Diversas vêzes nesta série de artigos salientamos que a Versão dos Setenta emprega a palavra katharizo como tradução de tsadaq em Daniel 8:14. Isto tem sido indubitàvelmente um dos pontos mais fortes.

Esta tradução de tsadaq por katharizo, na Versão dos Setenta, é entretanto quase tão isolada como o vocábulo “purificado” na Versão do Rei Tiago (King James Version) ou na de Almeida. Foi a única vez em que êles verteram assim a forma verbal do vocábulo hebraico tsadaq. Além disso, grande número de sábios bíblicos e outras pessoas mais não têm considerado muito segura a Versão dos Setenta. Julgava-se que havia muitas interpretações e supressões, bem como considerável quantidade de traduções inexatas e descuidadas, segundo afirmavam alguns.

Seu parecer neste sentido foi motivado em grande parte pelo fato de o texto da Versão dos Setenta diferir do texto massorético, de que foi traduzido o Antigo Testamento em nossas Bíblias. Entre outras, uma passagem citada no Nôvo Testamento que induziu os tradutores bíblicos a nutrir essas dúvidas, foi Hebreus 1:6. Lemos ali: “Ao introduzir o Primogênito no mundo, diz [Deus]: E todos os anjos de Deus O adorem.” Êste texto, assim como outros neste capítulo, é citado pelo autor do livro de Hebreus para realçar a divindade de nosso Senhor. Percebe-se que é algo que Deus disse, e tira-se a conclusão de que isto procedia do Antigo Testamento, da mesma maneira que as outras referências bíblicas citadas pelo autor. Algumas anotações marginais chamam a atenção dos leitores para Deuteronômio 32:43, mas aquela expressão não se encontra ali, nem em qualquer outra parte do texto massorético. Ela aparece, porém, na Versão dos Setenta, e por isso muitos eruditos achavam razoável afirmar que houve interpolações. Como é óbvio, esta aparente certeza baseava-se na suposição de que o texto massorético fôsse talvez o único texto hebraico antigo das Escrituras Sagradas.

Isto mudou agora, e podemos agradecer a Deus pelas descobertas nas cavernas de Qumran. Elas revelaram muitas coisas interessantes, lima delas diz respeito àquela passagem citada no livro de Hebreus. Escreve F. F. Bruce, referindo-se a Hebreus 1:6:

“Mas o texto da Versão dos Setenta [traz esta passagem]. — Ela se baseava num original hebraico, como agora se tornou claro pela descoberta de uma cópia deste capítulo de Deuteronômio na quarta caverna de Qumran, apresentando um texto hebraico que corresponde exatamente à Versão dos Setenta. ” 1

Declara êle ainda mais:

“À medida que foram estudados os manuscritos de Qumran, tornou-se possível distinguir três principais tipos de texto entre êles. Um é o antecessor do texto consonantal que constituía a base da obra editorial dos massoretas. Outro é o tipo de texto que deve ter sido usado pelos homens que produziram a tradução grega chamada comumente de Versão dos Setenta. . . . E o terceiro tipo, que se restringe aos primeiros cinco livros do Antigo Testamento, está intimamente relacionado com o Pentateuco Samaritano.” 2

Então êle faz esta pergunta:

“Que valor tem para nós a Versão dos Setenta? . . . Ela representa um texto hebraico básico, mil anos mais antigo do que nossos manuscritos massoréticos.” 3

Êste testemunho é confirmado por Guilherme F. Albright:

“Sabemos agora que nos fragmentos … do Pentateuco e dos profetas antigos … as traduções gregas foram quase servis em seu literalismo. . . . Quando deparamos com trechos preservados na Versão dos Setenta . . . mas que não aparecem no texto massorético, . . . podemos estar razoavelmente certos de que não são acréscimos gregos internos ou adulterações, mas que retrocedem a uma revisão hebraica mais antiga que diferia do texto massorético.” 4

É deveras notável quão silenciosa e desafetadamente Deus está confirmando Sua própria Palavra de verdade. À luz desta descoberta, podemos pois ficar mais satisfeitos com o que os tradutores da Versão dos Setenta fizeram em Daniel 8:14, onde verteram por katharizo — “purificado” — o vocábulo hebraico tsadaq.

Estudaremos agora alguns outros aspectos importantes desta questão, pois pode haver um motivo fundamental para os tradutores da Versão dos Setenta procederem daquela maneira.

