CAMPEÕES DA IMORTALIDADE CONDICIONAL ATRAVÉS DOS SÉCULOS
PERGUNTA 44
Referis-vos a outros que, através dos séculos, têm sustentado que a imortalidade só é concedida por ocasião da ressurreição; que os justos mortos dormem durante o ínterim da morte, até que, na ressurreição, os desperte o Doador de vida; e também, que os ímpios serão afinal destruídos. Quem são esses “condicionalistas?” Não sao eles obscuros hereges, pois por assim dizer todos os sábios ortodoxos têm crido na imortalidade inata? Por bondade nomeai alguns dos exegetas aos quais vos referis, e citai alguns dos seus escritos.
A verdade não é, e nunca foi, estabelecida por maiorias humanas. A verdade teológica baseia-se sempre, e unicamente, na imutável Palavra de Deus, e é determinada por seus inspirados preceitos e princípios. Mas tem havido sempre piedosos e ilustrados campeões da verdade genuína. E este é positivamente o caso da imortalidade unicamente em Jesus Cristo e por Ele unicamente, por ocasião de Seu segundo advento. A imortalidade é um dom, cremos nós, concedido unicamente aos justos, que pela fé aceitaram a vida eterna em Cristo (S. João 3:16 e 36; S. João 11:25 e 26), ao manifestar-Se nosso Senhor (I S. João 5:11; I Cor. 15: 51 e 53).
A linha de adeptos desta grande verdade bíblica tem sido mais constante, mais forte e mais ilustre do que a maioria de nós tem percebido. Com efeito, a linha dos seus defensores tem sido virtualmente contínua, dos tempos da Reforma para cá. Os nomes desses piedosos líderes cristãos e brilhantes exegetas, encontrados em cada geração, espalharam-se pelos séculos. Por exigüidade de espaço, aqui só poderemos citar alguns; mas o registo histórico é surpreendente. Para fazer justiça ao caso, teríamos de escrever alentado volume, mas os exemplos citados a seguir indicam o alto gabarito, e muitas vezes as posições-chave ocupadas por esses adeptos do condicionalismo, como é muitas vezes chamado, ou seja: vida unicamente em Cristo, mediante a ressurreição. Os exemplos têm de limitar-se aos homens dos tempos da Reforma para cá.*
* Notemos que, anteriormente, os valdenses do Piemonte, em seu catecismo para instrução de seus jovens (Morland, The History of the Evangelical Churches of the Valleys of the Piedmont, 1658, p. 75), declararam que o homem é apenas “mortal”. E João Wiclef — que deles derivou muitos de seus conceitos evangélicos — mantinha igualmente que a imortalidade seria concedida por ocasião da ressurreição, e que os mortos não podem agora receBer benefício de orações, mas estão “totalmente mortos”, dizendo-se que “estão dormindo”.
A refulgência da relação de nomes que se seguem, certo indica que o epíteto “herege”, em contraste com a “ortodoxia” da maioria, não pode com justiça aplicar-se a esse notável grupo de líderes cristãos: bispos, arcebispos, arcedíagos, deões, cônegos, presbíteros, professores, lingüistas, tradutores da Bíblia, exegetas, administradores, diretores, pastores, editores, poetas, cientistas, causídicos, filósofos, e mesmo um primeiro-ministro — cujos nomes têm adornado o púlpito da igreja cristã e têm merecido a confiança e respeito de seus colegas.
Esses homens, além do mais, participavam das mais diversas crenças: Luterana, Reformada, Anglicana, Batista, Congregacional, Presbiteriana, Metodista, etc. E não só se estendem através de quatro séculos, mas existem hoje nos altos círculos eclesiásticos. E cremos que se eles, cujos nomes continuam honrados, reverenciados e incontestados em suas respectivas filiações eclesiásticas, não eram considerados hereges por assim crer e ensinar, então, pelo mesmo motivo tampouco nós, nem quaisquer outros contemporâneos (como o falecido Arcebispo de Cantuária, Dr. William Temple, primaz anglicano da Grã-Bretanha), que conscienciosamente sustentam a mesma fé, podem com justiça ser acusados de heresia por assim crer.
