Um dos mais formidáveis inimigos que o cristianismo teve de enfrentar no século II, foi o sistema herético conhecido pelo nome de gnosticismo, que por longo tempo procurou sufocar o cristianismo que avançava cèleremente ganhando adeptos em todo o mundo conhecido. Êste sistema filosófico constituiu uma das mais fantásticas invenções da imaginação humana. A denominação provinha do vocábulo grego “gnosis”, que quer dizer “ciência, conhecimento”. Era uma hibridação de cristianismo, judaísmo, dualismo persa, budismo além de outros vários elementos da filosofia e teosofia orientais. Asseveravam os partidários desta filosofia que possuíam o verdadeiro conhecimento das coisas celestes.
O Oriente foi o berço dêste complicado sistema que, com o decorrer do tempo, ocupou também lugar importante no pensamento europeu, devido às grandes conquistas de Alexandre Magno que puseram os gregos em contato com as idéias orientais, promovendo a disseminação das mesmas.
Havia grande número de seitas gnósticas, entre elas as de Basílides, Valentim, Carpócrates e a dos Ofitas, tôdas originárias de Alexandria, grande metrópole do Egito fundada em 332 A.C. por Alexandre Magno. O historiador Lars P. Qualben refere-se a esta cidade como o “viveiro do gnosticismo” 1 já que seu ambiente cosmopolita onde se misturavam o grego, o judeu e o egípcio prestava-se, de modo especial, a seu desenvolvimento. Por isso o gnosticismo hebreu estêve no auge neste grande centro intelectual. Existiu também na Síria uma forma de gnosticismo com mais ênfase sôbre o dualismo, devido à proximidade dêste país com a Pérsia. Destacou-se na Síria um tal Saturnino como melhor representante do gnosticismo. Foi, contudo, a Alexandria quem com mais galhardia e êxito ergueu alto a bandeira dêste falso sis-tema filosófico-religioso.
Tão profundas, intrincadas e minuciosas são as crenças gnósticas que nos ateremos apenas a uma rápida revista de suas principais doutrinas e “pontos de fé”:
1. O dualismo, ou seja, a existência de dois deuses — o verdadeiro e o demiurgo, ou deus oposto ao verdadeiro e a tôda luz e conhecimen-to celeste, o que criou a Terra. Pode-se notar aqui a influência dos persas, que criam na existência de duas poderosas fôrças antagônicas.
2. O demiurgo, ou deus inferior, com a ajuda de seus anjos, criou a Terra. Daí a teoria gnóstica de que o mal é inerente a tôda a matéria e a tudo o que se percebe através dos sentidos. Portanto, os gnósticos negavam categoricamente a encarnação do Filho de Deus, declarando ser impossível para um ser divino assumir um corpo material. Argumentavam que a encarnação foi mera “aparência” e que, na verdade, não se efetuou. Sendo o mal inato à matéria, os gnósticos assumiam uma atitude hostil para com o corpo humano. Para demonstrar sua hostilidade, tomaram-se rigorosamente ascéticos, praticando tôda sorte de vícios e obcenidades. Dêstes rudimentos se desenvolveu o anacoretismo e o monasticismo dos séculos subseqüentes.
3. O problema da origem do mal que, desde tempos imemoriais, tem ocupado a mente dos homens, absorvia também por completo o interêsse dos gnósticos. Estabeleceram a hipótese de que tôda a matéria é essencialmente má e que, dominá-la, inclusive ao corpo, é tarefa de todo homem enquanto viver, e que afinal obterá a salvação, que, para êles, era o completo desprendimento da matéria e dos sentidos, e a absorção das “esferas espirituais”, algo as-sim como o nirvana dos budistas. Estas coisas influíram muito no gnosticismo. Já que reclamavam para si a verdadeira “gnosis”, pensavam que por meio dela se livrariam das garras do demiurgo, o deus de tôda matéria.
4. Há três classes de homens no mundo — os materiais ou carnais, os psíquicos e os pneumáticos ou espirituais. Era crença gnóstica que de todos êles sòmente os espirituais eram capazes de compreender as coisas celestiais e serem salvos. Êste conceito deu lugar à idéia da predestinação, que ainda hoje é sustentada por alguns.
5. O universo, como a humanidade, acha-se dividido em três partes: a região material, ou visível, composta de fogo, água, terra e ar; a hebdómada ou porção “psíquica”, composta de éter, denominada também a região dos sete planêtas; e por último, a ogdoada ou região espiritual ou “terceiro céu”, composta das “substâncias mais puras”, e onde mora o Deus Infinito. Entre as regiões material e espiritual existiam, segundo os gnósticos, uma infinidade de sêres intermediários conhecidos conjuntamente no idioma grego como pleroma, conceito que, com o correr dos anos, deu lugar à introdução na igreja das imagens, à veneração dos santos, ao sacerdócio e à jerarquia eclesiástica.