  • 1. A Formação Aramaica dos Tradutores da Versão dos Setenta

Importantíssimo princípio na interpretação bíblica foi expresso por um sábio hebreu:

“No hebraico, como em tôdas as línguas, uma palavra pode ter diversos significados em contextos diferentes, mas nem sempre se tem reconhecido isto. . . .

“Os tradutores do Antigo Testamento . . . tiveram . . . uma tarefa intrincada e difícil [com] os numerosos itens de vocabulário e sintaxe tanto no inglês como no hebraico . . . que precisavam conservar em mente para assegurar-se de estar interpretando cuidadosamente o original.” 5

Isto é vital, e seu significado será evidente ao estudarmos a formação lingüística daqueles sábios judeus que traduziram a Versão dos Setenta.

Sabemos que deviam estar bem versados tanto no hebraico como no grego, mas nem sempre é lembrado que êles possuíam também vigorosa formação aramaica.

Quando Israel foi levado para o cativeiro, em 605 A. C., êles naturalmente misturaram-se com o povo de Babilônia. Na região em que se estabeleceram, o aramaico era evidentemente o idioma usual. Êles o adotaram, e em verdade, quando regressaram do cativeiro, havia quase uma nova geração e tinham a bem dizer esquecido o hebraico. Pouco depois, ao estarem diante de Neemias, êles não podiam entender os rolos hebraicos que eram lidos; tudo precisava ser traduzido para o aramaico. Pode-se ver isto em Neemias 8:8: “Liam no livro da lei de Deus, com um intérprete que traduzia o sentido.” — Versão inglêsa de Fenton.

Isto é mencionado muitas vêzes nos escritos judaicos. 6 A tradução feita naquele tempo chamava-se Targum, que é realmente uma tradução interpretativa. Lemos na Jewish Encyclopedia (Enciclopédia Judaica):

“Targum: A tradução aramaica da Bíblia. Ela faz parte da tradicional literatura judaica, e seu início é tão antigo como a época do segundo Templo. … O uso do vocábulo “Targum” restringia-se propriamente à versão aramaica da Bíblia. … A leitura do texto bíblico junto com o Targum, na presença da congregação reunida para o culto público, era uma instituição antiga.” 7

Visto que o aramaico se tornou a língua comum de Israel durante o cativeiro, e visto que a Versão dos Setenta data mais ou menos três séculos após a volta do exílio, pode-se notar fàcilmente que os dirigentes judeus a quem foi confiada a importante tarefa de traduzir as Escrituras Sagradas para o grego conheciam aramaico, mesmo antes de conhecer hebraico ou grego — com efeito, era sua língua materna. Êste fato influiu sem dúvida sôbre a tradução de tsadaq por “purificado” em Daniel 8:14. É o que consideraremos a seguir.

  • 2. O Sinônimo de Tsadaq em Aramaico

Nos Targuns aramaicos, tsadaq com freqüência é traduzido por zakah. Estas palavras são evidentemente usadas como sinônimas em muitos casos. Tsadaq,8 como já vimos, significa princípalmente “justificar,” “tornar justo.” Outros significados desta palavra são: “legítimo” (Isa. 49:24); “fiel” (Jó 31:6); “purificado” (Dan. 8:14). Zakah9 tem o sentido primordial de “limpar,” “purificar,” e o sentido secundário de “justificar,” “tornar justo.”

Isto será ilustrado pelos seguintes exemplos:

Jó 4:17: “Seria o homem mortal mais justo do que Deus?” Texto hebraico — tsadaq; texto aramaico — zakah.

Salmo 36:10: “Estende a… Tua justiça sôbre os retos de coração.” Texto hebraico — tsedaqah; texto aramaico — zakah.

Salmo 51:4: “Para que sejas justificado quando falares.” Texto hebraico — tsadaq; texto aramaico — zakah.

Isaías 61:10: “[Deus] me cobriu com o manto de justiça.’’ Texto hebraico — tsedaqah; texto aramaico — zakah.

Salmo 119:137: “Justo és, ó Senhor.” Texto hebraico — tsaddiq; texto aramaico — zakah.

