A missão do Espírito Santo, compreendida a partir do evangelho de João
No evangelho de João, há um grupo de cinco passagens que se referem ao Espírito Santo como “Paracleto” ou “Espírito de verdade” (Jo 14:16, 17, 25, 26; 15:26, 27; 16:7-11, 13-15). Ao lado dessa terminologia distinta, três fatos tornam também distintas essas passagens: Todas elas ocorrem nos discursos de despedida de Jesus (Jo 14-17), tratam da vinda do Espírito e descrevem funções completamente diferentes daquelas encontradas nas seções narrativas do evangelho (Jo 1-13; 18-21).
Embora naquelas seções o Espírito Santo seja principalmente um poder vivificante através do qual Deus regenera e transforma aqueles que nEle creem (Jo 3:3, 5, 6; 6:63; 7:37, 38), a ideia predominante nos discursos de despedida salienta a figura de um Instrutor, uma Testemunha, um Guia, conceitos que vão muito além da impressão de um poder impessoal. Na verdade, aquelas cinco passagens “provêm a mais forte evidência para a concepção do Espírito como uma figura distinta, um agente independente, protagonista”,1 e contribuíram para o desenvolvimento da doutrina cristã sobre o Espírito.
Significado de parakletos
Muito se discute sobre o significado da expressão grega parakletos. Do ponto de vista linguístico, parakletos está relacionada com o verbo parakaleo, cujo significado é “chamado para estar ao lado de alguém”. Quando é usada como substantivo, a palavra envolve a ideia de assistência legal. Em latim, o termo equivalente era advocatus (advogado), e isso mostra como parakletos era compreendido pelos antigos tradutores e escritores cristãos latinos.
Sob a influência do substantivo paraklesis (que significa “consolação”, “conforto”), alguns tradutores e autores gregos vieram a compreender parakletos como sendo “consolador” ou “conselheiro”, significado com o qual concordaram Wycliffe, Tyndale e Lutero, entre outros. Entretanto, a questão é que nenhum desses é plenamente apropriado ao parakletos de João, exceto o texto de 1 João 2:1 no qual o termo se refere a Jesus (embora não como um título) e certamente significa “advogado” (“intercessor”, “mediador”). John Ashton corretamente afirma que “o problema do significado de parakletos não pode ser resolvido linguísticamente”,2 e isso pode explicar a razão pela qual, em sua versão Vulgata Latina da Bíblia, Jerônimo usou a transliteração paracletus em vez de tradução. Em 1 João 2:1, ele traduziu corretamente o termo como advocatus.3
Vários eruditos creem que o parakletos de João está relacionado ao aramaico praqlita, que é uma transliteração da palavra grega. Praqlita aparece várias vezes na literatura rabínica, como referência a alguém que intercede por outra pessoa. Também era usada no Targum para transmitir o significado do hebraico melis, um termo que, tanto no Antigo Testamento
(Jó 33:23; cf. 16:20) e nos rolos do Mar Morto (1QH 10.13; 14.13), estava associado às noções de intercessão e instrução.4 Essas duas noções estão presentes nas passagens joaninas sobre parakletos (14:16, 17, 25, 26; 15:26, 27; 16:7-11; 13-15). Portanto, no pensamento judaico, há vários precedentes que combinam funções pedagógicas e forenses de tal maneira que se assemelham ao papel designado ao Paracleto no quarto evangelho. É precisamente esse papel, não tanto a origem linguística ou histórica do termo, que deve receber nossa maior atenção, especialmente se desejamos ter mais clara compreensão da função do Espírito Santo.
O Espírito como Pessoa
Entre as funções atribuídas ao Espírito, nos textos de João a respeito do Paracleto, estão as seguintes: Ensino (Jo 14:26), lembrar-nos de todas as coisas que Jesus disse quando aqui esteve (v. 26), e guiar em toda a verdade, anunciando as coisas que ainda estão por acontecer (Jo 16:13). De acordo com esse último texto, o Espírito fala e ouve, glorifica (v. 14), testifica
(Jo 15:26) e convence a respeito do pecado, da justiça e do juízo (Jo 16:8). O Espírito também é descrito como “outro Paracleto” (Jo 14:16), que viria ocupar o lugar de Cristo (Jo 16:7), sugerindo assim que não apenas Jesus era um Paracleto para os discípulos, mas também que o Espírito desempenharia um papel semelhante ao de Jesus, com a diferença de que Sua presença deveria ser ainda mais apreciada que a do próprio Jesus (Jo 14:28).
