O que o Antigo Testamento ensina a respeito do Espírito Santo

Certa vez, R. A. Torrey escreveu: “Antes que alguém possa compreender a obra do Espírito Santo, primeiramente deve conhecê-Lo.”1 Com isso em mente, vamos refletir um pouco sobre a Pessoa do Espírito Santo, deixando que as Escrituras hebraicas falem por si mesmas.

O Espírito Santo é mencionado mais de 100 vezes, e de várias formas, nas Escrituras hebraicas: “Espírito de Deus (Elohim),2 “Espírito do Senhor” (YHWH),3 ou, simplesmente “o Espírito”.4 Analisemos cada uma dessas identificações.

Espírito de Deus

A palavra hebraica para “Espírito” (ruach) é encontrada pela primeira vez na frase “o Espírito de Deus” em Gênesis 1:2. Ali, o Espírito de Deus paira ou flutua sobre a superfície das águas no processo da criação. Assim, o Espírito Santo está ligado com a criação – o evento que separa Deus de outros deuses adorados nos mundos antigo e moderno. A ação do Espírito de Deus pairando sobre as águas O coloca não apenas no contexto da criação, mas também no da salvação. O verbo rachaf é a forma intensiva da raiz verbal que significa “flutuar”. O único exemplo, além desse, que usa o verbo nessa forma é numa metáfora de Deus redimindo Seu povo do Egito, na forma de uma águia despertando a ninhada e voando sobre seus filhotes (Dt 32:11). Essa imagem de nutrição e de salvação na história do Êxodo introduz o Espírito Santo no contexto de duas principais funções da Divindade: Criação e salvação.

Outros usos da expressão “Espírito de Deus” aparecem no contexto de capacitação de líderes: oito referências a Saul, primeiro rei israelita; duas vezes a Bezaleel, artífice escolhido para fabricar os objetos sagrados para o tabernáculo no deserto, e uma vez a José, Balaão, Azarias, Ezequiel e Zacarias.

A ligação de Saul com o Espírito Santo é muito interessante, até mesmo bizarra. Depois de haver sido ungido como rei, por Samuel (1Sm 10:1), Saul reuniu um grupo de profetas e começou a profetizar com eles (v. 10), como Samuel havia predito (v. 6). Essa experiência no início do reinado é
paralela com outra no fim dele. Depois que Mical, filha de Saul e esposa de Davi, ajudou Davi a escapar do intento assassino de Saul (1Sm 19:11-17), o rei enviou um grupo de soldados para prendê-lo, mas ao verem um grupo de profetas profetizando, o Espírito de Deus veio sobre eles e também profetizaram (v. 20). Evidentemente essa atividade profética neutralizou os planos do rei que, ouvindo isso, enviou outro grupo para prender Davi, com o mesmo resultado (v. 21). Depois, uma terceira tentativa foi feita, e o resultado se repetiu. Saul foi pessoalmente e, em vez de prender seu desafeto, também profetizou (v. 22-24).

Entretanto, Saul não parou aí. Despiu a túnica, continuou profetizando na presença de Samuel e deitou na terra durante o restante do dia (v. 24). Novamente, o Espírito Santo neutralizou o propósito assassino de um homem, dotando-o com uma experiência religiosa evidente. Saul foi movido do desejo insano de matar Davi para fervorosa devoção a Deus.5

Bezaleel é descrito duas vezes como estando cheio do Espírito de Deus. Nas duas ocasiões, isso foi manifestado em “destreza, habilidade e plena capacidade artística” para fazer os artefatos do santuário (Êx 31:3; 35:32). Semelhantemente, Faraó exaltou José por suas capacidades e o escolheu como primeiro ministro (Gn 41:38). Nesses exemplos, ser cheio do Espírito Santo tem que ver com capacitação para exercer liderança criativa. No caso de Bezaleel, isso nos deixa o exemplo de um santuário provido de beleza e bem equipado; no caso de José, liderança inspirada pelo Espírito não apenas assegurou a sobrevivência e continuidade de sua família, mas também garantiu a vinda do futuro Messias.

Finalmente, a frase “Espírito de Deus” também é aplicada a vários profetas que foram “movidos” por Deus. Ezequiel descreve a maneira pela qual o Espírito Santo o escolheu e, em visão, o levou à Caldeia para ver os cativos (Ez 11:24). Balaão, relutante profeta não israelita, acabou compelido a contrariar o desejo do rei que o contratou para amaldiçoar os peregrinos do Êxodo, mas os abençoou movido pelo Espírito de Deus (Nm 24:2). Azarias falou palavras de esperança ao desanimado rei Asa, instando-o a ser forte e libertar o povo da idolatria (2Cr 15:1-7). Zacarias
(filho do sacerdote Joiada, não o autor do livro) também falou bravamente ao povo durante uma época escura de sua história, quando o Espírito de Deus veio sobre ele (2Cr 24:20).