Ambiente Histórico
Em 19 de dezembro de 1513, quando da oitava sessão do quinto Concilio de Latrão, o Papa Leão X publicou uma bula (Apostolici regimis) na qual declara: “Condenamos e reprovamos todos os que afirmam que a alma inteligente seja mortal’’ (Damnamus et reprobamus omnes assertentes animam intellectivam mortalem esse). Essa bula dirigia-se contra a crescente “heresia’’ dos que negavam a imortalidade natural da alma, e defendiam a imortalidade condicional do homem. A bula decretava também que “todos os que aderirem a semelhantes asserções errôneas sejam evitados e punidos como hereges”. Os decretos deste Concilio, convém notar, foram todos publicados em forma de bulas ou constituições (H. J. Schroeder, Disciplinary Decrees of the General Councils, 1937, pp. 483 e 487).
Em 1516 Pietro Pomponatius, de Mântua, notável professor italiano, e líder dos Averroristas (que negavam a imortalidade da alma), publicou um livro de combate a essa fé, intitulado Tratado Sobre a Imortalidade da Alma. Teve muitos leitores, especialmente nas universidades italianas. Em resultado, foi arrastado diante da Inquisição, e seu livro queimado publicamente, em Veneza.
Então, em 31 de outubro de 1517, Lutero afixou suas famosas Teses na porta da igreja de Wittenberg. Em sua Defesa de 41 de suas posições, publicadas em 1520, Lutero citou a declaração de imortalidade, do Papa, como sendo “uma dessas opiniões monstruosas encontradas no monturo das decretais” (proposição 27). Na vigésima sétima proposição de sua Defesa, Lutero disse:
Entretanto, permito que o Papa estabeleça artigos de fé para si mesmo e para seus fiéis, isto é: Que o pão e o vinho se transubstanciem no sacramento; que a essência de Deus não gera nem é gerada; que a alma é a forma substancial do corpo humano; que ele [o Papa] é imperador do mundo e rei do Céu, e deus terrestre; que a alma é imortal; e todas essas intermináveis monstruosidades do monturo romano de decretais — a fim de que, tal como sua fé, seja seu evangelho, tais também seus fiéis, e tal sua igreja, e que os lábios possam ter alface adequada, e a tampa seja digna da iguaria. — Martinho Lutero, Assertio Omnium Articulorum M. Lutheri per Bullam Leonis X. Novissimam Damnatorum (Asserção de todos os artigos de M. Lutero condenados pela última Bula de Leão X), artigo 27, edição de Weimar das Obras de Lutero, Vol. 7, pp. 131 e 132 (exposição, ponto por ponto, de sua atitude, escrita em l.° de dezembro de 1520, em resposta a pedidos de um tratado mais completo do que o exposto em seu Adversus Execrabilem Antichristi Bullam, e Wider die Bulle des Endchrists).
O arcedíago Francis Blackburne declara, em seu Short Historical View of the Controversy Concerning an Intermediate State, de 1765:
Lutero esposou a doutrina do sono da alma, com base nas Escrituras, e então fez dela uso para negar o purgatório e a adoração dos santos, e nessa crença continuou até ao último momento de sua vida. — p. 14.
Em apoio, Blackburne tem um extenso apêndice tratando dos ensinos de Lutero, expostos em seus escritos, e estuda as acusações e contra-acusações.*
Seguem algumas das principais testemunhas dos últimos séculos, com Lutero e Tyndale em mais pormenores:
Século Dezesseis
MARTINHO LUTERO (1493-1546), reformador alemão e tradutor da Bíblia.
