no mundo greco-
romano. A maioria dos judeus do primeiro século pensaria ser loucura arriscar a relativa segurança de sua comunidade pelas incertezas do incipiente movimento de Jesus.

Pior ainda, eles sofriam o escárnio por parte daqueles que não partilhavam suas crenças em Jesus Cristo. Antigos companheiros amontoavam abusos verbais sobre aquele grupo que havia comprometido sua herança para seguir a Jesus, o judeu crucificado. “Onde está Jesus agora?”, eles zombavam. “Onde estão seu templo e seu altar?” “Têm vocês alguma aliança com Deus?” “Onde estão sua história e sua tradição?”

O pastor daquele grupo de cristãos estava ausente, mas esperava ser “restituído [a eles] mais depressa” (Hb 13:19). Porém, não deixou de escrever uma palavra de encorajamento, junto a uma série de grandes advertências. Aquela carta é o que hoje conhecemos como a Epístola aos Hebreus.

As lutas

Aqueles cristãos tinham enfrentado “grande luta e sofrimentos; ora expostos como em espetáculo, tanto de opróbrio quanto de tribulações” (Hb 10: 32, 33). Alguns haviam sido lançados em prisões. Muitos tiveram suas propriedades espoliadas (v. 34), provavelmente enquanto estavam presos.

A ênfase de seu pastor sobre a comunidade e a dor compartilhada é firme: “Lembrai-vos dos encarcerados, como se presos com eles; dos que sofrem maus tratos, como se, com efeito, vós mesmos em pessoa fôsseis os maltratados” (Hb 13:3). Eles tinham visto a morte face a face, enquanto lutavam contra a hostilidade de sua comunidade anterior (Hb 12:3, 4).

Alguns estavam prestes a abandonar sua confiança e retroceder (Hb 10:35, 38, 39). De fato, alguns estavam se afastando da mensagem que tinham ouvido (Hb 2:1); e outros, caindo no hábito de negligenciar a congregação (Hb 10:25). Suas mãos estavam desfalecidas, e seus joelhos, trôpegos; retrocediam em vez de avançar (Hb 12:12). Corriam o perigo de se afastar (Hb 6:6), de rejeitar o Filho de Deus (Hb 10:29), de cansar e se acovardar (Hb 12:3) e de ser desviados da fé (Hb 13:9). Na verdade, o pastor temia que eles crucificassem novamente o Filho de Deus e O expusessem à ignomínia (Hb 6:6).

Aquela era uma comunidade que necessitava de exortação e encorajamento.

A resposta do pastor

O primeiro tema que o pastor dos hebreus buscou esclarecer em sua exortação foi a antiguidade e superioridade da fé em Jesus, o Filho eterno, por meio de quem Deus tinha falado (Hb 1:2, 3). Como Filho (Sl 2:7; 2Sm 7:14), Ele era superior a todos os mensageiros (anjos), por meio dos quais o Senhor havia falado “aos pais” (Hb 1:1, 5), incluindo Moisés (Hb 3:1-6). O autor afirmou isso como sequência das passagens do Antigo Testamento aplicadas por ele a Jesus (Dt 32:43; Sl 45:6, 7; 102:26-28; 11:1).
Em Hebreus 1:10, “Senhor” se refere a Jesus.3 Ele é o Agente criador de Deus (v. 2, 3)
que lançou “os fundamentos da Terra” e criou os céus (v. 10). Embora seja dito que “todos eles envelhecerão qual vestido”, o Filho permanece para sempre (vs. 8, 11, 12).

O pastor dos hebreus lembra que temos um sumo sacerdote, um sacrifício, um santuário, um concerto, uma terra prometida e uma cidade escolhida. Temos “Jesus, o Filho de Deus… grande sumo sacerdote” (Hb 4:14), que é “sumo sacerdote para sempre, segundo a ordem de Melquisedeque” (Hb 6:20). Jesus, “porque continua para sempre, tem o Seu sacerdócio imutável” (Hb 7:24), já que a morte impedia que os sacerdotes levitas continuassem no cargo (v. 23). Os sumos-sacerdotes ofereciam sacrifícios; “era necessário que também Esse sumo-sacerdote tivesse o que oferecer” (Hb 8:3), e isso Ele fez “uma ver por todas, quando a Si mesmo Se ofereceu” (Hb 7:27), “para aniquilar, pelo sacrifício de Si mesmo, o pecado” (Hb 9:26).

