O princípio Cristomonístico

Esta alocução constitui a nota tônica de uma reunião de dois dias (3 e 4 de outubro de 1979) realizada em Washington, D. C., para examinar a justiça pela fé em seus aspectos doutrinários e espirituais.

Princípio é uma regra ou verdade estabelecida que é geral e na qual se baseiam outros princípios; uma fonte ou causa de que provém alguma coisa. Com base em ambas essas definições, verificamos que o princípio cristomonístico está firmemente arraigado nas Escrituras. A palavra cristomonístico é uma combinação de dois vocábulos gregos: Christos (Cristo) e monos (único), formando assim a expressão: “Unicamente Cristo”.

Temos de começar e terminar com Cristo. Fora dEle não há verdadeiro conhecimento de Deus que leve à salvação e redenção. A própria pessoa de Cristo é tanto a fonte como a essência da redenção e do verdadeiro conhecimento de Deus.

“Unicamente Cristo” de Eternidade a Eternidade

Quando buscamos os começos do princípio não podemos ir além de certo ponto — a concessão do concerto de vida. Visto que Deus é Deus e o homem é homem, esse concerto teria de ser um concerto dominante — obedeça e viva, desobedeça e morra. Esse concerto abrangia o próprio princípio de vida.

No mesmo instante em que foi estabelecido o concerto de vida, também surgiu o eterno concerto de redenção entre Deus, o Pai, e Deus, o Filho, confirmando o feito de que o concerto de vida realmente se originou em amor. A eterna decisão da graça de Deus faz parte de Sua essência, arraigada no amor. Entretanto, o Pai não age independentemente do Filho. E o Filho não somente é autêntico Deus; Ele também é autêntico homem, Jesus de Nazaré. Como tal, constitui o representante da humanidade, a qual, nEle e por Seu intermédio, é unida com Deus como o próprio Jesus Cristo o é. “[Deus] nos escolheu nEle [em Cristo] antes da fundação do mundo.” Efés. 1:4.

No Éden foi quebrado o concerto da vida e ocorreu a queda do homem. Ergueu-se um altar do lado de fora do Éden. Mais tarde, Abraão, o pai do povo do concerto, dirigiu-se ao monte Moriá com seu filho. Isaque perguntou: “Onde está o cordeiro?” e Abraão respondeu: “Deus proverá.” Gên. 22:7 e 8. Séculos mais tarde, João Batista deu a resposta completa: “Eis o Cordeiro de Deus. ” S. João 1:29. O drama dos séculos ocorreu no Calvário.

“Unicamente Cristo” de eternidade a eternidade é uma Pessoa, e nossa redenção e vida dependem de nossa relação com Ele como uma Pessoa. A Escritura apresenta-O na eternidade passada como “o Cordeiro morto desde a fundação do mundo”, como “o Cordeiro de Deus” que veio num tempo e lugar específico na História, para tirar os pecados do mundo, e como o Cordeiro que através de toda a eternidade futura receberá “honra, e glória, e louvor” de todos os habitantes do Universo (ver Apoc. 13:8; S. João 1:29; Apoc. 5:12 e 13).

“Unicamente Cristo” na História

“Unicamente Cristo” é o alvo da História. A Escritura e a cultura hebraico-cristã compreenderam a História, não por meio de uma rotina natural, como sucedeu com muitas culturas antigas, mas por meio de um conceito linear. A singularidade do livro de Daniel é seu conceito linear da História, culminando no aparecimento do Filho do Homem. Jesus não somente adotou esse nome procedente de Daniel 7. Ele baseou Sua missão terrestre na visão e proclamação desse capítulo. Sabia que tinha uma função no grande drama da História descrito por Daniel.

Semelhantemente, os apóstolos, a igreja primitiva e os reformadores protestantes viveram, pregaram e labutaram na carregada atmosfera dos “últimos dias”. Consideravam seu próprio tempo como uma era apocalíptica. Viveram numa histórica tensão entre o primeiro e o Segundo Advento. Os apóstolos e os reformadores encaravam com muita seriedade o realismo histórico do cristianismo. A força propulsora de sua missão cristã tinha uma base histórica — a proclamação dos poderosos atos de Deus na pessoa de Jesus Cristo.