A causa imediata da posição de Lutero quanto ao sono da alma foi a questão do purgatório, com o seu postulado do tormento consciente de almas angustiadas. Conquanto Lutero nem sempre seja coerente, a nota predominante em todos os seus escritos é que as almas dormem em
* O douto luterano, Dr. T. A. Kantonen (The Christian Hope, 1594, p. 37), referiu-se igualmente à posição de Lutero, nestes termos:
“Lutero, com maior ênfase sobre a ressurreição, preferiu concentrar-se na metáfora escriturística do sono. ‘Pois justamente como alguém que adormece e alcança inesperadamente a manhã ao acordar, sem saber o que lhe aconteceu, assim de súbito ressurgiremos no último dia, sem saber como morremos e como vencemos a morte’. ‘Dormiremos, até que Ele venha e bata à porta do pequenino sepulcro e diga: Doutor Martinho, levante-se! Então me levantarei num momento, e com Ele estarei, feliz para sempre’ ”.
paz, sem consciência nem sofrimento. Os cristãos falecidos não se apercebem de coisa alguma: não vêem, não sentem, não entendem e não estão conscientes da sucessão dos acontecimentos. Lutero sustentava, e periodicamente afirmava que, no sono da morte, como no sono físico normal, há completa inconsciência e despercebimento da condição de morto ou da passagem do tempo.** A morte é um sono, profundo e doce sono.*** E os mortos permanecerão adormecidos até ao dia da ressurreição,**** a qual abrange corpo e alma, quando ambos se reunirem de novo.*****
Eis algumas citações de Lutero:
Salomão conclui que os mortos estão dormindo, e não sentem nada, absolutamente. Pois os mortos ali jazem, sem contar os dias nem os anos, mas quando são despertados, terão a impressão de ter dormido apenas um minuto. — An Exposition of Solomon’s Book, Called Eclesiastes or the Preacher, 1573, folio 151v.
Mas nós cristãos, que fomos redimidos de tudo isso, pelo sangue precioso do Filho de Deus, devemos educar-nos e acostumar-nos, com fé, a desprezar a morte e considerá-la um sono profundo, intenso e doce; a considerar o esquife nada mais que o seio do Senhor Jesus ou Paraíso, a sepultura coisa nenhuma senão um brando e confortável leito para repousar. Verdadeiramente, diante de Deus, é na realidade justamente isto; pois Ele testifica, em S. João 11:11: Lázaro, o nosso amigo, dorme; S. Mateus 9:24: A menina não está morta, mas dorme. Assim, também, S. Paulo em I Coríntios 15, remove da vista todos os aspectos odiosos da morte em relação ao nosso corpo mortal, e não apresenta nada mais que aspectos encantadores e jubilosos da vida prometida. Diz ele ali [vv. 42, etc.]: Semeia-se o corpo em corrupção; ressuscitará em incorrupção. Semeia-se em ignomínia (isto é, forma indigna, abominável), ressuscitará em glória. Semeia-se em fraqueza, ressuscitará com vigor. Semeia-se corpo animal, ressuscitará corpo espiritual. — “Christian Song Latin and German, for Use at Funerais’’, 1542, em Works of Luther (1932), vol. 6, pp. 287 e 288.
** Ver “Auslegung des Ersten Buches Mose” (1544), em Schriften, vol. 1, col. 1756; “Kirken Postille” (1528), em Schriften, vol. 11, col. 1143; Schriften, vol. 2, col. 1069; Deutsche Schriften (ed. de Erlangen, vol. 11, p. 142 etc.; vol. 41 (1525), p. 373.
*** “Catechistische Schriften” (1542), em Schriften, vol. 11, pp. 287 e 288.
**** “Auslegungen ueber die Psalmen” (3) em 1533, em Schriften, vol. 4, pp. 323 e 324.
***** “Am Zweiten Sonntage nach Trinitatis”, “Haus-Postille”, em Schriften, vol. 13, col. 2153; “Predigt ueber I Cor. 15: (54-57”, 1533), “Auslegung des neuen
Testament”, em Schriften, vol. 8, col. 1340.
Assim após a morte a alma vai para sua alcova e sua paz, e enquanto dorme não reconhece seu sono, e Deus na verdade assegura o despertar da alma. Deus é capaz de despertar Elias, Moisés e outros, e assim os controlar, de modo que vivam. Mas como pode ser isto? Isto não sabemos; satisfazemo-nos com o exemplo do sono físico, e com o que Deus diz: é um sono, um repouso, uma paz. Aquele que dorme naturalmente nada sabe do que acontece em casa do vizinho; e não obstante, ele está vivo ainda, embora, contrariamente à natureza da vida, ele esteja inconsciente em seu sono. Exatamente a mesma coisa acontecerá também naquela vida, mas de maneira diferente e melhor. * — “Ersten Buches Mose”, em Schriften, vol. 1, cols. 1759 e 1760.
