Juizes 11
Introdução
A Narrativa do voto de Jefté, registada em Juizes 11, será sempre uma história pungente, não importa a interpretação que se lhe dê, pois nunca deixará de ser a história do sacrifício de algo muito caro ao coração de um pai — seja a morte real da filha querida, seja sua morte simbólica na dedicação ao eterno celibato. Em qualquer dos casos houve a perda irreparável da continuidade do nome de uma família de nobre estirpe por falta de descendente, coisa que em Israel poderia ser mais penoso do que a própria morte.
Quando se lê êsse amargo episódio da história de Israel, sob a imediata impressão de que Jefté sacrificou a filha em holocausto a Jeová, é quase impossível sopitar um sentimento de angústia e de pena. O próprio autor dêste artigo, desde os seus primeiros contatos com as Sagradas Escrituras, nunca pôde afastar do coração a mágoa de supor o extremoso Jefté entregando a filha única ao afiado cutelo do sacrificador. Essa mágoa o acompanhou até que, em face de um estudo mais aprofundado do assunto, pôde convencer-se de que tal tragédia na verdade não ocorreu, isto é, não houve o sacrifício cruento; Jefté não banhou em sangue o voto de sua consagração ao Deus de Israel.
Na esperança de que o resultado dêste estudo possa ajudar de alguma forma a tirar um pêso do coração, de muito leitor, trazemo-lo para as páginas de O Ministério Adventista, embora esta revista alcance apenas uma parcela dos leitores adventistas, ou por isto mesmo.
Não é coisa desconhecida entre os estudiosos que muito sucesso narrado nos compêndios da História — profana ou eclesiástica — tem chegado até nós com sentido esquivo em virtude da decorrência de tempo, pela transposição dêsses sucessos para uma época diferente, pelo desconhecimento do ambiente histórico em que o fato ocorreu, a alteração semântica ou corrupção de vocábulos, a ausência de pontuação e sinais diacríticos, supridos mais tarde pelos escribas e massoretas, o que deixou o sentido muitas vêzes à mercê do arbítrio humano. E neste último caso avulta entre nós adventistas S. Luc. 23:43: “Em verdade te digo …” etc.
Quase pode dizer-se que no caso do voto de Jefté, a narrativa sofreu tôdas essas influências acima citadas, especialmente a alteração no sentido de vocábulos, e isto através de sucessivas revisões do texto bíblico em diferentes versões. E releva notar que certos textos que poderiam lançar luz sôbre o episódio de Jefté, ajudando a entender o acontecimento dentro da lógica e do bom senso
Nota da Redação: O presente trabalho, embora longo, é publicado de uma só vez, pela inconveniência de seccioná-lo, dada a sua natureza. na moldura da teologia, da liturgia do sistema sacrifical do povo hebreu em sentido geral — muitos dêsses textos, repetimos — foram revisados com o propósito confessado de ajustá-los ao entendimento dos críticos de que o sistema religioso de Israel incluía sacrifícios humanos. É o caso, para só citar um exemplo, de Lev. 27:29. Êste texto é de suma importância para a compreensão exata do sentido do voto de Jefté, e por isto mesmo será objeto no presente estudo, de uma consideração mais demorada oportunamente.
Consideramos desnecessário reproduzir aqui o texto de Jefté em tôda sua extensão, visto que todos o conhecemos. Basta-nos para o momento ter em vista que Jefté fêz um voto que, no caso de envolver a morte da própria filha ou de qualquer outro ser humano, foi um voto imprudente, insensato, desarrazoado, não requerido pela lei cerimonial dos hebreus, e por isto mesmo um voto que não poderia ser aceito por Deus, pois em tôda instrução a Israel é tornado relevante o fato de que Jeová abominava sacrifícios humanos, proibira-os ao Seu povo, e por causa desta abominação aquêles povos gentios foram lançados fora de sua terra, vindo Israel a habitar nelas como parte do conjunto das promessas de Deus a Seu povo.
É certo, porém, que o voto de Jefté envolvia um sacrifício supremo, conscientemente expresso nas palavras “Aquilo que,” ou “seja o que fôr,” isto é, cara como possa ser a propriedade, “será do Senhor.” Verso 31. As versões mais antigas, principalmente inglêsas, grafam: “Seja o que fôr que,” ao passo que à medida em que essas versões vão sofrendo revisões, o sentido também vai sendo alterado, como acaba de acontecer com nossa Almeida Revista, que repete a Revised Standard Version, de 1952: “Aquêle que.” Nossa Almeida não revista grafa corretamente: “Aquilo que.” Tá a Almeida “melhorada” da Imprensa Bíblica Brasileira (não confundir com a Sociedade Bíblica do Brasil), edição de 1948, conserva “aquilo que,” mas em chamada marginal alerta: “aquêle.”
É visível o propósito de evoluir de “aquilo” para “aquêle,” de modo que se torne defensável a tese de que o voto implicava apenas sêres humanos. Essa tendência sorrateira de evoluir gradativamente para o sentido de certas conveniências, é curiosamente observado na Revised Standard Version. Esta, como sabem os leitores, é uma revisão da King James, realizada primeiro em 1881-1885, por um grupo de teólogos inglêses e americanos. Nesta os revisores deixaram no texto “aquilo que,” contentando-se em fixar na margem “aquêle que.” É que nessa primeira revisão prevaleceu a opinião do grupo inglês, na base de um “acôrdo de cavalheiros” feito entre os dois grupos, segundo o qual, quando não houvesse unanimidade, prevalecería o ponto de vista inglês, por terem tido êstes a iniciativa da revisão da King James. Já na revisão americana da Revised Standard Version, de 1952, findo o acôrdo, o grupo americano mandou às urtigas o “aquilo” e meteu no texto “aquêle.” E êste exemplo não é o único, como veremos mais adiante.