Sangue de touros e bodes tratavam apenas a poluição exterior, mas era inadequado para purificar a realidade do pecado interior (Hb 9:9, 10; 10:4, 11). A morte (o sangue) de Jesus é a poderosa força que santifica (Hb 10:10; 13:12), aperfeiçoa (v. 14), perdoa (v. 18) e purifica o pecado no mais profundo nível do coração humano (v. 22). “Por isso mesmo”, Jesus “é o Mediador da nova aliança [ou promessa]” (Hb 9:15; 12:24); na realidade, “de superior aliança” (Hb 8:6). Essa nova aliança conquistou o que a antiga apenas prefigurava; ou seja, “a promessa da eterna herança” (Hb 9:15), “remissão” (Hb 10: 17, 18), acesso à presença de Deus (Hb 9:24) e “a plena certeza da esperança” (Hb 6:11), uma esperança que é “segura e firme” (v. 19). O acesso franco à presença de Deus conquistado pela morte de Jesus serviu de ânimo para que os fatigados cristãos hebreus avançassem com plena certeza e confiança (Hb 3:6, 14; 4:16; 19:19-22, 35; 11:1; 13:6).

Assim, o pastor deu a seu rebanho a garantia da posse de Jesus como seu Sumo Sacerdote, a morte dEle como seu sacrifício, o próprio Céu como seu santuário (Hb 9:24), o novo concerto como sua garantia divina, uma pátria celestial como sua terra superior (Hb 11:15, 16) e a Jerusalém celestial como sua cidade – a “cidade do Deus vivo” (Hb 12:22; 11:10), 16). Usando seu adjetivo favorito, os cristãos4 têm um Líder superior (Hb 1:4), uma esperança superior (Hb 6:9; 7:19), uma aliança superior e promessas superiores (Hb 7:22; 8:6), superior sacrifício (Hb 9:23), “patrimônio superior” (Hb 10:34), país superior (Hb 11:16), superior ressurreição (v. 35) e futuro superior (v. 40).5

Chamado à perseverança

O pastor chamou a atenção para dois exemplos daqueles que suportaram sofrimento mas não cederam: Jesus e os antigos heróis da paciência. O Salmo 8, lembrou o pastor, fala que os seres humanos deviam ser coroados de glória e honra e que todas as coisas deviam ser sujeitas a eles. Entretanto, ainda não vemos isso. Na verdade, vemos que “Jesus, por causa do sofrimento e da morte, foi coroado de glória e honra” (Hb 2:5-9), foi capaz de Se tornar “misericordioso e fiel sumo sacerdote” (v. 17, 18). Embora fosse Filho, conheceu o que significa permanecer firme, apesar do que sofreu (Hb 4:15; 5:8).

As provações que a comunidade enfrentou por causa de sua fé a uniu com o sofrimento de Cristo, “o Autor da salvação deles”, que, pelo sofrimento, foi preparado para desempenhar Sua função (Hb 2:9). Jesus provou a morte por todos, e por Sua morte Ele separou a pequena comunidade, e nós também, para Deus (Hb 10:10, 14). Aquele cujo sofrimento consagra (ou seja, o Filho) e os consagrados (ou seja, os crentes) são unidos ao Pai, e “por isso, Ele não Se envergonha de lhes chamar irmãos” (Hb 2:11).6 Para confirmar o relacionamento familiar entre Jesus e os cristãos, o pastor evocou três textos do Antigo Testamento: Salmo 22:22; Isaías 8:17, 18. A primeira referência apresenta Jesus testemunhando a Seus irmãos no contexto da comunidade adoradora (Hb 2:12). A segunda O mostra declarando Sua confiança em Deus, mesmo no contexto de Seu sofrimento, o que representa um claro encorajamento a seus destinatários (v. 13). Na última, Jesus fala dos crentes como filhos que Deus Lhe deu (v. 13).