A história do mundo e a história da salvação têm avançado constantemente para um ponto culminante. O apóstolo Paulo expressa-o nestas palavras: “Pois Deus permitiu que conhecêssemos o segredo de Seu plano, e é o seguinte: em Sua vontade soberana, Ele determinou há muito tempo que toda a história humana seja consumada em Cristo, e que tudo quanto existe no Céu ou na Terra encontre nEle sua perfeição e cumprimento.” Efés. 1:10, Versão de Phillips.

No “unicamente Cristo” da História temos a salvação efetuada no primeiro advento, trazendo todas as coisas em sujeição a Cristo como Senhor dos senhores; a salvação a ser efetuada no segundo advento trará todas as coisas em sujeição a Ele como Rei dos reis. Isto é o adventismo em seu verdadeiro significado. O “unicamente Cristo” da História é uma Pessoa, e Seus feitos devem ser proclamados em todo o seu realismo histórico.

O “Unicamente Cristo” da Bíblia

A Reforma Protestante tomou-se uma verdadeira remodelação e reorientação no âmbito da hermenêutica. Foram encontrados novos instrumentos exegéticos pelos quais pudesse ser restaurada a teologia bíblica e o cristianismo do Novo Testamento. O princípio exegético da Reforma era “unicamente Cristo”.

Cristo palestrou com os dois discípulos no caminho de Emaús, no dia de Sua ressurreição. “E, começando por Moisés, discorrendo por todos os profetas, expunha-lhes o que a Seu respeito constava em todas as Escrituras. . . . E disseram um ao outro: Porventura não nos ardia o coração, quando Ele pelo caminho nos falava, quando nos expunha as Escrituras?” S. Luc. 24:27-32. Cristo e Seus discípulos de-pois dEle interpretaram o Velho Testamento para seus contemporâneos à luz de Cristo nas Escrituras. A Reforma Protestante fez a mesma coisa. Há uma diferença entre dizer: “Deus nos livros da Bíblia” e “Cristo nos livros da Bíblia”, assim como há uma diferença entre dizer: “Educação centralizada em Deus” e “educação centralizada em Cristo”.

A Bíblia não foi escrita como um credo ou como um manual batismal. Antes, constitui o relato do que aconteceu com as pessoas que tinham agora um novo gênero de vida que não poderiam ter obtido por si mesmas. Os fatos da vida e obra de Jesus Cristo são fundamentais; a maneira como os que entraram em contato com Ele explicaram o significado desses fatos é a experiência da salvação. Esta experiência é acessível a todos. O valor do Novo Testamento é que as experiências e os encontros com a pessoa de Jesus Cristo da Bíblia, segundo foram descritos nas Escrituras, tornam-se normativos para toda a experiência cristã, a qual, por sua vez, deve ser julgada pela Bíblia.

Por conseguinte, quando houve a formulação de alguns credos no tempo da Reforma, eles só tiveram autoridade relativa; as Escrituras eram a autoridade absoluta. O conceito comum é bem expresso na Primeira Confissão de fé de Basel (1534): “Submetemos esta nossa confissão ao julgamento das Escrituras divinas, e estamos dispostos a sempre obedecer de bom grado a Deus e Sua Palavra, se formos corrigidos pelas referidas Escrituras Sagradas.” Portanto, para os reformadores, a Bíblia era um regulador não regulado por outro.

Voltemo-nos para Lutero a fim de ilustrar o princípio de “unicamente Cristo” na Bíblia. Ele entrou no mosteiro em 1505 e empreendeu seus estudos profissionais de teologia desde o começo de 1507 até receber o doutorado em 1512. Em 1513 começou a fazer preleções sobre o livro de salmos, e prosseguiu nessa atividade por mais de dois anos. A maioria dos eruditos contemporâneos de Lutero afirmam que suas observações sobre o assunto da justiça pela fé, encontradas em seus comentários sobre os Salmos 31 e 71, realmente expõem seu redescobrimento do evangelho segundo aparece em Romanos 1:17. Em 1515, 1516 e 1517 ele passou a prelecionar respectivamente sobre Romanos, Gálatas e Hebreus. A chave que abriu a Bíblia para Lutero foi o princípio cristomonístico. Ele achou que os Salmos eram grandiosos e belos — “um precioso e ama-do livro”, que “bem poderia ser chamado uma pequena Bíblia”, pois continha sucintamente tudo que se encontra na Bíblia. Lutero disse que gênesis é “um livro extraordinariamente evangélico”, mas foi Daniel que recebeu o mais longo, o mais pormenorizado e o mais sublime prefácio de todos os profetas, pois Lutero achou que ele profetizou tão exata e admiravelmente a respeito de Cristo, que “não se pode passar por alto a vinda de Cristo, a menos que isto seja feito deliberadamente”. 1