Um estudo cuidadoso e acurado dêste assunto torna imprescindível a análise tanto do voto em si como da pessoa do votante, Jefté. E entendemos ser mais elucidador analisar primeiro a pessoa de Jefté, deixando a análise do voto em segundo lugar.
Que espécie de homem era Jefté? Era um homem culto ou ignorante? Sua formação religiosa era sólida, ou era êle uma espécie de meio-israelita meio-pagão?
A increpação de que Jefté, por ter sido filho de uma prostituta, era um homem ignorante, é excessivamente injusta. Primeiro, porque Jefté fôra criado no lar de Gileade, sob os cuidados da esposa legítima dêste e com os seus meio-irmãos. O ser alguém filho de prostituta não representava na época mancha nenhuma. Gileade, pai de Jefté, era um príncipe em Israel, e só o interesse de herança provocou sua expulsão da casa do pai pelos irmãos. “Não herdarás em casa de nosso pai,” disseram êles, “porque és filho de outra mulher. Era um simples problema de partilha de bens, e não de condição social ou de origem. Como esta expulsão ocorreu “sendo já grandes” (verso 2), torna-se evidente que Jefté recebeu a mesma educação e instrução dos demais filhos de Gileade.
Pelos versos 12 e 13 do capítulo 11, verifica-se que Jefté era homem prudente, polido, hábil político, pois procurou dissuadir pacìficamente ao rei de Amom a que saísse dos têrmos de Israel. A partir do verso 15, até o verso 28, podemos notar o profundo conhecimento que tinha Jefté da história de Israel. Êle não comete nenhum êrro quer de história, quer da geografia da época ou de perspectiva política. Conhece todos os limites das possessões de Israel, e tôdas as implicações políticas resultantes dos atos de posse. (V. 26.)
Não era, pois, Jefté, um meio-pagão ignorante, como pretendem mostrá-lo alguns. É certo que viveu algum tempo entre marginais, quando expulso da casa do pai, mas o mesmo não ocorreu com Davi?
Seria Jefté um homem irreligioso, ou religioso mal esclarecido? Fàcilmente se verifica que não. Ao introduzi-lo na história, o verso 1 de Juizes 11 diz que êle era um homem “valente e valoroso.” Notem que a designação “valoroso” não parece indicar apenas um homem de coragem, mas um homem de caráter, de fé. Assim é dito também de Gideão que era um “varão valoroso.” E de Naamã, que nem israelita era, é dito também ser homem “valoroso,” e nós sabemos da integridade dêste capitão sírio. De outros homens se diz que eram “valentes,” sem a ênfase de “valorosos,” como se pode ver de Saul, na lamentação de Davi, e outros exemplos. A Almeida Revista eliminou em Juí. 11:1 o adjetivo “valoroso,” tomando-o como redundância de “valente.” E errou ao fazê-lo. Não era redundância; era ênfase.
Que Jefté era homem religioso, e religioso esclarecido, consciente, vê-se na mensagem enviada por êle ao rei de Amom. Ao historiar longamente a saída de Israel do Egito, e a tomada em possessão das terras outrora pertencentes aos desapossados, nem um momento sequer deixa êle de atribuir a Jeová êsses atos, e manifesta nessa mensagem sua confiança em que o Deus de Israel ainda é o mesmo e pelejará por Seu povo outra vez. (Verso 27.) Tudo nêle sabe a bom senso. Nada que indique desequilíbrio ou fanatismo.
Sintomática também da sólida espiritualidade desse líder de Israel, é sua escolha para conduzir os exércitos israelitas contra os filhos de Amom. Essa escolha ocorreu num momento e em circunstâncias muito especiais. Vale a pena rememorá-la:
Jefté havia sido expulso de casa pelos irmãos. Entrementes os exércitos de Amom invadem a ter ra. Comparando-se em Juí. 10:15 e 16 com 11:5, verifica-se que Jefté foi buscado pelos homens de Gileade depois de um grande movimento de reconsagração a Deus, com confissão de pecados e reconhecimento de culpa. Os ídolos são lançados fora, e é feito um nôvo concêrto entre o povo e Deus. Precisavam agora de um homem que liderasse os exércitos de Israel, homem que fôsse tão “valente” “quão valoroso,” isto é, corajoso e fiel. Êsse homem foi encontrado na pessoa de Jefté.
Ora, sem nenhum esfôrço pode ver-se que Jefté não era homem ignorante, inculto, fanático ou místico. Era um homem equilibrado, profundamente fiel a Jeová. Após receber a investidura de líder, o seu primeiro cuidado é buscar a Deus, juntamente com os anciãos de Gileade, numa ratificação do acôrdo feito entre êles e o povo na presença de Deus (versos 10 e 11).
Seria fácil aceitar a idéia de que um homem como Jefté, num ato do mais grosseiro paganismo, tivesse chegado à loucura de votar a Deus, em sacrifício abominável, um ser humano, mesmo que êsse ser não fôsse sua própria filha? É tão absurdo admitir isto, como seria imaginar que um dos nossos líderes dos mais reconhecidamente consagrados, ponderados e fiéis, no momento mesmo de uma grande reunião de consagração do coração a Deus, sacasse do bôlso a imagem de um santo da igreja católica e ali, diante de todo o povo, se prostrasse de joelhos perante ela. Estaria louco, por certo. Mas Jefté não estava louco; nunca estêve. Então, o senso saudável conduz à conclusão de que Jefté não poderia ter oferecido sua filha em holocausto a Deus.