A identidade de Jesus com os cristãos hebreus era real. Ele também partilhou da mesma carne e do mesmo sangue (v. 14). Tornou-Se, em todo os aspectos, igual a Seus irmãos e irmãs. O propósito dessas duas cláusulas é esclarecer como Ele Se tornou um ajudador humano da “descendência de Abraão” (v. 16): “para que, por Sua morte, destruísse aquele que tem o poder da morte, o diabo” (v. 14), e “por isso mesmo… Se tornasse… misericordioso e fiel sumo sacerdote nas coisas referentes a Deus e para fazer propiciação pelos pecados do povo” (v. 17). O objetivo do autor nesse capítulo é claro: “Pois, naquilo que Ele mesmo sofreu, tendo sido tentado, é poderoso para socorrer os que são tentados” (v. 18); um sentimento que é repetido em 4:15: “Não temos sumo sacerdote que não possa compadecer-Se das nossas fraquezas; antes, foi Ele tentado em todas as coisas, à nossa semelhança, mas sem pecado” (Hb 4:15).7

A uma congregação cansada e hesitante (Hb 6:11, 12) foi bastante tranquilizador aprender que a promessa do repouso de Deus ainda estava aberta diante do Seu povo peregrino.8 O repouso de Deus tem sua origem no relato da criação (Hb 4:4) e ainda estava disponível na geração do Êxodo. Mas aquela geração falhou em entrar nesse descanso, por causa da falta de fé perseverante (Hb 3:16-19; 4:2, 6). A liderança de Josué sobre os sobreviventes do deserto à terra prometida não foi o cumprimento final da entrada no descanso de Deus (v. 8). Se assim fosse, Davi, muitos anos depois, não teria falado de “hoje”
(Sl 95:7): “de novo, determina certo dia, hoje, falando por Davi muito tempo depois [do Êxodo], conforme antes fora declarado: ‘Hoje, se ouvirdes a Sua voz, não endureçais o vosso coração” (Hb 4:7). O pastor instou com sua congregação a não imitar os descrentes da geração do deserto, mas a envidar todo esforço para entrar no futuro descanso de Deus (v. 11).9

O futuro

A ligação de sofrimento e esperança futura no capítulo 11 reflete a convicção do escritor no sentido de que o abuso é uma possibilidade real para aqueles que atendem o chamado de Cristo para reafirmá-Lo
publicamente e corajosamente (Hb 3:6; 4:16; 10:19, 35). Igualmente, o escritor convidou seus leitores a olhar pela fé a um futuro de segurança graças às conquistas de Jesus Cristo (Hb 11:1, 3).10 Fé é a capacidade de ver o futuro invisível de Deus e dele ter certeza, à semelhança de Noé, que, advertido a respeito de coisas nunca vistas, preparou uma arca (v. 7), e Abraão que saiu não sabendo para onde ia, porém viu adiante a cidade de Deus (v. 8, 9).

Os patriarcas viram as promessas de Deus a distância, e desejaram a cidade futura (v. 13-16). Isaque abençoou seus filhos com os olhos no futuro (v. 20). José viu o retorno a Canaã e deu instruções a respeito de seu sepultamento ali (v. 22). Moisés sofreu com o povo de Deus, preferindo ao conforto do Egito o opróbrio de Cristo, porque viu O invisível (v. 25-27).11 Em hebreus 11, a “ênfase é sobre os atos de fidelidade” e a fé perseverante, que transforma “a esperança em realidade e o invisível em visível”.12 Os olhos da fé podiam ver o futuro não muito longe. O rebanho do pastor estava entre aqueles “que hão de herdar a salvação” (Hb 1:14), pois o mundo por vir lhes pertence (Hb 2:5). Enquanto isso, eles deviam agarrar a esperança que está à frente (Hb 6:18) e avançar em direção a ela, suportando as provações como disciplina divina (Hb 12:7-11).