O Espírito também estaria livre das limitações do tempo, uma vez que estaria para sempre com os discípulos (v.16). Em adição a isso, o Espírito viria de Deus (Jo 15:26; 16:7), isto é, seria enviado por Deus (Jo 14:26) assim como João Batista (Jo 1:6; 3:28) e o próprio Jesus foram enviados
(Jo 3:34; 6:29, 57; 7:29). À semelhança de Jesus, o Espírito seria também conhecido e recebido (Jo 14:17; cf. 7:39; 1:12; 6:69; 10:14; 13:20).5
Tudo isso aponta para uma Figura independente, distinta que, ao mesmo tempo, mostra possuir algumas características divinas, tais como transcendência ao tempo e espaço. Embora seja verdadeiro que em João 14:18 Jesus tenha falado da vinda do Paracleto (cf. v. 16, 17), Ele prometeu que Ele mesmo voltaria para os discípulos, o que tem sido compreendido como significando que o Paracleto é o próprio Cristo glorificado, que voltaria para os discípulos em forma espiritual, invisível.6 Alguns comentaristas veem essa vinda de Jesus em conexão com a parousia (cf. v. 1-3), ou Sua aparição aos discípulos depois de ressurreto, particularmente de acordo com João 20:19-23, quando Ele soprou sobre eles o Espírito.7
Entretanto, ao dizer que não deixaria órfãos os discípulos, Jesus muito provavelmente estava Se referindo à vinda do Espírito, pois achamos difícil ver como a distante parousia (considerando pelo menos o tempo em que o evangelho foi escrito) ou algumas poucas aparições depois da ressureição durante o intervalo de apenas 40 dias poderiam resolver o problema da orfandade dos discípulos. Portanto, parece mais natural interpretar a promessa de Jesus em ligação com a vinda do Espírito Santo.8
Mesmo assim, Jesus e o Espírito não podem ser considerados a mesma Pessoa, pois Jesus Se referiu ao Espírito como outro Paracleto
(Jo 14:16), o que preserva a distinção pessoal entre ambos e, ao mesmo tempo, aponta para a semelhança de papéis. A mesma distinção pessoal está presente em outras passagens nas quais Jesus e o Espírito Santo são mencionados lado a lado
(Jo 1:32, 33; 7:39; 14:26; 15:26; 20:22). Na verdade, ao dizer que voltaria para os discípulos na Pessoa do Espírito Santo, Jesus talvez estivesse evocando o mesmo conceito presente em Sua declaração: “Quem me vê, vê o Pai” (Jo 14:9). Ou seja, assim como o Pai pode ser visto no Filho, o Filho podia vir no Espírito. Não é difícil concluir que a mesma unicidade existente entre o Filho e o Pai (Jo 10:30) também existe entre o Filho e o Espírito. Entretanto, unicidade jamais deve ser confundida com uniformidade. Assim como o Filho é um Pessoa divina distinta do Pai, o Espírito é uma Pessoa divina distinta do Filho.
O Espírito e a gramática
Assim, no evangelho de João, o Espírito é uma Pessoa, tanto quanto o Pai e o Filho são Pessoas. Desde a Reforma, um dos mais recorrentes argumentos para a personalidade do Espírito é fundamentado na gramática. No idioma grego, a palavra “espírito” (pneuma) é neutra, e algumas vezes, nas passagens sobre o Paracleto, essa palavra está acompanhada pelo pronome masculino, em adição a algum pronome neutro, como seria esperado de acordo com as regras de concordância gramatical.9 O argumento típico pode ser encontrado no comentário de George Ladd, sobre o uso correto que João faz de pronomes neutros em ligação com pneuma. Para ele, não há implicação “contra ou a favor da personalidade do Espírito Santo. Mas onde um pronome que tenha pneuma como seu imediato antecedente seja encontrado no masculino, somente podemos concluir que a personalidade do Espírito é o significado sugerido”.10
Entretanto, o argumento não está correto. A questão é relativamente simples. O que é afirmado por Ladd é que, onde pronomes masculinos são usados, o substantivo mais próximo é pneuma, como antecedente. Porém, o antecedente de um pronome deve ser determinado pela sintaxe, não pela proximidade, e quando são usados pronomes masculinos, o antecedente sintático é sempre parakletos, não pneuma, que permanece apenas como aposição a parakletos. Como Daniel B. Wallace declara: “O uso de ekeinos [ele] aqui [Jo 14-16] é frequentemente considerado pelos estudantes do Novo Testamento uma afirmação da personalidade do Espírito. Tal afirmação está fundamentada do fato de que o antecedente de ekeinos é pneuma… Mas isso está errado. Em todas essas passagens joaninas, pneuma é aposicional ao substantivo masculino. Assim, o gênero de ekeinos nada tem que ver com o gênero de pneuma. O antecedente de ekeinos, nesse caso, é parakletos, não pneuma.”11