Eis outro exemplo:
Devemos aprender a olhar à nossa morte da maneira devida, de modo que não fiquemos alarmados por sua causa, como faz a incredulidade; porque em Cristo realmente não é morta, mas um excelente, doce e breve sono, que nos traz alívio deste vale de lágrimas, do pecado e do temor e extremidade da verdadeira morte e de todos os infortúnios desta vida, e estaremos em segurança e sem cuidados, repousando doce e suavemente por um breve instante, como num divã, até ao tempo em que Ele nos chamará e despertará, juntamente com todos os Seus queridos filhos, para Sua eterna glória e alegria. Pois, já que lhe chamamos sono, sabemos sue não permaneceremos nele, mas despertar-nos-emos • e viveremos, e o tempo durante o qual dormimos, não parecerá mais longo do que se apenas acabamos de adormecer. Daí, havemos de censurar-nos por nos termos surpreendido ou alarmado ante tal sono na hora da morte, e subitamente surgiremos vivos da sepultura e da decomposição, e em perfeito bem-estar, novos, com vida pura, clara, glorificada, ao encontro de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo nas nuvens. (…)
A Escritura por toda parte apresenta essa consolação, falando da morte dos santos, como se eles tivessem adormecido e fossem reunidos a seus pais, isto é, tivessem vencido a morte mediante essa fé e conforto em Cristo, e aguardado a ressurreição, juntamente com os santos que os precederam na morte. — A Compend of Luther’s Theology, editado por Hugh Thompson Ker, Jr., p. 242.
* Em sua tese de Doutor em Letras (1946), “A Study of Martin Luthr’s Teaching Concerning the State of the Dead”, T. N. Ketola, relacionando as referências de Lutero à morte como um sono (encontradas em suas Sammtliche Schriften, Walsh’s Concordia, ed. 1904), cita 125 específicas referências de Lutero à morte como um sono. Ketola cita outro grupo menor de referências mostrando que Lutero cria na consciência periódica de alguns. Mas o ponto principal é que, conquanto os mortos vivam, estão inconscientes — o que ele declara umas sete vezes.
WILLIAM TYNDALE (1484-1536), tradutor da Bíblia para o inglês, e mártir.
Na Grã-Bretanha, William Tyndale, tradutor da Bíblia para o inglês, tomou a defesa do renovado ensino da imortalidade condicional. Este, bem como outros ensinos, levaram-no em conflito direto com o campeão do Papa, Sir Tomás More, também da Inglaterra. Em 1529 More fizera fortes objeções à “pestilente seita” representada por Tyndale e Lutero, porque sustentavam que “todas as almas jazem e dormem até ao dia do juízo”. Em 1530 Tyndale respondeu vigorosamente, declarando:
E vós, colocando-as [as almas que partiram] no Céu, no inferno ou no purgatório, destruís os argumentos mediante os quais Cristo e Paulo provam a ressurreição. (…) E mais, se as almas estão no Céu, dizei-me porque não estão em tão boas condições como os anjos? E então, que motivo existe para a ressurreição? — William Tyndale, An Answer to Sir Thomas More’s Dialogue (Parker’s 1850, reimpressão), livro 4, cap. 4, pp. 180 e 181.
Tyndale penetrou no coração da questão, focalizando a oposição do Papa aos ensinos de “filósofos pagãos”, buscando firmar sua asserção de imortalidade inata.
Assim:
A verdadeira fé apresenta a ressurreição, da qual convém estarmos apercebidos a toda hora. Os filósofos pagãos, negando-as alegavam que as almas viviam sempre. E o Papa ajunta numa só a doutrina de Cristo e a carnal doutrina dos filósofos — coisas tão contraditórias que não podem concordar, não mais do que o fazem o Espírito e a carne num homem cristão. E por isso que o Papa, de espírito carnal, concorda com doutrina pagã, ele corrompe as Escrituras para isso sustentar. — Id., p. 180.
(continua no próximo número)