O que podemos aprender da maneira pela qual Deus tem falado às pessoas desde os tempos antigos

Deus busca as pessoas onde elas estão. Esse é um princípio bíblico, não apenas aplicável ao evangelismo, mas também à interpretação bíblica. Ao comunicar Sua mensagem, Deus não a revelou de modo desconhecido para o público, mas de maneira que faça sentido para quem a recebe. O livro de Daniel demonstra a aplicação desse princípio. Esse livro tem significado especial para o adventismo, razão pela qual, nos últimos anos, muitos novos estudos têm sido produzidos por teólogos adventistas. Mas, neste artigo, veremos como o livro de Daniel nos ensina muito sobre a didática divina e de que maneira esse conteúdo pode ajudar nosso trabalho pastoral.

Daniel 2

Esse capítulo é um dos mais abordados em estudos bíblicos e sermões evangelísticos. Gostamos de enfatizar o poder da profecia bíblica e sua capacidade de revelar o futuro. Mas, por que será que Deus utilizou uma imagem para representar a história da humanidade? Entre os povos do antigo Oriente Médio, a história humana costumava ser descrita a partir de uma estátua.1 Se os sábios da corte real soubessem qual era o sonho, eles não teriam muita dificuldade para entendê-lo, pois estavam familiarizados com essa linguagem.

Porém, essa não era uma simples imagem. Era um ídolo. O capítulo 3 indica isso claramente. Nesse capítulo, encontramos que o rei Nabucodonosor construiu uma imagem de ouro, o mesmo metal que representava seu reino na estátua do capítulo anterior. Para um rei pagão como Nabucodonosor, Deus revelou o futuro da humanidade na forma de um ídolo, que acabou sendo destruído. Deus foi ao encontro do rei na própria realidade dele.

A visão foi concluída com uma pedra destruindo a estátua, tornando-se uma grande montanha que encheu a Terra. Trata-se do reino de Deus sendo estabelecido para todo sempre (Dn 2:44, 45). Essa linguagem não era desconhecida nem para Nabucodonosor, nem para o profeta. Muitos textos sumerianos, como o Cilindro de Gudea (c. 2100 a.C.), o de Lagash, descrevem a inauguração de um templo com uma pedra se tornando em montanha e enchendo a Terra.2 O que seria o reino de Deus senão a presença dEle com Seu povo, proporcionando-lhe paz e segurança? O que seria um templo senão a habitação de Deus entre Seu povo? Parte do currículo acadêmico de Babilônia envolvia o estudo da língua e literatura sumeriana, tópicos a que Daniel deve ter sido exposto durante seus três anos de treinamento (Dn 1:5).3

Deus moldou Sua mensagem, de tal modo que Nabucodonosor e Daniel pudessem compreendê-la. Para nós, que temos um abismo cultural e linguístico separando nossa realidade e a deles, pode ser difícil reconhecer isso, mas ao examinarmos a cultura daquela época, esses símbolos contêm muito sentido.

Daniel 7

A visão de Daniel 7 é basicamente a mesma do capítulo 2. Numa tentativa de amenizar o fato de que um rei pagão tivesse recebido revelação divina, costumamos dizer que Nabucodonosor teve um sonho e Daniel teve uma visão. Na verdade, ambos receberam a revelação divina. O aramaico empregado em Daniel 2:28 e 7:1 é praticamente idêntico. No caso de Daniel, fiel judeu, a visão não foi de um ídolo composto de vários metais. Em vez disso, Deus utilizou o esboço da criação. Em Gênesis 1, temos as águas caóticas (v. 2), o ruach, palavra que tanto pode significar espírito como vento (pairar do Espírito de Deus), a descrição de vários tipos de atividades divinas, criação dos animais e a criação do ser humano (Gn 1:26-28).

A mesma sequência pode ser vista em Daniel 7. A visão começa com os quatro ventos (ruach) do céu agitando o mar (águas caóticas; v. 1). Dali, surgem quatro animais (v. 3). Esse simbolismo não era claro para Nabucodonosor, mas era para Daniel. Deus foi ao encontro dele com uma linguagem conhecida pelo profeta.4

Além de Gênesis, outros elementos parecem ter influenciado a maneira pela qual Deus apresentou a visão do capítulo 7. A linguagem desse capítulo é muito parecida com a linguagem usada em manuais de interpretações de sonhos e presságios da religião babilônica, algo familiar para quem era responsável por todos os magos, encantadores e feiticeiros (Dn 5:11). Expressões como “quatro ventos do céu” (Dn 7:2) e animais com múltiplas cabeças e chifres são comuns nesse tipo de literatura.5 Outra provável influência na escolha dos animais da visão pode ser encontrada em Oseias 13:7, 8. Ali, Deus usa as imagens de um leão, um leopardo e uma ursa, para dizer como atacaria Israel. O que temos em Daniel 7 é justamente isto: poderes opressores do povo de Deus ao longo dos séculos, isto é, Babilônia, Medo-Pérsia, Grécia e Roma. Se esta reconstrução estiver correta, Deus apresentou uma visão com perfeito sentido para o profeta, não apenas como fiel seguidor e conhecedor das tradições do Antigo Testamento, mas também como acadêmico da religião babilônica.