A fim de não tumultuar as idéias, estamos dando expansão a uma linha de raciocínio antes de entrar no aspecto mais técnico dêste estudo. Isto ajudaria a esvaziar a mente de qualquer “decisão” prèviamente tomada, ajudando a considerar o assunto num plano de reflexões comparadas. Por exemplo:
A corrente que sustenta haver Jefté de fato sacrificado a filha, afirma que era comum entre os israelitas e práticas de sacrifícios pagãos.
Essa afirmação só é verdade em parte, e não tem a mínima semelhança com o caso de Jefté. Os que faziam sacrifícios pagãos, como o de oferecer filhos em holocausto, jamais o fizeram “a Jeová.” Faziam-no a ídolos. Em outras palavras, israelitas apostatados do culto de Jeová, apegavam-se ao culto pagão. Não há um único exemplo biblico de israelita, mesmo apostatado, oferecer sacrifício humano ao Deus de Israel. E os que sacrificaram a ídolos, foram sempre classificados como ímpios. É o caso dos reis Acaz e Manassés. São apresentados como ímpios reis de Israel.
Os sacrifícios humanos sempre causaram o maior horror aos israelitas fiéis, como se pode ver da reação do exército de Israel em face de um exemplo dêsses oferecido pelo rei Mesa de Moabe. (Ver II Reis 3:27 e 28.)
Cita-se muitas vêzes o exemplo de Gideão que, embora fiel servo de Deus, praticou no final de sua vida um ato de idolatria, o que poderia ter ocorrido também com Jefté. A lembrança é bem oportuna, e nos permite fazer algumas observações. Primeiro, o que Gideão fêz, foi supor que sua posição e seu chamado lhe comunicavam autoridade sacerdotal, e com base nessa conclusão errônea, praticou alguma coisa que no seu entender supria a ausência local de sacerdote. E mais: Ellen G. White, comentando o procedimento de Gideão, não lhe poupa séria censura. Entretanto, falando de Jefté, não lhe dirige a menor reprovação, e menciona-o como “um libertador,” que Deus suscitara. — Patriarcas e Profetas, pág. 596. Nenhuma referência desabonadora à pessoa do líder gileadita. Teria a irmã White deixado de servir-se da oportunidade para oferecer ao povo de Deus neste tempo preciosas lições do procedimento de Jefté, tivesse êle praticado, embora honestamente, o ato monstruoso que lhe é atribuído? Mas Gideão também agiu honestamente, e a irmã White nem por isto deixa de citá-lo ao povo de Deus hoje como um penoso exemplo nesse caso específico.
Ora, se o voto de Jefté não é mencionado pela irmã White como um êrro; se pelo relato biblico se verifica que Deus aceitou o voto; se Jefté aparece no capítulo 11 de Hebreus como um dos heróis da fé, ao lado mesmo de Gideão; se, quando fêz êste voto, Jefté estava sob a influência do Espírito de Deus (v. 29); se no próprio texto em que o procedimento de Jefté é citado, não há a mais leve insinuação de que o seu procedimento foi repulsivo, não há como aceitar a idéia de que êsse líder em Israel praticou um ato infamante, que haveria de despertar a repulsa de todos os seus contemporâneos. E não só a repulsa, mas até mesmo uma reação libertária, como aconteceu com Saul no caso de Jônatas (I Sam. cap. 14).
Em face do que se expôs até aqui, é fácil concluir que o voto de Jefté estava em harmonia com as ordenações divinas, tendo obedecido à lei que disciplinava para o povo de Israel os votos de consagração. Isto é o que podemos ver sem dificuldade, na análise que faremos do voto de Jefté.
Analisando a Lei dos Votos
Uma acurada análise da lei que regulava os votos leva à conclusão de que o conhecimento que tinha Jefté das leis e ordenanças do culto hebreu não era menor do que o que possuía da história de Israel.
Os votos eram coisa muito solene no conjunto da prática religiosa no culto de Israel. Não eram obrigatórios, mas uma vez feitos, deixar de cumpri-los era cometer sacrilégio. A regulamentação da lei dos votos encontra-se no capítulo 27 de Levíticos. Tendo todos nós à mão o capítulo, deixamos de transcrevê-lo, e só faremos citação de texto quando isto fôr útil para clareza de sentido.
Eram de duas naturezas os votos — remissível e irremissível — e nêles podiam ser incluídos tanto sêres humanos, como animais, objetos, casas, campos etc. Qualquer propriedade podia ser votada ao Senhor.
Quando um israelita votava a Deus alguma coisa com a intenção de redimi-la, êste era chamado voto de dedicação (na King James é designado como “voto singular,” ao passo que a Almeida não revista classifica-o como “particular.” Lev. 27:2). O voto não remissível era chamado voto de consagração. Está especificado no verso 28 de Lev. 27. Aqui a Almeida Revista foi mais clara, designando-o de forma específica como voto “irremissível.”
Informa Clarke que a designação hebraica para êsses dois tipos de votos é Neder, para os votos singulares, ou remissíveis, e Cheren, ou Jeren, para os irremissíveis.