“O Espírito Santo está empenhado em transformar indivíduos medrosos em líderes destemidos”

Espírito do Senhor

O emprego da expressão “Espírito do Senhor” é mais comum. As primeiras ocorrências descrevem a capacitação dos juízes, por parte de Deus, para libertar Seu povo. Quando o Espírito de YHWH veio sobre Otniel, ele prevaleceu contra o Cusã-Risataim, da Mesopotâmia; Gideon, oriundo de um povo apóstata, reuniu grande exército entre seus servos, mas usou apenas 300 homens para defender os midianitas (Jz 6:27-30, 34; 7: 8). Jefté derrotou os amonitas (Jz 11:29-32) e Sansão recebeu grande força para derrotar os propósitos dos filisteus (Jz 13:25; 14:6, 19; 15:14).

Isaías também falou do Espírito de YHWH capacitando um Rebento do “tronco de Jessé” (o servo messiânico de YHWH) com sabedoria, entendimento, conselho, conhecimento, poder, temor do Senhor e julgamento justo (Is 11:1-5). Paralelamente, Miqueias afirmou que o Espírito do Senhor o encheu “de força e de justiça, para declarar a Jacó a sua transgressão, e a Israel o seu pecado” (Mq 3:8). Nesses contextos, o ponto relevante é que o Espírito do Senhor assegura liberdade, repouso e proteção aos filhos de Deus diante das ameaças que sofrem (Is 59:19; 63:14).

Também notamos que o Espírito Santo dá voz profética ao povo
(Ez 11:5). Até mesmo Saul profetizou, e um desconhecido levita, Jaaziel, foi escolhido e capacitado pelo Espírito do Senhor para dar um oráculo de encorajamento e vitória à nação ameaçada (1Sm 10:6; 2Cr 20:14-17). Antes que Samuel ungisse Davi como rei, o Espírito do Senhor veio sobre ele naquele momento (1Sm 16:13). Pelo resto de sua vida, Davi reconheceu: “O Espírito do Senhor falou por meu intermédio; Sua Palavra esteve em minha língua” (2Sm 23:2).

O Espírito

A palavra ruach (“espírito”), sozinha ou precedida por “meu”, “seu”, ou simplesmente “o” ocorre 378 vezes em 348 versos. Quando é usada dessa maneira, a palavra segue o modelo de outros usos bíblicos dela mesma, descrevendo atributos divinos, definindo o que Deus faz e indicando maneiras pelas quais o povo é capacitado para servir a Ele.

Algumas vezes, ruach pode ser descrita como tendo atributos divinos; por exemplo, “bom” (Sl 143:10), “generoso” (Sl 51:12), “facilitador de poder” (Zc 4:6), “onipresente” (Sl 139:7), “sofre com a rebelião humana” (Is 63:10) e que permanece com Seu povo, conforme prometeu (Ag 2:5). À frente de tudo isso está o papel de Deus como criador. Salmo 104 descreve a atividade de Deus na criação e Seu papel em mantê-la: “Quando sopras o teu fôlego, eles são criados, e renovas a face da Terra” (v. 30). Jó reconheceu esse papel do Espírito Santo quando disse: “Com Seu sopro os céus ficaram límpidos” (Jó 26:13).

A menção de ruach ligada à atividade de Deus inclui o trabalho do Espírito Santo com as pessoas antes de juízos divinos, durante eles, e na restauração. A primeira referência a esse trabalho está no contexto do Dilúvio: “Meu Espírito não contenderá com ele [homem] para sempre” (Gn 6:3). A preocupação divina com a rebeldia humana também pode ser vista nos oráculos proféticos:
“E durante muitos anos foste paciente com eles. Por Teu Espírito, por meio dos profetas, os advertiste. Contudo, não Te deram atenção, de modo que os entregaste nas mãos dos povos vizinhos” (Ne 9:30; ver Zc 7:12).

No Salmo 106, Davi reforça a ligação entre o Espírito Santo e os juízos: o povo se rebelou contra o Espírito de Deus, sendo entregue às nações (v. 33, 41). Quando finalmente veio o juízo como ato de purificação (de acordo com Isaías), foi “por meio de um espírito de julgamento e de um espírito de fogo” (Is 4:4) – uma pungente descrição da destruição de Jerusalém pelos babilônios.

A restauração prometida por Deus para depois do castigo é coerente com o modelo observado nas Escrituras hebraicas. É significativo que o Espírito Santo esteja ligado a esse processo. Isaías defende esse aspecto da ação divina, informando que haveria limites no castigo vindouro, ou seja, ele aconteceria “até que sobre nós o Espírito seja derramado do alto, e o deserto se transforme em campo fértil, e o campo fértil pareça uma floresta” (Is 32:15).

O Espírito demarca os limites dos juízos divinos, sendo útil na restauração da terra. Em outro capítulo, Isaías repetiu a garantia de restauração: “Pois derramarei água na terra sedenta, e torrentes na terra seca; derramarei Meu Espírito sobre sua prole, e Minha bênção sobre seus descendentes” (Is 44:3). Esse Espírito não Se afastaria “nem da boca dos seus filhos e dos descendentes deles, desde agora e para sempre, diz o Senhor” (Is 59:21). Portanto, a restauração depois do juízo se torna uma ação divina de recriar e restaurar o povo de Deus, por meio do Espírito Santo outorgado a esse povo.