Cristo expressou o princípio de hermenêutica cristomonístico ao dizer: “Examinai as Escrituras, … e são elas mesmas que testificam de Mim.” S. João 5:39. Lutero declarou que no Velho Testamento “encontramos as fraldas e a manjedoura em que Cristo jaz… Essas fraldas são simples e humildes, mas precioso é o tesouro que nelas está: Cristo. … E que é o Novo Testamento se não uma pregação pública e proclamação de Cristo, expostas pelas afirmações do Velho Testamento e cumpridas por meio de Cristo?”2

Infelizmente, no pensamento protestante tem havido alguma ambigüidade no uso da frase “A palavra de Deus”. Tem-se declarado que a Bíblia é a Palavra de Deus, que ela contém a Palavra de Deus e que ela dá testemunho da Palavra de Deus. Em Lutero encontramos estas três coisas mantidas numa relação que desce da Palavra como Cristo (S. João 1:1) para a Palavra como evangelho (S. João 1:14) e para a Palavra como a Bíblia.

Lutero disse que Cristo é a “estrela e o âmago” das Escrituras, e “a parte central do círculo” em tomo do qual gira tudo o mais. Certa vez ele comparou alguns textos bíblicos a nozes duras, cujas cascas não queriam romper-se, e disse que, quando as encontrasse, ele as lançaria contra a Rocha (Cristo), para que então conseguisse achar dentro delas sua “deliciosa amêndoa”.3 É essa “deliciosa amêndoa” que o adventismo procura realçar nas doutrinas da Igreja, incluindo a compreensão bíblica da lei e do sábado. Como sucede com a literatura de Ellen G. White, ele aponta para um dogma cristocêntrico. Ela escreveu: “A palavra cristianismo tem um sentido muito mais amplo do que muitos lhe têm dado até aqui. Não é um credo. É a palavra dAquele que vive e permanece para sempre. É um princípio vivo e animado, que se apodera da mente, do coração, dos motivos e de todo o homem. Cristianismo

  • — oh, se lhe pudéssemos experimentar a operação! É uma experiência vital, pessoal, que eleva e enobrece todo o homem.”4

A principal questão religiosa, para Lutero, era: “Como ter certeza da salvação?” Nessa procura, os reformadores avivaram o cristianismo do Novo Testamento e cunharam tais expressões teológicas como “só a Bíblia”, “unicamente Cristo”, “só pela graça”, “unicamente pela fé”. São princípios, conforme a definição dada no começo deste artigo. “Só a Bíblia” é a estrutura dentro da qual nos movemos. E dentro dessa estrutura há um outro princípio

  • — “unicamente Cristo” — que atua como regra fixa, como fonte e como a verdade em que se baseiam todas as outras. Dentro da estrutura de “unicamente Cristo” temos dois outros princípios que indicam a direção. Um deles parte de Cristo para o homem (“só pela graça”) e o outro parte do homem para Cristo (“unicamente pela fé”). A doutrina dos reformadores insistia tão predominantemente sobre a singularidade e a perfeita suficiência de Cristo, que se tomou não somente o impulso de sua doutrina a respeito de Cristo, mas também o centro de toda a sua teologia, à qual se subordinou até mesmo a doutrina da justificação.

Em toda a história da igreja cristã, os teólogos periodicamente têm descoberto uma parte negligenciada de certa doutrina e salientado sua importância. É assim que deve ser; mas, se essa parte negligenciada se toma o centro de um sistema ou movimento teológico, passa a ser perigosa e talvez até herética.