A Natureza do Voto Remissível. — Era um voto de consagração branda (dedicação), isto é, em que a pessoa manifestava gratidão comum, e se redimia com dinheiro, conforme a avaliação do sacerdote (Versos 2 e 3); e o padrão de avaliação era o ciclo chamado “do santuário.” O que servia de base para a avaliação no caso de pessoas, era a idade. A avaliação mais alto estava entre pessoas de vinte a sessenta anos. Acima de sessenta a avaliação caía, levando-se em conta também que as pessoas do sexo feminino obtinham avaliação mais baixa do que os do outro sexo. E esta observação é importante no caso de nosso estudo do voto de Jefté, como se verá mais adiante.
Quando a coisa votada era um animal, se fosse limpo e servisse para o sacrifício e o dono não o quisesse remir, embora o voto fosse remissível, o sacerdote o oferecia em holocausto, pois se tornara propriedade da nação. Era esta uma das fontes de que provinham os sacrifícios da manhã e da tarde. Quando, porém, se tratava de animal imundo, o sacerdote o avaliava para ser vendido. Se o próprio dono o quisesse comprar (redimir), deveria acrescentar um quinto à avaliação do sacerdote (verso 11).
No caso de propriedades, se fôsse por exemplo uma casa, a avaliação seguia o mesmo processo anterior, podendo o dono resgatá-la com o acréscimo de um quinto. Mas se se tratasse de um campo, o que regulava a avaliação era o ano do Jubileu, visto que nesse ano a propriedade retornaria aos donos primitivos conforme a lei. Assim, o valor da avaliação dependia da maior ou menor proximidade do ano do Jubileu. É interessante notar que nesse mesmo capítulo 27, que regula os votos, fica expressamente proibido a dedicação de primogênito, visto “já ser do Senhor.” V. 26.
Assim era com os votos remissíveis. Convém notar que os primogênitos do sexo feminino não eram obrigatoriamente do Senhor, podendo ser dedicados em qualquer tempo, o que explica o ter Tefté podido dedicar a filha. Se em vez de filha fôsse filho, Jefté não teria podido fazer o seu voto, por proibição da lei dos votos. Isto demonstra que êle tinha conhecimento do assunto e não era um ignorante.
A Natureza do Voto Irremissível. — Dentro desta temática dos votos, absolutamente essencial para a elucidação do controvertido voto de Jefté, o conhecimento da natureza do voto irremissível é fundamental. Por êle vê-se que Jefté estava perfeitamente cônscio da gravidade do voto que proferia diante de Deus, e compreende-se a sua angústia ao ver que era sua filha que lhe saía ao encontro após a vitória sôbre os edomitas. Tratava-se de voto irremissível, como veremos.
Como já vimos, o verso 28 do capítulo 27 de Levítico disciplina o voto irremissível. Declara-se expressamente ali que “qualquer coisa consagrada, que alguém consagrar ao Senhor,” não poderia ser resgatada e nem vendida. Era coisa santíssima ao Senhor, passando a ser propriedade do sacerdote. Mas, no que respeita ao voto irremissível de pessoas, a preceituação é mais específica, pois estava envolvido o livre arbítrio humano e o direito de terceiros. Assim é que uma mulher casada, se fizesse um voto “ligando a sua alma” (Núm. 30:6, 7 e 8), êsse voto soleníssimo perderia a validade, desde que o marido, uma vez informado dêle, se opusesse. Isto porque o voto poderia ter sido feito em prejuízo do marido a quem a mulher devia obediência, segundo as leis e costumes da época. Era uma provisão sábia da parte do Senhor, a fim de prevenir inevitáveis conflitos sócio-dogmáticos. Desde, que o marido, informado do voto soleníssimo e irremissível, se mantivesse calado, dava por isto mesmo validade ao voto, e a mulher estava obrigada a êle, sob pena de anátema. O mesmo acontecia com uma filha solteira vivendo em casa do pai. Lemos: “Também quando uma mulher fizer voto ao Senhor, e com obrigação se ligar em casa de seu pai na sua mocidade. …” e ouvindo-o o seu pai, se calar. …” Núm. 30:3-5.
Facilmente se observa a diferença dêste voto do voto remissível. Neste, uma simples oferta em dinheiro, conforme a avaliação do sacerdote, libertaria a pessoa votada. No outro, a única possibilidade de libertação era a anulação do voto, nos exemplos citados acima. No caso de uma viúva, cuja vontade era soberana e não tendo a quem dar satisfações, nada havia que pudesse anular o seu voto. Teria de ser cumprido (v. 9).
Não são desconhecidos exemplos de viúvas servindo ao Senhor no templo (Ana, no Nôvo Testamento) e de mulheres em geral, solteiras ou não (II Samuel 2:22 é citado por Clarke como um exemplo de mulheres que fizeram voto de servir no templo). Ver também Êxo. 38:8.
Como a regulamentação do voto irremissível visava antes de tudo preservar a livre disposição da vontade, não podia uma pessoa votar outra pessoa em voto irremissível: nem o marido pela mulher, nem o pai pela filha. É por isto que foi necessário a concordância da filha de Jefté em relação ao voto do pai (Juí. 11:36).
Analisando o Voto de Jefté
Estamos agora em condições de formular a pergunta: De que natureza era o voto de Jefté, remissível ou irremissível? A resposta é óbvia. Se fôsse remissível, o problema estaria resolvido com uma simples oferta de trinta ciclos de prata. (Lev. 27:4.) Quanto poderia isto representar para Jefté? Um quase nada.