  • 3. O Uso de Zakah em Lugar de Tsadaq nos Targuns

A palavra hebraica tsadaq, em suas diversas formas, é usada 517 vêzes na Bíblia hebraica, mas conseguimos examinar apenas 504 delas, pois 13 encontram-se nos livros de Daniel, Esdras e Neemias, de que não existem Targuns. Verificamos que nestes 504 casos, os tradutores dos Targuns substituíram tsadaq 209 vêzes por zakah etc., da maneira seguinte:

No Pentateuco ………….. 25 vêzes

De Josué a Crônicas ………….. 21 vêzes

De Jó a Provérbios………….. 25 vêzes

Nos Salmos………….. 25 vêzes

Em Isaías ……………… 47 vêzes

Em Jeremias e Ezequiel………….. 45 vêzes

Em Eclesiastes, Lamentações e nos Profetas Menores ………….. 21 vêzes

Total         209

Isto é mais de 40 por cento, e pode-se ver que zakah aplicava-se à justiça de Deus, e também à justiça que Êle imputa e comunica a Seus filhos crentes — além de outros aspectos, como purificar e limpar. Zakah aparece tanto nos textos hebraicos como aramaicos do Salmo 73:13, e é traduzido por “purificado” na Versão de Almeida. Também é usado nesses textos, para pureza de doutrina em Jó 11:4.

Sendo que êstes tradutores usaram aquela palavra aramaica para tal amplitude de conceitos, seria estranho e incomum que êles empregassem zakah em Daniel 8:14, se existisse um Targum desta passagem? Parece que os tradutores da Versão dos Setenta julgaram tê-lo feito, usando a palavra katharizó — um sinônimo quase perfeito para zakah. Pode-se dizer que isto é uma suposição; mas, em vista dos pontos mencionados acima, é bem provável.

  • 4. A Palavra Purificar da Maneira Como é Usada na Bíblia em Relação com o Santuário

Há 39 referências ao conceito de purificar cm relação com o santuário e o templo, nos tempos antigos. Embora tivessem sido empregadas diversas palavras hebraicas no texto massorético e na Versão dos Setenta, nos 33 exemplos que pudemos examinar, o têrmo usado nos Targuns era zakah. E isto inclui o uso da palavra em aspectos relacionados com a purificação dos sacerdotes, do povo, do altar, do tabernáculo e dos vasos do ministério. A palavra “purificar” aparece três vêzes em Levítico 16, nos versos 19 e 30. Em todos êsses casos é usada a palavra hebraica taher; nos Targuns, o têrmo empregado é zakah. Será que isto não indica novamente o que teriam feito os tradutores se existisse um Targum 11 do livro de Daniel, visto que o versículo 14 também trata do santuário?

  • 5. O Emprego da Forma Verbal Tsadaq

Admite-se que a forma verbal tsadaq tem sentido mais restrito do que as formas adjetivas ou substantivas, e êste fato merece ser examinado, especialmente porque em Daniel 8:14 é usada a forma verbal.

Tsadaq, como verbo, ocorre mais ou menos 40 vêzes. Num caso (Sal. 82:3) os Targuns trazem tsadaq; em dois outros (Jó 9:2; II Sam. 15:4) o aramaico traz qoshet; mas em 35 dos 40 exemplos o vocábulo empregado é zakah. Não constitui isto uma indicação adicional do Janeiro-Fevereiro, 1968 

que teria sido feito se houvesse um Targum do livro de Daniel?

Perguntamos ainda mais:

  • 6. Existe um Targum do Livro de Daniel?

É verdade que não existe Targum do livro de Daniel, por parte de Onkelos ou por Jonathan ben Uzziel, e admite-se em geral que devemos restringir o significado da palavra aos Targuns traduzidos nos tempos mais remotos. No entanto, ela tem sido usada mais livremente em anos posteriores e é aplicada em geral por alguns a qualquer tradução interpretativa, no idioma árabe, persa ou turco. Nos primeiros séculos abundante literatura judaica, além das Escrituras Sagradas, foi traduzida para estas línguas. Existem diversos dêstes manuscritos, que podem ser vistos nalgumas bibliotecas grandes, como na biblioteca do Museu Britânico. Dois dêles contêm o livro completo de Daniel, traduzido para o árabe, mas escrito em caracteres hebraicos. São os números 1476 e 2377.