Se determinado aspecto de uma dou-trina se toma o centro de uma teoria, é fácil perder a totalidade da mensagem bíblica. Por exemplo, Martinho Lutero não foi dogmático ao tratar do assunto da expiação, e, sim, um expositor da Escritura. Seus escritos sobre a expiação contêm declarações que podem ser incluídas em classificações comuns: patrística, oriental, latina, penal, vicária, etc. No entanto, Lutero se interessava em apresentar uma mensagem bíblica, e não em expor uma teoria acerca da expiação.

Os reformadores protestantes do século XVI eram teólogos bíblicos que procuravam preservar em todas as discussões dogmáticas, a totalidade da mensagem soteriológica da Bíblia. É significativo que Jan D. Kingston Siggins, em seu livro: Martin Luther’s Doctrine of Christ (“A Doutrina de Cristo de Martinho Lutero”), afirma que embora Lutero possa ser citado para apoiar idéias que constam em todas as teorias históricas sobre a expiação, ele certamente não adotou nenhuma teoria dessa natureza. Siggins escreve: “Talvez, porém, a própria variedade das respostas à pergunta acerca do ponto de vista de Lutero obscureceu a suspeita que deve recair sobre a própria pergunta. Pois Lutero não tem teoria alguma sobre a expiação.”5 E acrescenta: “O estudo comparativo superficial pode insinuar que Lutero adotou todos os grandes esquemas (da expiação) — ou que ele era um pensador confuso que realmente não compreendeu nenhum deles. Na verdade, Lutero não está procurando fazer o que os teólogos tentaram com finalidades dogmáticas ou apologéticas, e é impossível equiparar seu resultado ao deles. A estrutura lógica de sua doutrina difere de todas as exposições deles, e não pode ser, portanto, enquadrada em nenhuma delas. Indubitavelmente, porém, pode ser enquadrada na Escritura, a qual também não expõe nenhuma teoria. ”6

Lutero definiu a Cristo como a “estrela” da Escritura ou “o ponto central do círculo”. Também podemos dizer que Cristo é o “cubo da roda”. Assim como um estrela emite muitos raios, do cubo da roda da salvação também saem muitos raios — perdão, conversão, arrependimento, justificação, santificação, expiação, regeneração, adoção, ressurreição e glorificação. Cada um deles é uma tentativa para descrever o que acontece com o crente quando “só pela graça” ele exerce fé “unicamente em Cristo”. O aro mantém todos os aspectos unidos em Cristo — preservando a totalidade da mensagem soteriológica. A fé põe o indivíduo em relação com outra Pessoa — uma teologia de experiência na qual duas pessoas se entregam uma à outra. Nós o fazemos pela fé; Cristo o faz pela graça.

Lutero redigiu estas belas palavras: “A fé não somente confere à alma o suficiente para que se torne semelhante à Palavra divina: afável, livre e abençoada, mas também une a alma com Cristo, como a noiva com o noivo, e desse enlace Cristo e a alma se tomam um só corpo. . . .Ambos passam a desfrutar então de comunhão de bens, quer seja a ventura, o infortúnio ou qualquer outra coisa; de modo que aquilo que pertence a Cristo também pertence à alma crente, e o que pertence à alma também pertence a Cristo. ”7

Salvação é a entrega pela fé “unicamente a Cristo”. Então o cristão se acha tão intimamente unido a Cristo que se toma “um só ser”, “um só corpo” com Ele.

A asseveraçao de Lutero de que a justificação é a doutrina magistral, o principal artigo e a pedra angular da Igreja, precisa ser explicada de duas maneiras. Primeira: Lutero queria dizer muito mais com a palavra “justificação” do que o conteúdo formal ou sistemático da doutrina da justificação em seu uso forense. Segunda: para Lutero a justificação era apenas um aspecto, por mais vital que fosse, de um assunto muito mais amplo — o assunto de “unicamente Cristo”.

Lutero não via discordância alguma entre o ensino de Paulo e o de João. Pelo contrário, ele lia a expressão paulina “em Cristo” à luz da oração de S. João 17, que versa sobre a unidade de Cristo. Por conseguinte, em muitos trechos nos quais Lutero chamou a justificação de ponto cardeal, ele usou essa palavra para denotar um aspecto muito mais amplo do que o que é abrangido pela tradição dogmática. Empregou-a para indicar toda a exuberância de nossa relação de unidade com Cristo pela fé. Lutero identificou prontamente o assunto de Paulo, da justiça pela fé, com a ênfase de João à pessoa, à função e ao reino de Cristo.