Aí está a que alturas de grandeza chegava o coração consagrado dêste príncipe de Gileade. Disposto a dar ao Senhor o máximo, não faria um voto remissível, de importância ultra-secundária. Mas o coração pleno de gôzo e fé daquele homem não sabe o que consagrar (é a idéia de Lang), e deixa que o próprio Deus escolha. Por isto, diz: “Aquilo que sair ao meu encontro,” seja o que fôr que o próprio Senhor escolher, “será do Senhor.” Juí. 11:31.
Agora chegamos ao ponto crucial. Todo o voto de Jefté é perfeitamente compreensível, até a expressão “será do Senhor.” Estava implicada aí a natureza irremissível do voto. Mas a sua complementação “o oferecerei em holocausto” cria todo o óbice. Dedicando a filha ao Senhor, por que haveria Jefté de se propor fazê-lo em holocausto? O voto, mesmo com suas solenes e graves implicações de voto irremissível, é compreensível e aceitável até aqui. Mas a idéia, absurda e monstruosa do holocausto humano, rouba-lhe todo significado. É inconcebível que Jefté tenha feito um voto a Deus dentro de tôda minuciosa prescrição da lei, e então o houvesse malsinado com a declaração estapafúrdia de oferecer em holocausto o objeto votado. Mesmo que por uma confusa interpretação da lei do voto, Jefté se houvesse julgado no dever de queimar a filha, qualquer sacerdote tê-lo-ia esclarecido. Havia sumo sacerdote, para quem Jefté poderia ter apelado no sentido de aliviar-lhe a dúvida. No entanto, tôda disposição do relato parece indicar que o ato de Jefté não foi indigitado como procedimento bárbaro, desnecessário. O ato foi aceito com naturalidade e respeito por todos, e a única reação mais forte foi o pedido — também respeitoso — das amigas para estar com a companheira algum tempo, antes que o voto se consumasse. E Deus aceitou o voto.
Os que defendem a idéia do sacrifício cruento no voto de Jefté, citam logo Lev. 27:29, para com isto mostrar que a morte era requerida por prescrição divina nos casos de voto irremissível de pessoas. Vale a pena reproduzir êsse texto e esmiuçá-lo antes de voltarmos às considerações que vínhamos fazendo sôbre o voto de Jefté. Leiamos:
“Ninguém que dentre os homens fôr dedicado irremissìvelmente ao Senhor, se poderá resgatar: será morto.” (Versão Almeida Revista.)
A primeira reação de quem lê êste verso da maneira como está vertido, é de surprêsa, depois de espanto. Será possível que Deus haja requerido a morte de pessoas votadas em voto irremissível? Ora. já vimos que a lei dos votos não pede semelhante procedimento. Como se explica então que o verso diga exatamente isto, isto é, que pessoas votadas em voto irremissível sejam mortas?
Não temos nenhuma dúvida em afirmar, por mais grave que seja esta declaração, que êste verso é um dêsses exemplos de continuadas revisões, em que cada vez que é revisto mais se afasta do original; e mais* ainda, que evolui na forma para servir à idéia de certa crítica erudita, de que o cerimonial hebreu incluiu sacrifícios humanos. Tanto isto é certo, que diferentes versões traduzem-no de diferentes maneiras, dependendo da idéia predominante no espírito dos revisores. E podemos prová-lo acompanhando essa evolução de pensamento. Por exemplo, citamos a Revised Standard Version, a que já nos temos referido, e que é clássica por ter sido a primeira revisão a rigor assim chamada da King James. Nesta — a King James — o sentido é meio obscuro como em nossa Almeida não revista. Quis o grupo americano que a Revised Standard Version fixasse a idéia de que o texto se referia a pessoas consagradas, e não a coisas consagradas por pessoas como era o pensamento dominante anteriormente. Queria o grupo americano que o verso dissesse: “Ninguém consagrado, que fôr consagrado dentre os homens. …” etc. A mudança fundamental seria a troca de “nenhum (pessoa ou coisa) por ninguém,” e “de homens” por “dentre os homens,’ porque entendiam que o texto se referia a nações ou pessoas pagãs que Deus ordenara fossem destruídas. Ora, isto era forçar o texto a dizer o que achavam que devia dizer. Não concordou o grupo inglês, e o ponto de vista do grupo americano foi para o apêndice, conforme acôrdo feito anteriormente, segundo o qual, sempre que não houvesse unanimidade, prevalecería no texto a opinião do grupo inglês, podendo o grupo americano publicar em apêndice, se o desejasse, as suas preferências. Êsse acôrdo era por quinze anos.
Pois bem, findo o período de acôrdo (1901) os americanos passaram para o texto da Revised Standard Version as suas preferências que estavam em apêndice. Mas — e aqui chamamos a atenção para a insidiosa evolução — em 1952, os americanos fizeram nova revisão da revisão, isto é, revisaram novamente o texto já revisto em 1885, alterando agora profundamente o verso 29 de Lev. 27, para que expressasse a idéia do grupo americano. Temos então o seguinte quadro:
King James: “Nenhum (pessoa ou coisa) consagrado, que fôr consagrado de homens . . . etc.
Primeira Revisão (1885): “Ninguém consagrado, que fôr consagrado dentre os homens …” etc.
Segunda Revisão (1952) “Ninguém consagrado, que deva ser totalmente destruído dentre os homens.” É por isto que sempre que um grupo de “teólogos” que se autoriza a si mesmo, toma assento para proceder a revisão da Bíblia, pomos a nossa barba de môlho. Cada nova revisão, mais o texto revisto se afasta do original.