O que o autor ou os autores fizeram foi citar o texto hebraico, e acrescentar-lhe uma paráfrase ou Targum. Nos clichês destas páginas estão sublinhadas as palavras “o santuário será purificado.” O texto hebraico é exatamente como nosso texto massorético: tsadaq qodesh; mas o outro texto é zakah qodesh. Estas versões foram feitas por um iemenita, mais ou menos no décimo segundo ao décimo quarto século de nossa era. Êste tradutor ‘evidentemente refletia não só o pensamento de sua época, mas também de épocas anteriores. 12

Manuscrito n° 2377. Versão árabe de Daniel, em caracteres hebraicos, feita por um iemenita do 14°. século A.D. A passagem considerada neste estudo está sublinhada nas linhas 14 e 15. (Gentileza da Biblioteca do Museu Britânico.)

Manuscrito n° 1476. Versão árabe de Daniel, em caracteres hebraicos, feita por um iemenita do 15°. ao 16°. século A.D. A passagem considerada neste estudo está sublinhada nas linhas 8 e 9. (Gentileza do Museu Britânico.)

Tornamos a salientar que em vista dêstes pontos e especialmente dêstes dois manuscritos, que podem ser chamados de Targuns, é muito provável que se nos tempos antigos fôsse escrito um Targum referente a êste maravilhoso livro profético, êle sem dúvida traria zakah em lugar de tsadaq, no texto sagrado.

É interessante notar que Frank Zimmerman, em 1938, no seu artigo sôbre Daniel 8:14, afirmou o seguinte:

“Aqui, portanto, a tradução deveria ter sido: ‘e o templo será purificado;’ por isso, a Versão dos Setenta, sentindo necessidade de semelhante exegese, traduziu: Kay Katheris thesetai to Lagon — “e (será) purificado o santuário.”

Por conseguinte, sendo que os sábios judeus com sua formação aramaica usaram zakah em lugar de tsadaq em tão grande número de passagens “do Antigo Testamento, podemos compreender melhor por que empregaram katharizó para traduzir tsadaq em Daniel 8:14.

No quarto e último artigo mostraremos que houve indubitavelmente uma providência divina na escolha de tsadaq em Daniel 8:14, e não taher, a costumeira palavra hebraica para “purificado.”

Notas

  • 1.  F. F. Bruce, The Books and Parchments (Fleming Revell Co., 1964), pág. 154.
  • 2.  Idem, pág. 123.
  • 3 Idem, pág. 156.
  • 4.  Citado por Dewey M. Beegle, God’s Word Into English (Eerdmann’s Publishing Co., 1960).
  • 5.  T. J. Meek, “Traduzindo o Hebraico,” Journal of Biblical Literature, Vol. LXXIX, Parte IV, dezembro de 1960, págs. 330-335.
  • 6.  Ver os Talmudes: Moed Katan 28b; Sanhedrin 94b; Nedarim 37b; Rosh Hoshana 27a; Berakoth 9a, b. etc.
  • 7. Jewish Encyclopedia, verbête “Targum.” (Ver também o Lexicon in Veteris Testamenti Libros, de Koelher e Baumgartner.)
  • 8.  Guilherme Gesenius, Hebrew and Chaldean Lexicon; e também Selig Newman, Hebrew and English Lexicon.
  • 9. Ver Selig Newman, op. cit.; M. Jastrow, Dictionary of Targumin, Talmud etc.; F. Zimmerman, Journal of Biblical Literature, Vol. LVII, setembro de 1938, pág. 262.
  • 10.  Para uma lista completa dos textos em que tsa-daq é vertido para zakah, ver o artigo intitulado “Observações Adicionais Sôbre Sadaq,” em Andrews University Seminary Studies, Vol. IV, janeiro de 1966, págs. 29-36.
  • 11. Não houve Targum do livro de Daniel devido ao que os judeus chamavam de Voz do Céu — um Bath Kol – proibindo Jonathan ben Uzziel de fazer isto. Quando êle indagou “Por quê?”, foi-lhe dito:   Porque nele e predita a data do Messias.” — Talmude Megillah 3a.
  • 12.  Ver Journal of Biblical Literature, Vol. LVII, setembro de 1938, pág. 262, para um estudo adicional de tsadaq. Também recomendamos ao leitor os capítulos 3. 4 e 8 de Distinctive Ideas of the O. T., por N. H. Snaith (Londres, Epsworth Press, 1944); o artigo o “Uso de Dikaios na Versão dos Setenta,” escrito por N. M. Eatson, no Journal of Biblical Literature, Vol. LXXIX, 1960, pág. 256; e “A Justiça Divina nos Escritos de S. Paulo,” por J. H. Ropes, no Journal of Biblical Literature, Vol. XXII, 1903, pág. 211.