A descrição em Hebreus 11:32-40 começa listando os triunfos de alguns juízes do Antigo Testamento e termina com Davi e os profetas. Então, subitamente, passa a apresentar uma lista de calamidades nos versos 35-38. A lista é espantosa: tortura, escárnio, açoites, prisões, apedrejamento, serrados ao meio, assassínio pela espada, desamparo, perseguição e maus tratos. Os antigos exemplos de fé, pessoas que completaram a carreira, deviam falar àqueles cansados cristãos hebreus e incentivá-los a perseverar (Hb 12:1, 2).13

Em sua luta contra aqueles que se opunham a eles, aquele grupo de primitivos cristãos hebreus ainda não havia sofrido ao ponto de derramar sangue (v. 4), mas Jesus tinha passado por essa experiência (Hb 2:9, 10, 18; 5:8; 9:26; 13:12). O Autor e Consumador da fé, Jesus, terminou a carreira tendo suportado “tamanha oposição dos pecadores”, mesmo assim “suportou a cruz, não fazendo caso da ignomínia”
(v. 3, 2). Sabiamente, o pastor admoestou seu rebanho a fixar o olhar em Jesus e contemplar Aquele que suportou tamanho sofrimento, e, pela fé, dirigir-se ao lugar em que Ele já está (Hb 6:19, 20; 10:19-22).

Quando o autor citou dois textos animadores do Antigo Testamento (Dt 31:6; Sl 118:6), ele não disse apenas “tenham um bom dia”. Seus textos foram apropriados à real situação dos leitores:

“De maneira alguma, te deixarei, nunca jamais te abandonarei. Assim, afirmemos confiantemente: O Senhor é o meu auxílio, não temerei; que me poderá fazer o homem?”

Então, o chamado era para sair do campo de Israel “levando o Seu vitupério”, sabendo que os crentes não tinham uma cidade permanente aqui mas deviam olhar para o futuro, para a segura cidade de Deus (Hb 13:13, 14).14

Referências:

  • 1 William L. Lane sugere um agrupamento de 15 a 20 pessoas. Ver William L. Lane, Hebreus 1-8, Word Biblical Commentary, (Dallas: Word, 1981), v. 47a, iii.
  • 2 F. F. Bruce, The Epistle to the Hebrews, New International Commentary on the New Testament (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1990), p. 3-9; P. T. O’Brien, The Letter to the Hebrews, Pillar New Testament Commentary (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1990), p. 9-13. Possivelmente, eles não tinham cortado inteiramente seus laços com o antigo judaísmo.
  • 3 F. F. Bruce, Op. Cit., p. 63.
  • 4 “Cristão” é um anacronismo, mas é usado por conveniência.
  • 5 Hebreus usa o adjetivo comparativo “melhor”, “superior”, 12 vezes, o que representa 71% do uso total que faz o Novo Testamento.
  • 6 Literalmente “irmãos”, porém a versão inclusiva da NRSV é verdadeira para o significado geral do texto.
  • 7 Não devemos ler interpretar esse verso como apoiando o perfeccionismo, que advoga a possibilidade de atingirmos a perfeição nesta vida. Trata-se apenas de um encorajamento pastoral prático, dirigido a um grupo de cristãos enfrentando problemas, e sendo incentivado a perseverar mesmo quando a jornada cristã se torna extremamente difícil.
  • 8 William G. Johnsson, Journal of Biblical Literature 97 (1978), p. 239-251.
  • 9 A referência ao sábado (Hb 4:9) é ilustrativa do futuro Descanso de Deus. Não prova a natureza do quarto mandamento. Entretanto, desde que a abordagem foi feita muito provavelmente a cristãos judeus observadores do sábado, é uma ilustração muito significativa.
  • 10Apenas a Epístola ao Romanos (40 vezes) usa a palavra “fé” (pistis) mais frequentemente que a Epístola aos Hebreus (32 vezes). O significado em Hebreus não é idêntico à nuança que Paulo dá na carta aos romanos.
  • 11 Note o poderoso paradoxo.
  • 12 Seventh-day Adventists Bible Commentary (Washington, DC: Review and Herald, 1957), v. 7, p. 471; William G. Johnsson, The Abundant Life Bible Amplifier: Hebrews (Boise, ID: Pacific Press, 1994), p. 205.
  • 13 Norman H. Young, Australian Biblical Review 51 (2003), p. 47-59.
  • 14 ______________, New Testament Studies 48, nº 2 (2002), p. 243-261.