Agora o verso 29 de Lev. 27 na Revised, sustenta fortemente o pensamento de que Jefté, num aranzel de confusão mental, poderá ter sacrificado a filha.
Mas as observações feitas até aqui nos autorizam a admitir que originalmente êsse verso tinha uma redação bem diferente e perfeitamente consentânea com a lei geral dos votos. Como bem diz Clarke, não é possível que Deus fôsse deixar ao arbítrio de algumas palavras apenas uma exigência que viria contraditar tudo quanto Êle mesmo diz em Sua Palavra com respeito à abominação dos sacrifícios humanos. Citando alguns textos de Clarke sôbre o verso 29 de Lev. 27:
“Tôda coisa devotada a Deus seria inalienável, irremissível, e continuaria como propriedade do Senhor até à morte.” — Introdução ao cap. 27 de Levítico. E mais adiante, após transcrever o verso como se encontra na King James, acrescenta: “Ou, como alguns o compreendem, será propriedade do Senhor, ou será posto no serviço do Senhor até à morte” — Ibidem (Grifo suprido).
É perfeitamente lícita a suposição de que originalmente o verso tivesse sido redigido mais ou menos assim: “Nenhuma coisa consagrada em voto irremissível poderá ser resgatada: será do Senhor, e irá até à morte,” isto é, seria do Senhor enquanto vivesse. À medida que os copistas foram transcrevendo o texto, fàcilmente veio êle a passar de “será do Senhor, e irá até à morte,” para “será do Senhor e irá para a morte, ou mais modernamente, morrerá.” Fàcilmente encontraríamos um sem-número de textos que passaram pela mesma plana, mas só citaremos um: I Crôn. 20:3: “E o povo que estava nela levou, e os fêz serrar com a serra e …” etc. É quase imediata a pergunta: Fêz serrar o povo ou fêz o povo serrar? É perfeitamente compreensível que o texto diz que Davi fêz êsse povo trabalhar com a serra, e cortar com o machado etc.; era, por certo, como redigido originalmente, um texto fàcilmente inteligível. Entretanto, ilegível como se encontra no original hebreu, um número alentado de versões o traduzem como “fê-los cortar com machado, e foram serrados com serra, e fêz passar sôbre êles carros ferrados.” E Matos Soares acrescenta (o que não se encontra em nenhuma outra versão): “Até que ficassem despedaçados e esmigalhados.”
No caso acima, qualquer comentário é desnecessário, pois até uma criança entende o que o verso quer dizer. Está corrigido um pouco a mêdo na Almeida Revista, o que nos leva a perguntar por que a Comissão Revisora da Almeida que tão arrojadamente modificou textos desnecessários, que tão de perto seguiu a Revised Standard Version, no presente caso deixou totalmente de lado esta versão e fugiu de esclarecer o sentido, precisamente aqui onde é evidente a idéia original do texto, tão evidente que a Revised diz: “E levou o povo que estava nela, e fê-los trabalhar com serras” etc.
Como no caso de Lev. 27:29, também com o verso 31 de Juí. 11: “Aquilo que, saindo da porta de minha casa, me sair ao encontro, voltando eu dos filhos de Amom em paz, isso será do Senhor, e o oferecerei em holocausto.”
Já dissemos anteriormente que até a expressão “será do Senhor,” o voto de Jefté está na mais completa harmonia com a lei dos votos. Logo, qualquer interpolação mental que tenha forçado uma mudança na estrutura do verso com o passar do tempo, será encontrada nessa parte final do versículo. E que isto realmente ocorreu, é o que iremos provar.
Citemos primeiramente uma frase de Lang: “Devidamente compreendido, o voto coroa a profunda piedade de Jefté . . . Êle sabe quão grandemente a vitória fortalecerá a fé de tôdas as tribos em Deus.” — Lang’s Commentary, sôbre Juí. 11:31.
O rabino Herman Gollanez, citado em Homiletic Review, sustenta: “Posso demonstrar-vos que muitos eminentes eruditos judeus têm sustentado que Jefté não matou a filha, porque o voto que fizera não requeria tal procedimento.”
O Dr. Hale, em seu longo estudo sôbre o voto de Jefté, transcrito por Clarke, expende uma série de observações que apresentaremos de forma sumária. Diz êle que o idioma hebreu justifica uma tradução disjuntiva, consistente de duas sentenças, regidas por conjunção dual. Assim: “Será do Senhor, ou lhe oferecerei em holocausto.” E sustenta esta idéia com a afirmativa de que a conjunção vau tanto pode ser e como ou, o que se pode inferir do seguinte exemplo: “Aquêle que amaldiçoa a seu pai e (vau) a sua mãe, certamente morrerá.” O texto tem sido traduzido disjuntivamente: aquêle que amaldiçoa “a seu pai ou a sua mãe,” pois é lógico que não seria necessário que a maldição recaísse sôbre os dois para que a pessoa se tornasse ré de morte. Assim, no caso do voto Jefté, dever-se-ia ler: “Será do Senhor,
ou Lhe oferecerei em holocausto,” isto é, se fôr um animal próprio para sacrifício, será oferecido em holocausto, e se fôr uma pessoa, será do Senhor, para ficar ao seu serviço por tôda a vida. Mesmo porque, a expressão “será do Senhor,” jamais é usada em relação a animais, mas só em relação à pessoas. (Verso 1.)