Nenhum tratado sôbre gnosticismo será completo sem mencionar a Marcion (c. 120) bispo de Sínope, cidade do Ponto, Ásia Menor, que por suas tendências gnósticas foi excomungado em 144. Foi o primeiro a divorciar o judaísmo do gnosticismo, asseverando que o Jeová do Antigo Testamento era o demiurgo que criou o mundo material, e portanto era um Deus imperfeito, oposto ao verdadeiro. Tudo quanto, no Nôvo Testamento, se opunha às suas teorias, foi declarado espúrio. Já que as duas têrças partes do Nôvo Testamento não se enquadravam em sua doutrina, Marcion o rejeitou todo, com exceção dos escritos de S. Lucas e S. Paulo, dos quais só aceitou uma edição mutilida do evangelho de S. Lucas, mesmo assim depois de cuidadosamente revisado. Aceitou também dez das epístolas de S. Paulo, recusando acentar as denominadas pastorais. Marcion foi reconhecido na História como “o primeiro crítico racionalista, um dos precursores da escola moderna da Alta Crítica.” 2
Por longo tempo o gnosticismo, tanto no Oriente como no Ocidente, ameaçou suprimir o cristianismo. Surgiu num período de transição na ordem de coisas entre o pagão e o cristão, quando o cristianismo estava em sua infância e sua doutrina e organização estavam ainda em estado de formação.
O insigne historiador Filipe Schaff refere-se às heresias dos tempos apostólicos como sendo “caricaturas … da verdadeira doutrina.”3 Em particular assinala o gnosticismo como sendo “paganismo batizado.”4 E na verdade o era, já que nas ensinanças gnósticas se podiam reconhecer a terminologia e os conceitos do cristianismo, e a imitação dos ritos cristãos. Pretendiam os gnósticos que suas doutrinas fôssem uma revelação esotérica do Senhor Jesus Cristo e Seus apóstolos. Intitulavam suas obras com nomes iguais aos dos livros que agora fazem parte das Escrituras Sagradas, como “Os Atos dos Apóstolos”, “Apocalipse” e grande número de “Evangelhos” e “Epístolas” — tôdas obras apócrifas.
Longo tempo lidou o cristianismo com o gnosticismo, que na verdade era uma espantosa deturpação de seus ensinamentos. A Epístola aos Colossenses dizia-se haver sido escrita para contrarrestar a influência do gnosticismo. Nesta carta alude S. Paulo ao ascetismo e à adoração dos anjos, característicos do gnosticismo, concluindo: “Ninguém vos domine a seu bel-prazer com pretexto de humildade e culto dos anjos…”5 Na luta contra êsse falso sistema destacaram-se mais tarde Hipólito, Irineu, Orígenes, Teodureto e Epifânio — todos conhecidos como “historiadores do gnosticismo”. A igreja ativou-se ainda mais sob o impacto do gnosticismo, cristalizando sua própria teologia e estabelecendo normas definitivas às quais devia ajustar-se quem professasse ser cristão, tais como o Credo dos Apóstolos e a estrutura do cânon do Nôvo Testamento — esta última parte para salvaguardar a igreja da espúria literatura dos gnósticos.
O gnosticismo propriamente dito passou finalmente ao esquecimento, embora deixasse suas marcas evidentes em muitos falsos ensinos religiosos que subsistiram até nossos tempos. Se fôssemos, porém, indicar a mais perniciosa doutrina gnóstica, diriamos sem titubear que foi a negação completa da encarnação do Filho de Deus — o coração do cristianismo. As violentas controvérsias sôbre a natureza e pessoa de nosso Senhor Jesus Cristo que acompanharam a era do gnosticismo, constituem evidência dos efeitos nocivos desta teoria. Em algumas seitas modernas ela assumiu a forma de negação da divindade de nosso Senhor, conceituando-O como mero homem, não como completamente homem e completamente Deus — Filho do homem e Filho de Deus — no qual “habita corporalmente tôda a plenitude da Divindade”6 Com razão escreveu Moorehead: “Não há quase nenhuma forma de ceticismo ou misticismo moderno, por extravagante que seja, que não tenha sua réplica ou gérmens na era apostólica …. 7
Bem havia o apóstolo S. Paulo admoestado a Timóteo: “ . . . guarda o depósito que te foi confiado, tendo horror aos clamores vãos e profanos e às oposições da falsamente chamada ciência 8, a qual professando-a alguns, se desviaram da fé”.9
Embora alguns erraram, o cristianismo finalmente obteve a vitória sôbre o gnosticismo, um dos mais temíveis rivais que teve de enfrentar.
Referências
- 1. Lars P. Qualben, A History of the Christian Church, pág. 75.
- 2. F. J. Foakes-Jackson, The History of the Christian Church, pág. 140.
- 3. Filipe Schaff, The History of the Christian Church, Vol. 1, pág. 565.
- 4. Idem, pág. 566.
- 5. Colossenses 2:18.
- 6. Colossenses 2:9.
- 7. Outline Studies in the New Testament, Tomo 2, pág. 75.
- 8. Do vacábulo grego gnosis, do qual deriva o nome dos gnósticos.
- 9. I Timóteo 6:20.