Por essa razão, algumas vezes João usou pronomes neutros nas mesmas passagens. Ele fez assim sempre que pneuma apareceu como antecedente sintático. Isso significa que nada existe, absolutamente, anormal ou significativo no uso que João fez de pronomes nos contextos referentes ao Espírito. Igualmente, o fato de que parakletos seja masculino não tem implicações relativas à personalidade do Espírito. O gênero de parakletos, bem como o de pneuma, nada mais é que um acidente linguístico; e nenhuma conclusão teológica deveria ser derivada disso.12
Outro bem conhecido argumento tenta deduzir do adjetivo grego allos (“outro”) não apenas a personalidade, mas também a divindade do Espírito. Esse adjetivo é utilizado em João 14:16. Spiros Zodhiates, por exemplo, diz: “Cristo designou o Espírito Santo como ‘Paracleto’… e O chamou allos (outro), o que significa outro de igual qualidade (e não heteros, outro de qualidade diferente). Portanto, Jesus Cristo designou o Espírito Santo como igual a Ele mesmo.”13 Esse argumento é ainda mais errôneo que o anterior, na medida em que confunde atividade, ou quando muito, personalidade com divindade. O argumento parece ter sido empregado primeiramente por Gregório Nazianzeno, um dos principais defensores da doutrina da Trindade no quarto século. Ele costumava dizer que allos, em João 14:16, aponta a igualdade e consubstancialidade entre o Espírito e Cristo.
Ao Se referir ao Espírito Santo como outro Paracleto, Jesus, indubitavelmente, estava chamando a atenção para o fato de que o Espírito continuaria o trabalho que Ele mesmo havia iniciado, e de que estaria para sempre com os discípulos. O termo também pode conter uma alusão à personalidade do Espírito enquanto Ele viria como substituto de Jesus, mas tomar isso ontologicamente como referência à semelhança de natureza entre Jesus e o Espírito vai além da evidência.
Esse argumento contém um erro linguístico básico: a conclusão de que, por causa do fato de heteros usualmente envolver uma distinção qualitativa, allos também o faça (At 4:12; Rm 7:23; 1Co 14:21; 2Co 11:4; Hb 7:11, 13, 15; Jd 7 são textos que mencionam allos). Entretanto, a noção fundamental de allos é meramente quantitativa, a menos que seja usado em oposição a heteros, que é a palavra eventualmente empregada para diferenciação qualitativa em qualquer caso. Por exemplo, isso ocorre em Gálatas 1:6, 7, onde Paulo diz que o falso evangelho pregado aos gálatas na ausência dele não era allos mas heteros.14 Joseph H. Thayer define a questão: “Quando comparado com heteros, allos denota distinção numérica de diferença qualitativa; allos adiciona (‘um além de’); heteros distingue (‘um de dois’); todo heteros é um allos, mas nem todo allos é um heteros; geralmente, allos simplesmente denota distinção de indivíduos, heteros envolve a ideia secundária de diferença de tipo.”15
“Não é senão através de nós que o Espírito Santo cumpre Sua missão no mundo”
Extraordinário privilégio
Nos discursos de despedida do evangelho de João, o Espírito Santo não é meramente um poder impessoal, mas um Agente de Deus que veio como substituto de Jesus, o primeiro Paracleto (Jo 14:26), e continua o trabalho iniciado por Ele. Isso significa que o Paracleto é comparado a Jesus em personalidade e atividade. Também não é o Jesus glorificado, mas a unidade entre ambos, similar à unidade que existe entre o Pai e o Filho (Jo 20:30), bem como o testemunho da declaração de Cristo de que Ele mesmo voltaria na pessoa do Paracleto (Jo 14:18). Assim, “o Paracleto é a presença de Jesus quando Jesus está ausente”.16
A evidência cumulativa da Escritura indica que o Espírito Santo é uma Pessoa divina. Porém, lembremo-nos de que, mesmo no evangelho de João, a ênfase não é sobre a personalidade ou natureza divina do Espírito Santo, mas sobre Sua obra. Assim também devemos fazer, ainda mais porque Deus Se agradou de nos tornar participantes de Sua missão (Jo 20:21-23).
Na realidade, a realização histórica da missão do Espírito depende inteiramente de nós. Ou seja, não é senão através de nós que o Espírito Santo cumpre Sua missão no mundo. Isso é um extraordinário privilégio! Mais que isso, é uma sagrada vocação, ser instrumentos através dos quais o Espírito faz avançar a obra de Cristo na Terra (Jo 15:26, 27).