Que Jefté tanto poderia estar pensando em pessoas como em animais ao proferir o seu voto, é visível, segundo Lang, pelo fato do verbo sair, “aquilo que saindo de minha porta,” ser indefinido, podendo se referir “tanto a pessoas, como a coisas ou animais” (Lang’s Commentary, sôbre Juí. 11), como o mesmo verbo se encontra em Gên. 9:10: “Todos que saíram da arca.”
É forçoso admitir que Jefté sabia que sua própria filha poderia ser a escolhida por Deus no envolvimento de seu voto. Seria absurdo supor que Jefté pensasse em tudo, menos na própria filha. Por isto mesmo, na manifestação de sua enorme dor, êle nem de leve lança sôbre Jeová a mínima acusação. Ao contrário, confirma o voto quanto a sua parte, esperando que a filha, a quem êle não poderia envolver definitivamente a menos que ela concordasse, se manifestasse. E vemos como o espírito da filha de Jefté é tão maravilhoso como o de Isaque. Por êsse espírito da filha, que denuncia um sólido e lúcido fundamento religioso, podemos mais uma vez inferir que Jefté era realmente um homem de espírito religioso, claro, limpo, saudável, e não um fanático ou ignorante.
A expressão “o que sair de minha porta para fora,” não significa a rigor apenas o que saísse de dentro de sua casa, mas de seus têrmos. É comum êste tipo de linguagem bíblica, em que casa é tomada por família, propriedade, ambiente ou arredores. Jefté naturalmente não oferecería a Deus num voto irremissível um cordeiro ou um novilho, pois isto era por demais insignificante para um voto numa situação especial. Mas se o próprio Senhor o escolhesse, isto era o que êle oferecería. Naturalmente estava no espírito de Jefté que, se os amonitas pagãos, amavam os seus deuses falsos a ponto de oferecer-lhes em sacrifício os próprios filhos, por que haveria êle de negar a Deus sua filha, se isto fôsse o que Jeová escolhesse? E foi o que Deus escolheu; e foi o que êle ofereceu, não em sacrifício, que não era a exigência divina em nenhum caso, mas para ser-vir a Deus pelo resto de sua vida.
Como todo voto era solenizado com um sacrifício, entendem alguns comentadores que o verso 31 de Lev. 11 devia ser lido — e a forma original o autoriza—da seguinte maneira: “Será do Senhor, e Lhe oferecerei um sacrifício,” pois o pronome hu de “oferecer (êle) em sacrifício,” pode ser traduzido indiferentemente por “a Êle,” isto é, “oferecerei a Êle [Deus] um sacrifício.”
Que o voto não trazia em si a mínima idéia de sacrifício humano, vê-se pela declaração de Jefté ao rei de Amom: “O Senhor . . . julgue hoje entre os filhos de Israel e os filhos de Amom.” V. 27. Ora, Jefté conhecia o culto de Quemós, deus dos amonitas. Neste culto, como, em todos os cultos pagãos de Canaã, havia sacrifícios humanos. Jefté comparara o baixo culto de Amom com o culto divino de Israel. Sabia que o culto de Jeová, que abominava os sacrifícios humanos, era supremamente superior e enobrecedor. Iria êle agora, no momento mesmo em que o povo de Israel se reconvertia a Deus, profanar o culto, a reconsagração, sua própria consciência cristalinamente fiel, e praticar um ato nunca dantes visto nem mesmo entre os mais baixos do povo?
No verso 37, depois de haver mostrado sua enorme capacidade de amar a Deus dando validade ao voto do pai, tudo que a filha de Jefté pede é que se lhe permita que por dois meses “desça pelos montes e chore a minha virgindade.” Ora, por que haveria de chorar a virgindade, quem estava condenada a morte? Choraria, por certo, tôdas as coisas maravilhosas da vida; choraria a própria despedida da vida em si mesma. No entanto, tudo quanto ela chora era a sua virgindade, porque o voto consistia precisamente no desperdício de uma vida fértil e jovem que, como com qualquer filha de Israel, poderia representar a geração do Messias. Ela não chora a morte, não chora a crueldade do tipo da morte que iria sofrer, nem as chamas devoradoras que a iriam consumir em sacrifício. Não, porque a grande perda, a grande dor, a grande tristeza, era o ficar uma nobre casa destituída de nome para o futuro — a casa de Jefté. E mais:
“A filha de Jefté não lamenta o ter de morrer como uma virgem; o que ela lamenta é a virgindade em si mesma.” — Lang’s Commentary, sôbre o cap. 11 de Juizes. Isto é, em outras palavras, ela lamenta o que essa virgindade, tornada agora inútil, representa para sua família, para seu pai, para si mesma. Não havia morte física a lamentar; havia, isto sim, uma maternidade latente tornada vã.
Outra pergunta: Por que pediria a filha ao pai dois meses para se ausentar de casa? Ora, quem estivesse condenada à morte, num caso como o presente, querería desfrutar com a família todos os momentos restantes de sua vida. Mas a filha sabe que tem a vida tôda para ver e receber a família em seu futuro mister de dedicação exclusiva a Deus nos serviços do templo. Poderia até vir em casa, pois o voto não o impedia. O penoso do voto era que, tendo sido votada como virgem, não poderia jamais contrair núpcias. Suponde que a filha de Jefté fôsse casada, que Jefté em vez de pai fôsse marido, que o voto tivesse sido feito exatamente como foi, e a filha, no caso espôsa, tivesse igualmente concordado com o voto e aceito a vida de serviço exclusivo a Deus. Não haveria o chôro pela virgindade nem o retiro pelos montes com as amigas. Poderia haver outras coisas que chorar, mas não o que chorou a filha de Jefté.