A mesma ideia é repetida nos Provérbios: “Se acatarem a Minha repreensão, Eu lhes darei um espírito de sabedoria e lhes revelarei os Meus pensamentos” (Pv 1:23). Isso sugere que a vida insensata pode ser revertida em vida de êxito no momento em que o Espírito é derramado sobre alguém. O mesmo princípio está em operação nas posteriores declarações proféticas sobre juízo e restauração.

O terceiro uso que os escritores bíblicos fazem de ruach está relacionada à capacitação de líderes políticos e proféticos. Os 70 anciãos que ajudavam Moisés receberam o mesmo Espírito, que os habilitou a ajudá-lo “na árdua responsabilidade de conduzir o povo” (Nm 11:17). Quando isso foi feito, os anciãos profetizaram, mas apenas naquela ocasião (v. 25). Moisés recebeu a informação de que dois dos anciãos que não puderam ir à cerimônia também profetizaram, inspirados pelo Espírito (v. 26). Comentando o fato, Moisés expressou o desejo de que todo o povo recebesse o Espírito do Senhor (v. 29). Posteriormente, Joel profetizou que Deus faria exatamente isso (Jl 2:28). No contexto do Êxodo, esse dom universal do Espírito deve nutrir e instruir o povo de Deus (Ne 9:20).

Assim como os anciãos foram capacitados pelo Espírito derramado sobre Moisés, Josué também recebeu o mesmo Espírito (Nm 27:18). Semelhantemente, Eliseu foi capacitado pelo Espírito que habilitou Elias (2Rs 2:9, 15). Posteriormente, Isaías falou do Servo de YHWH, que libertaria o povo israelita do cativeiro babilônico e levaria justiça aos gentios, porque o Espírito de Deus estava sobre Ele (Is 42:1; 48:20).

Ezequiel acrescenta interessantes dimensões a esse assunto. Em sua visão do trono de Deus, o Espírito dirige as rodas (Ez 1:20), e também dirigiu o profeta em seus movimentos.
O Espírito pôs Ezequiel sobre seus pés (Ez 2:2; 3:24) e o levantou (Ez 3:12, 14; 8:3; 11:1, 24; 43:5). Em outra visão, o Espírito de YHWH o levou a um vale de ossos secos (Ez 37:1).

Ontem e hoje

As Escrituras hebraicas são muito ricas nas descrições sobre o Espírito Santo. Elas O apresentam associado com a criação e ativo na redenção. É-nos dito que o Espírito é bom, generoso, facilitador de poder, não de violência. Exemplo disso é visto nos episódios envolvendo pessoas com intento assassino ou com propósito amaldiçoador transformadas em profetas sob a influência do Espírito.

Quando as Escrituras hebraicas descrevem a atividade do Espírito, elas abordam temas como ensino, advertência, apelo e esforço para prevenir as terríveis consequências da rebelião humana. Quando essas advertências são ignoradas, os escritores bíblicos também pintam o Espírito como estando presente durante os juízos; mas também possibilitando a restauração. Parece que o Espírito realmente limita os efeitos dos juízos, conduzindo-os ao fim, nutrindo e restaurando a terra e o povo.

Finalmente, o Espírito está empenhado em transformar medrosos em líderes destemidos, dar habilidades aos artistas e aprimorá-las. Por meio do Espírito, Deus capacita homens e mulheres para que se tornem Seus porta-vozes, que deem a um mundo enfeitiçado pelos enganos satânicos uma dose de realidade salvadora, levando-o de volta Àquele que pode salvar. O que podia ser mais relevante para o século 21? 

Referências:

1 R. A. Torrey, The Person and Work of the Holy Spirit (Grand Rapid, MI: Zoondervan, 1974), p. 9.

2 Gn 1:2; 41:38; Êx 31:3; 35:31; Nm 24:2;
1Sm 10:10; 11:6; 19:20, 23; Jó 33:4; Ez 11:24; 2Cr 15:1; 24:20.

3 Jz 3:10; 6:34; 11:29; 13:25; 14:6, 19; 15:14; 1Sm 10:6; 16:13, 14; 2Sm 23:2; 1Rs 18:12; 22:24; 2Rs 2:16; Is 11:2; 40:13; 59:19; 63:14; Ez 11:5; 37:1; Mq 2:7; 3:8; 2Cr 18:24; 20:14.

4 Gn 6:3; Nm 11:17, 25, 26, 29; 27:18; 2Rs 2:9, 15; Is 4:4; 32:15; 34:16; 37:7; 42:1; 48:16; 59:21; 63:10, 11; Ez 1:20, 21; 2:2; 3:12, 14, 24; 8:3; 11:1, 24; 43:5; Jl 2:28, 29; Ag 2:5; Zc 4:6; 6:8; 7:12; 12:10; Ml 2:15; Sl 51:11, 12; 104:30; 106:33; 139:7; 143:10; Jó 26:13; 33:4;
Pv 1:23; Ne 9:20, 30; 1Cr 28:12.

5 S. Mowinckel, Journal of Biblical Literature 53,
nº 3 (1934), p. 199-227.