Destarte, a forma dogmática em que a doutrina da justificação é enunciada com finalidades polêmicas constitui uma explicação inadequada para a riqueza da fé de Lutero. Não a justificação, mas “unicamente Cristo” era a norma de sua teologia e o princípio vivificante de sua fé. “Só pela fé” era simplesmente outra maneira de dizer: “Unicamente Cristo”. Estas duas palavras, como a essência da doutrina e vida cristãs, indicam em que consistiu toda a Reforma. Disse Lutero: “Não conheço absolutamente nada, a não ser a Cristo unicamente. Oh, se tão-somente pudéssemos firmar tudo isso em Cristo!”8 Assim ele realçou a singularidade pessoal da relação com Cristo em que a teoria se transforma num fato real, as expectativas em realização, e o desejo em fruição.

Para Calvino, igualmente, a gênese, a dinâmica e a essência de sua espiritualidade encontravam-se unicamente em Cristo. Embora reconhecesse a prioridade lógica da justificação, Calvino acentuava sua inseparável ligação com a santificação. Ele não considerava a justificação meramente como uma imputação forense de justiça, mas como uma tranformação interior. Ela é fé numa pessoa — uma fé que significa uma união mística com Cristo.

Ouçamos as próprias palavras de Calvino: “Por que somos justificados pela fé? Porque pela fé nos apegamos à justiça de Cristo, a qual, unicamente, nos reconcilia com Deus. Mas não podemos apegar-nos a isso, sem apoderar-nos, ao mesmo tempo, da santificação. Pois Ele tornou-Se nossa justiça, sabedoria, santificação e redenção (I Cor. 1:30). Portanto, Cristo não justifica a uma pessoa sem também santificá-la. Pois esses benefícios estão ligados por um vínculo eterno; de modo que, aos que Ele ilumina com Sua sabedoria, a esses também redime; aos que redime, a esses também justifica; aos que justifica, a esses também santifica. Visto, porém, que toda a questão apenas tem que ver com a justiça e a santificação, nós nos restringiremos a elas. Embora possamos separar uma da outra, Cristo contém a ambas sem divisão alguma. Desejais então obter justiça em Cristo? Deveis possuir primeiro a Cristo. Mas não podeis possuí-Lo sem participar de Sua santificação, pois Ele não pode ser dilacerado. Portanto, visto que o Senhor nunca nos concede a fruição desses benefícios sem nos dar a Si mesmo, Ele nos dá a ambas ao mesmo tempo: nunca uma sem a outra. Vemos assim como é verdade que não somos justificados sem as obras; contudo, isto não ocorre pelas obras, pois nossa participação em Cristo, pela qual somos justificados, abrange tanto a santificação como a justiça. ”’

“Nossa salvação consiste destas duas partes, a saber: que Deus nos rege por Seu Espírito e nos transforma à Sua imagem no decorrer de toda a existência, e também que Ele sepulta todos os pecados.”10

Para Calvino, a justificação e a santificação se efetuam continuamente no cristão: elas coexistem em tensão dialética, denotando contínuo andamento e progresso.

Essa incipiente união com Cristo é a necessária condição para a vida espiritual. Na justificação, a graça é perdão; na santificação, a graça é poder. A inteireza do aio redentor e restaurador da parte de Deus significa não só reconciliação, mas também renovação. A própria fé, o elemento primordial na experiência cristã, é considerada dinâmica e restauradora na vida humana. A doutrina do batismo dos crentes reforça esse ponto, como também é o caso da doutrina e da obra do Espírito Santo.