Lembramo-nos de Samuel. Êle foi dedicado em voto irremissível, exatamente como foi a filha de Jefté. Se se tratasse de uma jovem, também haveria uma virgindade a lamentar. Como Samuel, a filha de Jefté foi dedicada ao Senhor “por todos os dias de sua vida.” Quando Ana entregou Samuel a Eli, fê-lo com a declaração: “Pelo que também o trago como devolvido ao Senhor, por todos os dias que viver.” I Sam. 1:28. Como se vê, exatamente como requer o regulamento do voto irremissível em Lev. 27:29: “Não será redimido, mas será do Senhor até à morte,” e não para sentença de morte, como absurdamente está vertido êste texto.
O rabino Gollanez chama a atenção para a declaração: “Daí veio o costume em Israel, de as filhas de Israel saírem por quatro dias de ano em ano a lamentar a filha de Jefté.” (V. 40.) E diz que o verbo lamentar no hebraico da época tinha o significado de “consolar.” E chama a atenção ainda para a “Englishman’s Bible,” que dá o sentido exato do verbo. Temos à mão uma edição de 1913: Nela, a expressão lamentar que aparece no texto, é indicada na margem como “falar com.” Donde se compreende que as amigas da filha de Jefté vinham “consolar” a filha de Jefté quatro dias ao ano, palestrando com ela, louvando-lhe o consagrado coração com palavras e com cânticos. E diz Clarke: “Êste verso traz a evidência de que a filha de Jefté não foi sacrificada, pois não há indício de que êsse costume tenha continuado depois de sua morte.” — Comentários do Dr. Adão Clarke, sôbre Juizes 11.
Tomamos a liberdade de citar Clarke mais uma vez, num ponto que nos parece de suprema importância. Referindo-se ao V. 39, à expressão: “E ela não conheceu varão,” êle diz:, “Isto é, continuou virgem todos os dias de sua vida.” — Ibidem. Claro. Seria ociosa a declaração, se ela tivesse sido sacrificada. Tal como em S. Mat. 1:25, a afirmativa induz à idéia de continuidade do elemento incurso: Maria, no texto de S. Mateus, e a filha de Jefté, no texto de Juizes. Como todo o drama girou em tôrno do “sonho virginal desfeito,” para citar o poeta, a declaração confirmadora de que “ela não conheceu varão (em todos os dias de sua vida), é o coroamento da epopéia.
Concluindo, lembramos que muita especulação tem surgido quanto ao destino que teria tido a filha de Jefté, desde que não tenha sido queimada em holocausto. Parece-nos inútil e abusiva a especulação. Acham alguns que o pai lhe construiu uma casa em lugar êrmo, onde ela viveu o resto de sua vida. Ora, sabendo que era absolutamente comum o costume de virgens servirem no templo em voto eterno, ou por algum tempo, conforme tenha sido o voto feito, é natural supor que a filha de Jefté passou ao serviço de Deus nos trabalhos do santuário em Silo, até o derradeiro dia de sua vida. Recebia, naturalmente, a visita dos pais, das amigas, dos parentes, talvez ela mesma os visitasse, sem prejuízo daquela visita de quatro dias ao ano, que era uma espécie de “magoada festividade” da parte de suas amigas.
Sumariando: Jefté não levou sua filha ao martírio da morte, porque:
- 1. Não era ignorante, nem fanático, nem pagão.
- 2. Seu voto estava em harmonia com as exigências da lei dos votos.
- 3. Estava sob a influência do Espírito de Deus quando fêz o voto.
- 4. Nenhuma condenação pesou sôbre êle da parte de Deus depois do voto, e nem é o seu caso mencionado em têrmos de restrição, como no caso de Gideão.
- 5. Contràriamente a todos os exemplos de sacrifícios humanos praticados por israelitas, que sofreram a imediata condenação de Deus, no caso de Jefté não há menção dessa condenação.
- 6. A irmã White, que não poupa Gideão pelo seu ato relativamente leve de fazer um éfode, não faz a mínima acusação a Jefté.
- 7. Jefté encontra-se entre os heróis da fé em Hebreus 11.
- 8. Tôda suposição de sacrifício cruento da parte de Jefté se deve à corrupção do significado de palavras e ao distanciamento do fato no tempo.
- 9. Fàcilmente Jefté poderia ter sido aliviado do tremendo pêso do ato a que se sentiria obrigado, porque qualquer sacerdote em Israel ter-lhe-ia mostrado que o sacrifício da vida, longe de ser requerido, era uma abominação diante de Jeová.
- 10. Jefté não era o único pai a ter uma filha virgem ao serviço de Deus no santuário em Silo. O costume era comum, e Jefté não poderia ignorá-lo.
Concluindo, lembramos que os mais notáveis comentadores não admitem a idéia do sacrifício da filha de Jefté. Assim:
Lang: Não foi sacrificada.
Clarke: Não foi sacrificada.
Hale: Não foi sacrificada.
Gollanez: Não foi sacrificada.
São opiniões abalizadíssimas, de comentadores famosos — fora outros não mencionados neste trabalho — que estudaram longa, exaustivamente o assunto.
Depois disto, não deixa de ser desconcertante o fato de nosso SDA Bible Commentary, sem nenhum aprofundamento da matéria, num estudo corrido, fortuito, haver esposado a tese do sacrifício cruento. Devia ter-se limitado a expor as diferentes opiniões, sem esposar nenhuma. Foi uma pena.