Essa visão deve ter encorajado o profeta. Durante anos, ele estava vivendo em Babilônia e, até aquele momento, Nabucodonosor era quem recebia mensagens divinas (capítulos 2 e 4). Então, Daniel recebeu a confirmação de que um dia o Filho do Homem terá todo o domínio em Suas mãos, e esse domínio não passará a outra pessoa.

Daniel 8

Estudiosos tentaram ver alguma ligação entre o capítulo 8 e os calendários astrológicos usados pelos persas gregos. Nesses calendários, o carneiro simbolizava a Pérsia; e o bode, a Síria, território dominado pelos Selêucidas depois da morte de Alexandre, o Grande. Apesar de atraente, essa ideia apresenta sérias fragilidades, sendo a principal delas o fato de estar fundamentada em fontes tardias (século 2 a.C.), o que torna difícil verificar se alguém que vivesse em Babilônia no sexto século estaria familiarizado com tal associação.

Se o pano de fundo de Daniel 7 parece ter sido Gênesis 1 e manuais de interpretações de sonhos e presságios babilônicos, o conteúdo da visão do capítulo 8 parece ser exclusivamente cúltico,6 estava totalmente relacionado com a linguagem do tabernáculo israelita. Por exemplo, os símbolos do carneiro e do bode nos remetem a Levítico 16, capítulo que descreve a cerimônia do Dia da Expiação. O “príncipe do exército” (v. 11) está relacionado ao homem vestido de linho em Daniel 10:5, exatamente o tipo de veste que o sumo sacerdote usava nesse dia (Lv 16:4, 23, 32).7 O uso do termo pesha’, traduzido como transgressão ou abominação, é sugestivo, já que esse tipo de pecado também era removido do tabernáculo no Dia da Expiação (Dn 8:12, 13; Lv 16:16, 21). O uso do verbo purificar (hebraico nisdaq) também parece ter conotação cúltica, sendo utilizado como sinônimo do verbo hebraico tahar (purificar, cf. Jó 4:17; 17:9),8 o mesmo utilizado para descrever a atividade de purificação no Yom Kippur.

Um judeu piedoso como Daniel entenderia todo o simbolismo do capítulo 8. Depois de revelar que há um futuro promissor (Dn 7), Deus também revelou quando Ele responderia aos diversos ataques dos Seus inimigos, nesse caso, do chifre pequeno (Dn 8:9-14). O conteúdo básico da mensagem divina era compreensível para o profeta. Ao revelar Sua mensagem, Deus não o fez de maneira aleatória.

Reflexões

Deus Se comunicou com um rei pagão e com um profeta hebreu, por meio de tópicos bem conhecidos para cada um deles. Se Deus encontra as pessoas onde elas estão, por que em nosso ministério, nem sempre conseguimos fazer o mesmo? Quando o pastor visita os membros da igreja, tornando-se conhecedor de seus dilemas, suas alegrias e da história de cada um, torna-se mais fácil apresentar sermões relevantes e práticos. De acordo com o que algumas pessoas costumam dizer, “devemos fazer duas exegeses: no texto bíblico e nas pessoas”.

Estar atualizados com as notícias do mundo e ligados às redes sociais não nos proporciona o conhecimento acerca dos membros da igreja. A interação pessoal é necessária. Quando Cristo andou neste mundo, Ele demonstrou em Seu ministério o que é ir ao encontro das pessoas, no lugar em que elas estão. Seus diálogos e apelos direcionados a muitas pessoas nos evangelhos demonstram que Ele era certeiro em Suas abordagens.

Será que, no sermão, nossas palavras têm tido significado para todos os ouvintes, alcançando-os em suas necessidades? Será que a razão pela qual alguns usam telefone celular ou smartphone, durante o sermão, não seja o fato de eu estar alheio à realidade deles? Como pastores, precisamos alcançar as pessoas onde elas estão.

Referência:

  • 1 A. Leo Oppenheim, The Interpretation of the Dreams in the Ancient Near East (Georgias Press, 1956).
  • 2 Greg K. Beale, The Temple and the Church’s Mission: A Biblical Theology of the Dwelling Place of God (Downers Grove, IL: IVP Academic, 2004), p. 51.
  • 3 Jacques B. Doukhan, Secrets of Daniel: Wisdom and Dreams of a Jewish Prince in Exile (Hagerstown, MD: Review and Herald, 2000), p. 17.
  • 4 Martin G. Klingbeil, Journal of the Adventist Theological Society 20/1-2 (2009), p. 47, 48.
  • 5 Ernest Lucas, Tyndale Bulletin 41.2 (1990), p. 161-185.
  • 6 Winfred Vogel, The Cultic Motif in Book of Daniel.
  • 7 Lewis Anderson, The Michael Figure in the Book of Daniel, p. 296-317.
  • 8 Richard Davidson, Journal of the Adventist Theological Society 7/1 (1996), p. 107-119.