Lutero asseverava que a fé é “algo vivo, criador, ativo e poderoso.” Ele achava que a fé “sempre está em atividade” e disse que não é mais possível separar da fé as obras da lei, do que separar a luz e o calor de uma chama. Para ele, cada uma delas, como parte da doutrina da salvação, constitui um só ato de Deus. “Se alguém está em Cristo, é nova criatura: as coisas antigas já passaram; eis que se fizeram novas.” II Cor. 5:17. O Espírito Santo é o agente exclusivo dos atos da salvação. Ele torna o crente “um novo rebento procedente da videira de Cristo”, “uma nova criatura, com diferente espírito, coração e pensamento”. O homem passa a ser “um só corpo” com Cristo.11

Na virada do século, quando a Igreja estava sendo dilacerada pelos liberais e conservadores, um clérigo disse o seguinte: “Se nossos evangelistas fossem nossos teólogos, e se nossos teólogos fossem nossos evangelistas, estaríamos mais perto da Igreja ideal.” Em João Wesley havia uma rara mescla de evangelista, teólogo, educador e administrador de igreja. Estais lembrados da experiência de Wesley numa pequena congregação de Londres. O Prelecionador chegou a este ponto no prefácio de Lutero à Epístola aos Roma-nos: “Fé é uma obra divina em nós, que nos transforma e nos toma recém-nascidos de Deus; mata o velho Adão, e nos faz completamente diferentes de coração, disposição, espírito e todo poder, trazendo o Espírito Santo consigo. Oh! a fé é algo vivo, criador, ativo e poderoso, de modo que é impossível que ela não pratique continuamente boas obras. Nem sequer pergunta se as boas obras devem ser praticadas; mas, antes que alguém pergunte, ela já as praticou, e sempre está agindo. ”

João Wesley sentiu o coração aquecer-se de maneira incomum. Ele foi dominado por um novo poder. Sentiu que agora realmente confiava em Cristo, e esperava unicamente pela Sua salvação. Disse Wesley: “Foi-me dada a certeza de que Ele tirou os meus pecados — sim, os meus — e me livrou da lei do pecado e da morte. ”12

Esta foi a experiência da conversão de Wesley. A teoria tornou-se um fato real; a expectativa encontrou o seu cumprimento; o desejo transformou-se em fruição. E a resposta à pregação de João Wesley, tanto por parte de pastores como de mineiros, encontrou eco nesta exclamação:

“Tal qual estou, eis-me, Senhor,

Pois o Teu sangue remidor Verteste pelo pecador;

Ó Salvador, me achego a Ti!”

O pensamento da Reforma sobre a união com Cristo foi belamente enunciado nesta palavras: “Ao nos sujeitarmos a Cristo, nosso coração se une ao Seu, nossa vontade imerge em Sua vontade, nosso espírito toma-se um com Seu espírito, nossos pensamentos serão levados cativos a Ele; vivemos Sua vida. Isto é o que significa estar trajado com as vestes de Sua justiça. ”13

O “Unicamente Cristo” da Eclesiologia

Os reformadores protestantes admitiam que havia duas características da verdadeira Igreja visível — o evangelho pregado corretamente e os sacramentos bem administrados. Mas firmaram ambas essas coisas nos princípios de “unicamente Cristo”.

O homem constitui um indivíduo diante de Deus; mas, como membro do corpo de Cristo, ele também constitui um membro do povo do concerto. Estes dois conceitos precisam conservar-se unidos.

Toologicamente, a Igreja cristã foi fundada em Cesaréia de Filipe, quando Pedro confessou: “Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo”, e Cristo declarou: “Sobre esta pedra edificarei a Minha igreja.” S. Mat. 16:16 e 18. Os reformadores faziam menção de Cristo e da confissão de Pedro a respeito de Cristo como a rocha da Igreja. E a história da igreja cristã atesta o fato de que seu êxito ou fracasso está em proporção direta com sua confissão de Jesus Cristo como Senhor e Salvador. Aos olhos dos reformadores, a Igreja tomou-se o anticristo por deixar de confessar a Cristo.

A Igreja vive hoje em dia numa época semelhante ao período anterior a Constantino — um mundo pagão. Atualmente, a sexta parte da população mundial é maometana. Nalgumas nações em que cristãos e maometanos competem pela lealdade do povo, os maometanos superam os cristãos na proporção de 10 para 1.

Com 60 milhões de habitantes, a Nigéria tem a maior população de todos os países da África; pouco menos da metade dos nigerianos são maometanos, e um pouco mais de um terço são cristãos. A maior parte dos restantes seguem diversas religiões locais.

O Reader s Digest and Information

A alma anelante e faminta suplica de modo plangente, como Maria Madalena no passado: “Tiraram … o Senhor e não sabemos onde O puseram.” S. João 20:2.

Please Almanacs para 1978 apresentou as estimativas do total de adeptos das religiões mundiais em 1976. De acordo com essa fonte, os cristãos eram em número de 1 bilhão; os maometanos, 700 milhões; os hindus, 520 milhões; os confucionistas, 275 milhões; e os budistas, 260 milhões. O Dr. Ralph Winter, do Seminário Fuller, Pasadena, relatou no Church Growth Bulletin, em maio de 1977, que 3 bilhões de pessoas no mundo são membros de grupos sócio-culturais em que não há um só cristão praticante.

Hoje em dia o cristianismo está envolvido em toda parte num duplo confronto — com as grandes religiões mundiais, por um lado; e, por outro lado, com o humanismo secular. O denominado mundo cristão parece ter perdido sua realidade cristã. A teologia, os concílios de igreja e as organizações eclesiásticas têm-se empenhado em exóticas tolices, com o resultado de que sua alma cristã se acha enferma. A alma anelante e faminta suplica de modo plangente, como Maria Madalena no passado: “Tiraram … o Senhor e não sabemos onde O puseram.” S. João 20:2.

A história do pensamento cristão e das tendências religiosas modernas demonstra vivida e convincentemente como Cristo tem sido sepultado sob o dogmatismo, liberalismo, institucionalismo, tendências, questões e sistemas religiosos.

No entanto, sempre tem havido um remanescente. A pergunta que permanece é a seguinte: Como pode o remanescente cumprir sua missão num mundo pagão? Só há uma resposta: O remanescente da atualidade precisa cumprir sua missão como o fez a Igreja primitiva. Essa Igreja tinha a mensagem das poderosas obras de Jesus Cristo. Os cristãos primitivos impressionavam-se com o próprio Jesus. O poder do cristianismo primitivo era conferido diretamente pela Pessoa de Cristo. Sua proclamação era a da singularidade da salvação da Pessoa de Jesus Cristo, o qual disse: “Atrairei todos a Mim mesmo.” S. João 12:32. Ele mesmo era o cristianismo e o evangelho. Os gregos disseram: “Senhor, queremos ver a Jesus.” Verso 21. “Alegraram-se, portanto, os discípulos ao verem o Senhor.” S. João 20:20. Os cristãos primitivos estavam convencidos, tinham certeza, e não nutriam dúvida alguma, porque tinham a Cristo e sabiam o que Ele fizera por eles. Conheciam a experiência da salvação na Pessoa de Jesus Cristo.

João formulou sua experiência em palavras oriundas de uma significativa luta teológica com o gnosticismo e o docetismo, perto do fim do primeiro século. “Aquele que crê no Filho de Deus tem em si o testemunho. Aquele que não dá crédito a Deus, O faz mentiroso, porque não crê no testemunho que Deus dá acerca do Seu Filho. . . . Aquele que tem o Filho tem a vida; aquele que não tem o Filho de Deus não tem a vida. ” I S. João 5:10-12.

Termino apresentando a bênção do “unicamente Cristo” de Efésios 3:20 e 21: “Ora, Àquele que é poderoso para fazer infinitamente mais do que tudo quanto pedimos, ou pensamos, conforme o Seu poder que opera em nós, a Ele seja a glória, na igreja e em Cristo Jesus, por todas as gerações, para todo o sempre. Amém. ”

Bibliografia

  • 1. Luther s Works, págs. 238, 254, 313 e 314.
  • 2. Idem, págs. 235 e 236.
  • 3. Idem, pág. 368.
  • 4. Testemunhos para Ministros, págs. 421 e 422.
  • 5. Jan D. Kingston Siggins, Martin Luther’s Doctrine of Christ, pág. 109.
  • 6. Ibidem.
  • 7. W. M. Landeen, Martin Luther’s Religious Thought, págs. 141 e 142.
  • 8. D. Martin Luther’s Werke, 47, págs. 154 e 777.
  • 9. Institutes, III. 16.1.
  • 10. Comm. Malachi, cap. 3, v. 17.
  • 11. D. Martin Luther’s Werke, 45, pág 667; 28, pág 187.
  • 12. Martin Schmidt, John Wesley, vol. 1, pág. 263.
  • 13. Parábolas de Jesus, pág 312.